Da papoila que supostamente envelheceu, chamou por mim... e me fez sorrir como se o tempo andasse ao contrário.
Ou é da distância a que o tempo fica ou me parece que naquela época era tudo mais fácil.
Entravámos na livraria madrilena do costume e comprávamos os livros que nos chamavam como se as personagens que os habitavam fossem génios invisíveis com vozes de som virado directamente para a sedução da alma.
Naqueles anos quase todos os produtos culturais eram baratos em relação ao rendimento do comum das pessoas.
O ministro, ou a ministra, já não me lembro, disse que um país sem cultura acessível a todos não tinha futuro.
Nas livrarias, e nos hipermercados logo à entrada na passagem para a mercearia e outros consumos, amontoavam-se livros, discos, filmes.
Clássicos. Contemporâneos.
Até a Hola trazia como presente as obras de Shakespeare ou Cervantes presas à revista por plástico adesivo não fossem as criações fugir dos dramas inventados e mundanos dos famosos de briga pronta ou amor revelado na esquina de qualquer festa.
Em ediciones de bolsillo que não faz mal nenhum copiar a ideia dos judeus alemães no séc.XIX. Aqueles da filosofia pocket, levada para os Estados Unidos e para Inglaterra: palavras vivas em formato pequeno, papel barato e capa flexível.
(Por aqui, tenho saudades dos pequeninos Livros do Brasil que andavam lá por casa e agora guardo, se bem se recordam nestes tempos de invasão de literatura a metro de teclado.)
Já não me lembro que livro desses, de Gabriel García Márquez, me chamou pela primeira vez. Talvez fosse Los Funerales de La Mama Grande.
Sei que estava muito calor e o comecei a ler, no ritual da caña e dos boquerones avinagrados servidos por Don Argimiro a quem já dediquei prosa.
Formas de inventar a frescura quando o final da tarde parece resumir todo o sol agreste do dia.
Lembro-me do começo do encantamento. Todos os dias comprávamos mais um. Todos os dias acrescentávamos mundos ao chão que nos prendia.
E víamos como, através da fantasia e do espanto se despem as várias naturezas humanas até ficarem escandalosamente nuas sem o paternalismo da complacência mas embaladas pela extraordinária musicalidade da língua castelhana.
Não desfazendo, é língua desbragada, profana com Deus dentro. Pouco envergonhada, de rédea solta sem aparas domésticas e muito menos domesticadas.
De qualquer forma, em todas as línguas, existem sempre maestros capazes de lhes salientar a beleza das notas dando-lhes o andamento certo. Às vezes com a ajuda preciosa, ou nem por isso, dos instrumentistas tradutores.
Numa dessas descobertas, com as pernas confortavelmente submersas em água quente e sal, comovi-me com a dignidade da mulher que vai no comboio com a filha pequena que leva um ramo de flores, contrariar a sesta do padre e pedir a chave do cemitério para visitar a campa do filho ladrão de quem naquela aldeia estranha ninguém sabia o nome e muito menos que era boxeur já sem dentes.*
E talvez tenhamos compreendido melhor, por reconhecimento, a imigrante colombiana atarracada universal como se saída das mãos da Paula Rego,
que parava de limpar o chão ou de comer a banha de porco à colher, assim de repente, para queimar alecrim com fúria, vete hijaputa, ou não lhe tivesse aterrado o espírito da defunta sogra, sem passaporte ou visto turístico, ali em pleno solo emprestado de Madrid.
Nem o mau humor maricón do director nem a asma da carismática pan con pan (lésbica) da vice directora, puñeteros patrones hijos de los cuernos del Diablo, lhe aplacavam aquela sede de vingança pela falecida porque uma pena de pombo untada em azeite nos respectivos cacifos era perna partida pela certa .
E uma das costureiras, curvada sobre tecidos de amargura e que andava há vinte anos e mais os dias que iam passando à espera da carta de um amado, marido precoce e com curto prazo de validade, desaparecido e arrastado para outras terras por uma matrafona aerodinâmica, puta em estágio, parideira para homem roubado e virada à aventura.
Tão esquecida e patética como o Coronel que não tinha quem lhe escrevesse uma linha que fosse.**
Mais o outro que já nem sei se nos fazia lembrar filho do Garcia Marquez ou do Vargas Llosa ou de outro qualquer que escrevesse caricaturas mais autênticas que o original. Não interessa.
Só sei que o meu lado britânico me lembrou, hoje, que cada vez que morre alguém que deixa rasto pelo tempo fora, seja Nobel ou viva na luz invisível, nasce ou renasce uma papoila nos campos.
Consta que é flor que, entre muitas outras habilidades até Pascais, transporta a cor do sangue guerreiro da imaginação.
* La siesta de martes
**El Coronel no tiene quien le escriba
nos seus títulos originais.
2 comentários:
Ah... os livros, as palavras, os escritores - o cheiro das livrarias ou bibliotecas, tantos nomes, tudo parece já ter sido escrito, a imensidão de perguntas e o universo das respostas!
Quando tinha 7/8 anos, nas "férias grandes", levavam-me (guardavam-me) na Biblioteca Municipal do Porto, imponente e poeirenta. Ouço o arrulhar das pombas para onde me fugia o olhar, pelas janelas altas que davam para o claustro. Vivi sempre com livros. Quando não tinha que ler, lia o Dicionário! São, ainda, bocados de mim, antes e depois.
Gosto da vida das letras, da feira das palavras.
E aprecio a tua arte delas!
Bjinho
Bettips
Os livros são um vício. Uma compulsão.
Pega-se num que é mestre em perguntas e vai-se em viagem à procura de respostas.
Algumas nunca se encontram. talvez porque não existam paisagens definitivas.
E depois são objectos sensuais. Ou tenho prazer no seu todo, ou os rejeito. Porque as minhas mãos não gostam do seu toque ou os olhos ficam feridos.
Andam por aqui alguns, e ainda ando a descobri-los nos caixotes, que me desvendam ou tornam misteriosos quem os leu.
Pelas anotações, por sublinhados, por moradas, por cartas ou postais. Biografias submersas adormecidas em papel.
E o Borges (salvo erro) deu-lhes a melhor definição: "são as portas do tempo".
Obrigada e
bjs
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