segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Porque já estou farta do anterior e porque hoje a minha morada estava embrulhada em nevoeiro e apesar da falta de tempo por via das obrigações absolutamente obrigadas e nada voluntárias,


apetece-me falar

da sensatez da mal amada cor que melhor ouve o silencio.
Desde ser ligado ao branco encardido, filho da imperfeição higiénica, ao preto hipócrita, ao dar tonalidade ao pouco interessante e monótono, o coitado do cinzento, por estas terras, sofre todos os agravos.

Confesso que é uma das minhas cores preferidas, tal é a sua riqueza tímida e esquecida.


Por ficar no meio e ser filha dos extremados preto e branco, é a cor dos pensamentos sensatos e deles símbolo: olha para os argumentos de um e do outro e pondera como juiz avisado e sem paixão.
(No mundo anglo-saxónico, um jornal isento, orgulha-se de ser considerado cinzento)


Aliando este juízo à cor cinzenta dos miolos, coisa que se afirma em todas as línguas e culturas, é também cor simbólica da inteligência, daquela mais recolhida na modéstia do que na exuberância. Mais sólida que meramente esperta.

Por isto, no reino de Elizabeth I de Inglaterra, e não só, os sábios, religiosos, eremitas de grande reflexão e filosofia, deviam vestir-se de cinzento.


Tal norma foi-se aplicando ao longo dos reinados e não é por acaso que em alguns colégios se traja de cinzento e qualquer primeiro ministro avisado se deve apresentar à realeza de cinzento. Vá-se lá saber porquê, Tony Blair rompeu a pressuposta exigente tradição.

Enfim, se as mulheres já nascem assentes, de vida e missão responsáveis, era sinal de perda assumida de diletância os cavalheiros se vestirem de cinzento.


E mais digo que quem for receber comenda ou outra distinção, nas terras britânicas e espanholas, que nas portuguesas não sei, se deve sentir mais honrado se receber do protocolo a indicação de levar vestimenta onde entre o cinzento.

É também símbolo de maturidade, coisa que se pressupõe, quão por vezes erradamente… quando a cabeça fica grisalha.

Pois fiquem sabendo, quem não sabe, que em territórios índios da América lá para o Norte, é a cor valiosa da amizade e do casamento ideal:

em dias de nevoeiro, névoa que acinzenta a paisagem, os três elementos da Terra - água, ar, terra propriamente dita - tomam-se de fusão não se sabendo onde começa um e acaba o outro aconchegando-se como os amigos e os amantes inteiros.


Também consegue ser a cor da espera, e da complementar esperança.

Quem quer ser feliz, senta-se à beira dos lagos enevoados à espera que lhe chegue amor que lhe seja heróico, digno e dedicado.

Depois, noutras paragens, há quem espere salvações mais colectivas em manhãs de nevoeiro, assim em forma, já abstracta , desfocada e desesperada, de Rei Moço…


É também cor de animais respeitados, cheios do conhecimento dos mistérios insondáveis da floresta e da noite que nenhum humano alcança: os lobos e os gatos.

Em todas as partes, não sendo a cor da morte é a do luto por alguém ou qualquer coisa ou circunstância.
Porque o coitado do cinzento tem a cor das cinzas, dos despojos irreversíveis do que já foi sem viagem certa de regresso.



Fica assim contagiado com melancolia, com nostalgia, com solidão, com recolhimento.
Mas também é a cor dos espíritos independentes que não prestam contas, para fora ou para dentro, do seu pensar e sentir.



É uma cor calada que se fecha sobre si própria embora preste grandes serviços poéticos e estéticos.

Vários poetas e estetas de outras áreas se refugiavam ou utilizaram o cinzento, sublinhando-lhe a beleza e a capacidade expressiva.

Não precisaram de estardalhaço colorido os dos séculos XIV e XV para produzir as ilusórias esculturas e baixos relevos, chamadas de Grisallas.


E há quem diga que, desde quase sempre, pela utilização do cinzento, se vê a maestria e o estado de alma dos pintores.

Consta que os da Renascença segredavam amarguras ou alegrias através dos cinzentos utilizados nas nuvens. Muitas vezes o que se vê fala muito mais do que se diz. Coisa intemporal.



E Velásquez, por exemplo, botava o cinzento para adormecer o brilho demasiado das outras. Porque o cinzento, quando não angustiante, tem esse efeito calmante na tela e na alma.


E podia lá eu não me lembrar do misticismo, da largueza e da lonjura convidativas dos meus amados Caspar David Fredrich


e Rothko, ambos com tanta coisa dita e intuída por tão pouco ornamento.


Também me lembro sempre do cinzento da tão desafiadoramente dançável fora das normas e versátil Valsa Triste de Sibelius. Notas nórdicas que ele chamou, secretamente, de cinzentas.


E já não tenho tempo de falar da beleza subtil dos filmes a preto e branco, onde as graduações de cinzento são imperatrizes ainda mais que rainhas - ai Senhores que não me calaria tão cedo-
nem da fotografia que não precisa de outras cores,


nem de como muitos coreógrafos exigiam, e exigem, que as imagens falassem em tons monocromáticos por via das luzes e sombras no interior dos movimentos.


E ainda falta a Moda, onde o cinzento bate em qualquer Kitsch. É a cor discreta da elegância, da sobriedade inimiga do espavento.

Por tudo isto e mais o que neste preciso momento não me ocorre no espaço e no tempo, talvez seja a cor de todos os possíveis, de tudo o que é sentido e contém a riqueza de ser interpretado.

Porque também tem agarrada ao seu espectro, a grandeza benéfica da simbologia da dúvida.