terça-feira, 27 de março de 2012



Requiem para uma linha recta que detestava a tosse provocada pelas curvas.

Imagino que Dona Maria do Céu (nome devotado às místicas alturas com que o senhor meu pai em revolta adolescente e não só a alcunhou) não nasceu como as demais terrenas.
De facto, parece ter nascido com a idade que sempre viria a ter.


Consigo vê-la, muito composta mas absolutamente envergonhada com a sua nudez rosácea e vagamente engelhada, ilha rodeada de líquido amniótico limpo de impurezas celulares ou outras, a agendar organizando a sua vinda a este mundo que tem a indecência de não se reger pelas leis da imobilidade na constãncia



o que leva, inevitavelmente, a que até e por exemplo, as mulheres fumem

e mudem borrachas de torneiras quando não chegam mesmo a mudar tomadas eléctricas ou pneus furados sem falar no uso indiscriminado de calças ou outros trajes ainda mais impróprios à histórica condição.

Dona Maria do Céu quando assomou à janela íntima da mãe, além de já ter escrito mentalmente um compêndio da arte de bem ordenar, logo terá vociferado contra o cenário desarrumado, caótico, sujo e suado que lhe foi dado conhecer.

Terá, em voz inaugural, exigido aprumo imediato tal como ela tinha deixado a sua morada gestativa pronta para receber mais dez hóspedes temporários que se lhe seguiriam.



Durante a sua longa vida, aliás, Dona Maria do Céu sempre orientou as hostes pelo seu próprio e certo exemplo, o que me levou por minha vez, respeitando os princípios constantes da informação do ADN, a alcunhá-la de tal forma que o pudor me obriga a silêncio público, tendo-me bastado na altura o suplício de lavar a loiça de vinte pessoas mais os tachos e panelas necessários à confecção da janta.

Bem me lembro de Dona Maria do Céu F.C.P.M. de G., sentada em sofá de honra, fosse qual fosse a ambiência, de mãos dadas no colo, pernas traçadas de forma a que o peito do pé direito se encaixasse na curva anterior do tornozelo esquerdo, de voz delicada e adocicada, a instruir para a vida e tantas vezes para a morte, os seus súbditos familiares estatutários, quase todos com algum desarranjo comportamental que não conseguia entender na causa quanto mais na consequência.

Dona Maria do Céu, metodicamente, tirou um curso que lhe proporcionou tratar dum amplo e enfermo rebanho, com especialização em maleitas pulmonares. Tornou-se, desde cedo, perita caçadora de manchas das mais diversas proveniências e incapacitantes das livres trocas gasosas.

E grande decifradora da criptografia das tosses.



Tornou-se rainha no romântico terreiro dos sanatórios, tomou armadura contra a febrícola de fim da tarde, as transpirações nocturnas, os requebros do apetite, as aleivosias dos bacilos.



Deus e toda uma vasta assembleia de Santos e Mártires, ter-lhe-ão segredado tal vocação, enquanto ela própria pouco saudável, tratava às escondidas e ainda sem ciência nem estudo, feridos multipartidários da Guerra Civil de Espanha bem como Judeus no transito de fuga do Inferno.

Dona Maria do Céu sempre defendeu que se a política pode provocar doença, os doentes não tem culpa da política.

Dessa forma, tratou também, à porta fechada, prisioneiros políticos portugueses mesmo aqueles que declaradamente cuspiam em todas as crenças menos na sua como é próprio do entusiasmo humano.

Foi sem surpresa que, no 25 de Abril, Dona Maria do Céu se viu algemada por um doente já sem tosse enquanto que outro, discutindo com o primeiro e em memória da respiração solta, lhe aconselhava a ida,enquanto o pó poisava,  para Espanha que sempre é mais perto que o Brasil.


Fui testemunha da calma com que Dona Maria do Céu, de pernas traçadas de forma a que o peito do pé direito se encaixasse na curva anterior do tornozelo esquerdo e sentada no sofá, assistiu à argumentação dos pares.

Ora foi e voltou não se adaptando ao barulhento, efusivo e anárquico receituário castelhano.

Dona Maria do Céu, sempre se manteve casta e assumidamente pura nunca se sentindo compelida a jogar nas lotarias sexuais nem do imediato pós guerra nem nos anos sessenta noutras terras.


Preferia ver brotar dos vasos uterinos da sua sagrada família directa ou por afinidade, rebentos a quem procurava instruir e orientar nem que fosse por via indirecta.

(Conseguiu, assim, que esta que aqui vos escreve, fosse baptizada em conjunto com muitos outros de diversas idades menores e em modalidade de pacote,

na Igreja S. João de Deus, em plena Praça de Londres, terreno até então reservado pelos baptizandos a corridas de bicicletas, cenas de pancada e outras heréticas e sobretudo pouco femininas modalidades de sociabilização e treino para a vida.)


Já em provecta idade, foi com engasgo espantado e incrédulo que todos receberam a notícia do seu noivado com espécime viril de tosse longa, produto de uma colheita alentejana mal afamada em costumes e génio, servida em taça de prostíbulo, cinzelada a corno de toiro, estagiada em fado palaciano mais tradicional que por gosto ou sentimento.


Talvez pela primeira vez na vida, Dona Maria do Céu, caiu no absurdo pouco racional e científico de calçar um sapato de cristal roído pelo caruncho, oferecido por um príncipe de calças, mestre em latim mas incapaz de mudar a borracha de uma torneira, uma tomada ou um pneu furado mas, sobretudo, pouco sensível às paredes e ao arvoredo democrático dos sanatórios.


Para não alongar ainda mais, há algum tempo, Dona Maria do Céu sentada no sofá de honra ainda que de pé e junto a um jazigo (tal encontro já foi motivo de prosa há um ano e tal atrás nesta casa), confessou-me começar a reconhecer em si sinais de demência por excesso de idade. Mais disse ser o processo até à falta total de juízo, rápido e sem retorno.

Com o dedo indicador desenhou um gráfico, sempre foi adepta deles, em que uma linha imaginária se desenvolvia irrequieta.

Dona Maria do Céu começou então a arrumar-se e aos seus pertences, se não para a morte pelo menos para um silêncio mais profundo.

Entregou-me e fez-me prometer que assim que o tino se fosse, levaria, como doação, uma série de objectos e livros sacros ao convento onde as tosses, as hemoptises se haviam misturado então com os lágrimas de guerra.



Na semana passada por em andanças ter passado perto, bati aos portões,


 fui bem recebida, entreguei, fiz visita guiada, olhei as manchas de sangue antigo nas lajes subterrâneas, colhi laranjas do claustro, tive inveja de todas as crenças, esperanças e redenções, segui viagem enquanto

Dona Maria do Céu, presa a uma cama gradeada dá ordens aos filhos que não teve, cuida dos irmãos que já morreram, passa receitas aos doentes que lhe surgem em frente aos olhos, conversa com quem ninguém vê sobre assuntos que ninguém entende numa língua sem tradução.



Com a alma sentada, de mãos dadas no colo, pernas traçadas de forma a que o peito do pé direito se encaixe na curva anterior do tornozelo esquerdo, de voz delicada e adocicada, há-de levantar o dedo indicador e traçar no gráfico do espaço, uma linha plana onde a postura não admite sobressaltos.


quarta-feira, 7 de março de 2012




Do livro errante cujo o autor
se esqueceu de sonhar o fim



Quando o conheci, andava com os Nocturnos de Chopin nos olhos embevecidos pelo toque das mãos pianistas da mãe nos seus cabelos desalinhados e frágeis.

A mãe de que tinha rejeitado a morte transformando-a em partida para parte incerta mas de retorno ou encontro garantido na forma de qualquer dia.


Tudo nele era qualquer dia, amanhã adiado, hoje sem hora certa. Mesmo nos concertos na Gulbenkian, talvez só aparecesse depois do intervalo, com gestos largos, excessivos, exuberantes se tivesse viajado pelas entranhas imaginadas de Oscar Wilde ou soturno, trágico se se tivesse perdido pelas sombras de Rembrandt ou nos labirintos tortuosos de Dostoievski.


Não havia frase ou pose em que não aludisse a propósito ou não e como rajada, a uma dúzia de escritores e pintores. Nem escapavam os deuses egípsios, sumérios que os gregos, esses, coitados, pelo uso já tinham o nome esvaziado na grandeza da mitologia.



Soou a heresia quando perguntei a quem me apresentou, se tal actor ambulante pelo comum dos dias, era o catálogo vivo da Livraria Bertrand. A idade pré maior tem destas maldades mais viradas à consequência que à causa.

Hoje percebo que se justificava sempre por empréstimo das almas imensas. Encostado à parede de Deus e em frente à porta entreaberta do Diabo.



E que reciclava a paz impossível em cada promessa inventada de amor e glória. Num palco planetário e carente. Com público elevado ao infinito povoado por deuses submersos.

Sentia-se, quando apaixonado, como Gilgamesh em luta de amor e morte com Enkidu.


Assim explicou os seus delírios, repetindo a história vezes sem conta quando, depois de ter escrito pelo punho uma carta de amor de cento e muitas páginas, a um bailarino altivo e mulherengo que seguiu com os olhos desesperados de um coração mastigado pela dor e impotente por todos os espectáculos em casa própria e em digressões país fora e além das portas.


Tratando-se a missiva de um fundamentado tratado de estética, muito espantou o referido bailarino que expressou publicamente a profunda admiração elogiosa e espantada da forma eloquente que lhe era própria: foda-se !!

Mais tarde mas não muito, porque só o via de vez em quando durante mais ou menos um ano, haveria de sucumbir ao bambolear despenteado e rude de um marinheiro português, que aspergia sal pelos bares ainda tímidos do Bairro Alto, ou não fossem os finais dos anos setenta ainda envergonhados pelo que sempre a moral dos extremos escondeu.



Nesse remoinho de amor embarcadiço representava Genet. Se bem me lembro.

Antes do que se seguirá, deixem-me dizer-vos, que após a morte da mãe, tinha sido proscrito pela família de vocação taurina com a correspondente obediência bovina, pouco dada a aceitar no seu seio ovelhas literatas e muito menos poéticas. Digamos assim e sem ofensa para os brandos costumes de vida arrumada a contento da exposição das pratas na cristaleira da pátria.



Haveria de ser subchefe de protocolo num hotel. Haveria de ser despedido por faltar consecutivamente aos compromissos de horários. Haveria de ser empregado de mesa num restaurante a brincar à vanguarda. Haveria de ser empregado competente numa galeria de arte, não fosse ter chamado pacóvio a um cliente, daqueles que perguntam qual a obra que fica melhor por cima do sofá da sala ou na recepção do escritório. Ou que dizem que meia dúzia de riscos também eles fariam se estivessem para isso.

Escreveu, então, um artigo para uma revista sobre essa coisa do gosto postiço.

Lembro-me que então falou em Harold Pinter.
E se há coisa que me ficou foi a forma como, ao dizer tal nome, quase castigava a língua na direcção do palato e sacrificava o diafragma na expiração do H no Harold e o Pinter soava a Pinta ou mesmo a Pintá. Outra das suas características era imitar até à caricatura a pronúncia de Her Magesty , metamoforseando-se em Lord na poltrona, mesmo quando sentado nas cadeiras da defunta pastelaria Roma.


No entretanto, publicou sem sucesso um livro numa editora daquelas que soam a garantia. Um romance poético.

 Também desenhou as ilustrações com um traço leve, requintado. Uma espécie de voo, para não dizer bailado, da tinta da china.

A minha memória já não chega para saber se foi antes de me ter ido embora ou em visita de férias, que soube que tinha ficado, espancado, às portas da morte, numa viela qualquer, já gelado, numa noite de inverno. Na Madragoa.


E que tinha sido internado por aparecer com um roupão aberto, todo nu, numa recepção em embaixada situada em Londres, a declamar poesia de Sophia, a impor desgarrada entre Yeats e Eugénio de Andrade.



Disse-me quem assistiu, tratar-se da encarnação num corpo peludo, cadavérico e massacrado de Lady Charlotte Rampling com um ataque de nervos, considerada por ele como o arquétipo máximo em Beleza feminina

Nunca mais soube nada dele.

Este fim de semana, uma performer húngara, que já viveu em Portugal e agora vive em Londres disse-me estar a preparar um espectáculo, com estreia em Berlim, sobre um parágrafo com linhas sublinhadas, que descobriu num livro estragado, autografado e com dedicatória, escrito em português, que comprou num alfarrabista em Budapeste.


Ao ver a capa, senti uma bofetada na memória e as distâncias do mundo pareceram-me uma teia sem norte nem coincidência.


Talvez um dia alguém escreva sobre o rasto do livro. Sobre uma mão suspensa num teclado.

Talvez um bailarino com olhos da cor do mar o dance.


Qualquer dia. Ao som da nota mais perdida de Chopin.