sexta-feira, 10 de dezembro de 2010



Do relógio que se esqueceu dos ponteiros

Não me deis pressa para a jorna, que ainda a que há-de ser, sendo já minha aia Lizzie de sua graça e enredo, está de pena no tinteiro antes de comigo partir para alvoroços e sossegos e, temo que, hospícios. Refreai as montadas que não tardo.



Escrevei, Lizzie, o que vos dito que estou de mando:

Senhores,

Foi grande o Mestre Benedetto Girlandaio, quando nesta minha face traçou os olhos das vossas almas, o silêncio das vossas bocas, a agrura dos vossos pasmos, agora que correis pelas festas e abrir de anos, em calendário inventado por Papa Gregório.

Daqui vos olho a tristeza nesses vossos tempos velhos de desnorte,

de batalhas escondidas (e sem armas que matem a carne), com mundo em tal desvaire que vos prega os passos ao chão e vos arrepia os sonhos.


Um mundo que desprezou o pão,


o vinho,


e aos mares dá pouca monta no sustento das gentes da terra,


e que dá desvelo até aos frutos que vos são tradição e história.


Um mundo que escarnecendo dos jumentos de pouca andadura, logo quer montada folgazã sem ter caminho para a ferradura.


(Lizzie, por quem sois, não é de meu entendimento se folgazã tem assim escritura. Deixai ir a missiva que erro não é ofensa e cada qual, por estas terras e por enquanto, ainda é igual a cada um não tendo que ser semelhante a todos os demais.)

E um mundo que quer ser douto de todas as artes, letras e ofícios sem primeiro ouvir sábios e filósofos que sempre avisam dos tempos as suas desditas mas que sempre chama por quem já nem é capaz de lhe tomar tento, tal é o seu cansaço na audição das súplicas.


Mas mesmo assim, a vós que me ledes e que já me sois hábito e companhia, que não tendes mais desejo que a largura de espírito e sentimento, riquezas maiores que o ouro, incenso e mirra que brilham nos campos sem lei nem misericórdia,

vos desejo alívio de todas as tormentas e agruras presentes e futuras



quando o galo cantar e os tempos parecerem ainda mais velhos do que estes que agora vivo.

E que quando o sol cumprir as suas próximas trezentas e cinquenta e cinco voltas, aqui ou noutra qualquer estalagem, tenhamos encontro. Convosco e com os que vos são queridos, amados e desejados.

Arrumai o vosso estojo, Lizzie, que já somos fartas na tardança!

Trazei-me a capa, que estas chuvas, senhores, mais me parecem as lágrimas de todos os Deuses que a limpeza de todos os céus.

Vinde, Lizzie, que em Janeiro seremos tornadas.

Cocheiro, soltai as rédeas!