terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Porque dia 27 de Janeiro, é o dia internacional da Memória, mais lembrado lá fora que cá dentro, vou contar o que ouvi contar, à volta de uma velha senhora minha tia de olhos azuis e sorriso assassinado, já que pelos vistos, pegou moda, dizer que estas Histórias nunca existiram.



História de uma memória quase incógnita



Em 27 de Janeiro de 1945, o exército russo abriu as portas do maior campo de concentração de que há memória: Auschwitz, espécie de morada do Demónio, não seja esta entidade criada como símbolo e aviso de tudo quando de mau e pior existe na espécie humana.


Lembro-me de ouvir dizer, dentro de portas familiares que, num primeiro impacto e sentados nos seus diplomáticos gabinetes, ingleses e americanos pensaram que tal espectáculo não passava de propaganda comunista. Foi preciso ver para crer apesar dos sinais pouco descontraídos que iam chegando.




Portugal era visto por quem podia fugir, como uma rampa de lançamento para o respirar profundo da liberdade, palavra aqui com o simples sentido de continuar vivo. A troco de dinheiro e cumplicidades aqui e ali, lá as autoridades da Península Ibérica iam fechando os olhos aos fugitivos. Uma espécie de Casablanca em filme, mais coisa menos coisa.



O rio Guadiana, em Juromenha, sempre baixou o leito para que fugitivos, beneméritos de transportes de comida e medicamentos para as vitimas da Guerra Civil Espanhola e contrabandistas não tivessem água acima da cintura.



Um dia várias famílias, com os seus animais domésticos, o atravessaram. Conseguiram chegar à Ericeira, sitio onde esperavam até partir, noite profunda e sem lua política, para as Américas, sob o comando de velhos do mar, sobretudo ingleses.



Nessa vaga, passando por Lisboa, chegaram duas gémeas de nove anos agarradas a uma cadela. Sem pais nem dono, com os documentos verdadeiros pregados no esconderijo do forro das saias. Órfãs de toda a família. Só se sabia que se tinham salvo por vizinhos de servir de combustível nos fornos nazis.

Vinham doentes de escarlatina, diagnóstico feito por um médico lisboeta, familiar de um casal que viria, em produção própria, a ter catorze filhos. Já era tal a vocação que levaram as meninas para casa.

Dizia a minha avó, que foi o parto mais bonito que teve, que há dores na alma maiores que as do bruto parir físico, ( "parir é dor, criar é amor") como foi desvairado o desgosto quando, ao fim de uns dias, uma metade das gémeas morreu, caindo a outra num mutismo tão ensurdecedor como vencido já estava o sorriso.

E se naquela família já havia o amor pelos animais, a partir daí qualquer cão, por mais rafeiro e tinhoso que fosse, passou a ser digno de ter uma alma tão grande como qualquer cristão ou filho de outro qualquer deus maior.





Contra a vontade dos padres conhecidos, a menina, que foi registada na altura e por precaução, com nomes portugueses, não foi baptizada. E muito, muito lentamente, foi recuperando o dom da fala. Apesar de aprender português, manteve os laivos de som áspero.


O sorriso, esse, ficou sempre incompleto, preso pela tristeza azul transparente nos olhos. E o tique de levantar ligeiramente os ombros e tombar a cabeça face a qualquer pergunta também lhe denunciava a permanente incerteza.

Fez mais leituras que escola. Qualquer formalismo de exame lhe travava escrita, voz e memória do aprendido.





No dia em que cumpriu vinte e um anos foram-lhe dados os documentos originais e as duas saias. Se essa fosse a sua vontade, podia considerar aquela gente um mero empréstimo até à jurídica posse da vontade adulta e autónoma.

Contaram-me, ainda eu não sonhava nascer, que pela primeira vez, que se visse, chorou.
Como prenda escolheu uma viagem a Berlim.

Voltou, catolizou-se numa igreja do Chiado, casou-se numa capela perto de Juromenha, teve quatro filhas morenas de olhos castanhos, e foi recolhendo vários cães nas estradas.

Lembro-me dela loira e calada, ilha numa paisagem de tisnados, alguns barulhentos.

Lembro-me da magreza , da pequenez quase tão pequena como a minha e da forma minuciosa como bebia o chá. Em pequeníssimos e cadenciados goles.

Lembro-me de, por o marido estar na esfera do governo de Marcelo Caetano, ter fugido para o Brasil. Lá se separou, voltando sozinha. As filhas já se tinham adaptado em amores cariocas.

Agora está muito velha. Vive dentro de si a olhar para a paisagem, numa casa alentejana que já tinha, rodeada de livros, objectos aparentemente inúteis, de cinzeiros sempre cheios. Não reconhece ninguém, olha com cara de espanto e indiferença para toda a gente, mesmo quando lhe foi próxima na vida.





A ultima vez que a vi, estava sentada num cadeirão, cigarro nos dedos, a cantarolar uma canção infantil alemã:

Alle meine entchen schwimmen auf dem see
schwimmen auf dem see
kopfchen in das wasser
schwanzchen in die hoh



(todos os meus patinhos nadam no lago

nadam no lago

cabecinhas na água

rabinhos no ar)







Quer se queira quer não, há cantos longinquos que a amnésia não mata.


terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Quis o destino que esta que aqui vos escreve, tivesse lido algumas das muitas notas manuscritas de um actor espanhol ambulante e esquecido, depois de terem sido recolhidas, há alguns anos, no pequeno apartamento no bairro de Lavapiés em Madrid, onde o dito passou, sem descendência ou outra família,os últimos anos da sua longa e densa vida.

A história salteada de Pepén, devoto de Santa Catalina de Jaén


Já que imaginações gráficas de tal santa em forma de abadessa, abundavam nas paredes, como marcadores de livros e revistas, encimando até a mesa da cozinha.
Assim disse a polícia e demais entidades quando foram retirar o corpo inerte e nonagenário de Pepén, sem que a pneumonia que o matou pudesse ser condenada por homicídio, como o eram os criminosos dos milhares de livros policiais que se espalhavam pela casa.

Volta e meia, na sua letra miúda, percebe-se que ficou cedo órfão de pai e que a mãe casou de novo e que era mais ligada ao novo e despótico e agiota marido que ao filho, sendo este arrumado num colégio interno de preparação para o sacerdócio e que nas férias ficava moído de pancada pelo padrasto, com ajuda da mão pouco leve da mãe.




Um dia, ainda criança, fascinado pela magia de um teatro ambulante, meteu-se num dos camiões da caravana e só foi descoberto à chegada a Madrid, quando alguém foi desembrulhar os figurinos e as barbas do shakespiriano King Lear. Que se leia, nunca mais soube voluntariamente da vulcãnica família.


E por lá foi aceite como órfão sem abrigo com a ocupação mal paga de faz tudo.

Enquanto ia trabalhando, ia absorvendo o que mais gostava de absorver: as expressões faciais e corporais dos actores e os seus ajustes durante os ensaios, deixando, ao longo das notas escritas pela vida fora, um verdadeiro tratado empírico da arte.



Tornou-se protegido de um actor catalão e com ele entrou na actividade tão corriqueiramente social na altura de irse de putas. Por ele, ficamos a saber que as espanholas eram tementes a Deus e com regras profissionais bem definidas e que as francesas, em larga escala emigrantes para Espanha, eram mais obedientes ao Diabo e com léxico afrancesado inovador.

No pós-guerra deixou de recorrer a umas e a outras e tocante é a sua descrição de relações com viúvas que, durante e após o acto, choravam convulsivamente. Sem “ojo en ojo” , sem nome nem palavras, voltavam às suas vidas enlutadas com vingança no silêncio. São páginas trágicas de dolorosa empatia.



Durante a guerra, paradoxalmente, o teatro ambulante expandiu-se. Entre fome, mortos e feridos, o público queria, Espanha fora, fantasia. Por uma série de circunstâncias foi acusado de ser falangista por uns e republicano por outros.



Foi ferido numa perna e obrigado a disfarçar a dor em audições para companhias. Nessa altura já representava pequenos papéis. Começou a fazer de morto, de morto passou a moribundo e daí a vivíssimo.



Nas suas andanças, conheceu uma bailarina de Ballet Clássico de nome Rosa, nome que se vai repetindo por páginas e páginas, até às últimas, com descrições extasiadas da beleza da expressão das suas clavículas.

Através dessa sua paixão, só correspondida durante pouco tempo dadas as suas permanentes e "francesas" infedelidades (assume-se como putícon), interessa-se pela dança.

Pela forma, supôe-se que só no papel lhe dá conselhos. As frases começam sempre por “amor mío, lo he pensado que…”

Ele, actor do patético burlesco, escreve e escreve sobre a expressão do abandono, do dramatismo através do movimento.

Percebe que a dança é o teatro do corpo e do rosto. Reconhece-lhe a necessidade de interpretação quer em trabalho técnico quer em busca de sentimento interior. Aconselha equilibrio entre os dois. É muito mais que um mero exercício de habilidades físicas,e só está ao alcance dos grandes.



Outro minucioso tratado.

Está num estúdio a ensinar crianças a fazer expressões para a publicidade nacionalista do fulgor chocolateiro espanhol,


quando lê numa revista que Rosa vai viver para Lisboa, casada com um afamado médico português. A letra rasga-se em ódio. No papel, com nódoas que parecem de café e vinho, sente-se o calcar da violência do desgosto. A raiva da perda. A culpa. Transcreve a parte de uma copla em voga que se ajusta:

Rocío, ay mi Rocío
Te ofendo porque te ofendo
Y ahora te voy a matar
Pa que vayas aprendiendo


No meio de um outro caderno, com data muito mais avançada, um recorte de jornal colado, anuncia a morte de Rosa. Mais uma vez, comunica longa escrita com o seu “amor mio”, recordando os seus momentos de conjunta felicidade, agora já de aparência longa



aproveitando para lhe assegurar, para que parta descansada, suponho, que há algum tempo não tem “comercio carnal ni con putas ni con nadie” e mais alguns alívios de consciência que me escuso de contar por serem demasiado privados e por se citarem nomes. Haja algum respeito.

Depois, as dores na perna tiram-lhe a itinerância em palco fixo ou móvel. A perna torna-se um tronco rígido. As linhas tornam-se confusas, indecifráveis na tremura. Lá se vai percebendo que ganha a vida a emprestar a voz de barítono em dobragens e anúncios. Com outro nome.

De vez em quando em riscos de amargura lá volta a lembrar a aventura das suas errãncias, sem acerto em datas ou terras, não tivesse ele em Valencia ido de carro com o seu amigo M. para Valencia.



Os escritos pousam agora na mesa de um gabinete. Uma espécie de letra patrimonial viva, cedida por uns módicos oito dias, para que vidas cheias de sabedoria escondida não caiam no mutismo do esquecimento.


“o publico nunca deve pensar que está a ver um actor ou um bailarino, mas sim uma pessoa que lhe entrou, com o seu choro ou riso, pela sua sala de estar dentro, com o dom de contar a sua história."

Se a memória não me falha.



terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Blogagem solta, dedicada aos cadernos, lápis, canetas e ideias, depois de ter em baixo falado neles e, last but not least, por ter admirado, aliás como é costume, o último post da A. acerca de Isolda, e de ( por ter ficado apeada dado o cancelamento de voos para Barajas na sexta-feira) no domingo e por esforço de telepatia, muito ter mexido neles.

A viagem indiscreta aos universos escondidos



Ver as notas privadas, tantas vezes sem rumo e em forma de rascunho

é o que me resta
é o que te resta
é o que lhe resta
é o nos resta
é o que vos resta
é o que lhes resta

para conhecer os caminhos que levam às obras, sejam elas filhas, primas ou somente enteadas de uma vontade de transmitir o que vai dentro de cada um, já que, raramente, os criadores (em sentido lato) desbaratam por inteiro aos quatro ventos, tudo o que os levou ao parto depois da incubação das ideias, tantas vezes geradas a partir de aparentes insignificâncias.






Estou convencida que cada um só mostra pedacinhos de si e dos seus motivos, deixando aos profissionais (prefiro os amadores) da interpretação a invenção do resto.



E deixem-me dizer desde já que, no caso vertente, acho que obra não tem que ter necessariamente a monumentalidade, a institucionalização do reconhecimento da critica ou da opinião pública, tantas vezes formada a partir de códigos pré definidos como se fossem dogmas divinos cheios de certezas.



A vaidade da sabedoria divina, e sobretudo a dos seus embaixadores, irrita-me, embora, confesso, nunca tenha falado com nenhum deus directamente, não sabendo se serei eu para eles muda ou eles para mim surdos. Esperarei pela minha morte para saber.



Vem a prosa a propósito de achar fascinantes esses meandros feitos rabiscos, essas sebentas da criação.

Parecem-me neurónios agricultores a lançar sementes no terreno da imaginação e a vigiar-lhes o crescimento, a dar-lhes água ou secura, a podar ramos, sempre no intuito que a planta saia perfeita.

Coscuvilhando cadernos privados vê-se que tal ilusión (peço desculpa mas a palavra em castelhano expressa um conceito mais vasto ligado ao entusiasmo e à vontade do fazer) e procura é sempre fonte de obra nova. A criação é uma espiral. O acto de criar não tem pensão nem reforma e é para muita gente uma compulsão.

Matisse nem entrevadinho deixou de sonhar riscos e de, em pequenos cadernos, sonhar prelúdios de formas que já não tiveram tempo de o ser em grande formato de obra acabada pelas suas próprias mãos.



Por outro lado, ouvindo-o, pelas confidências no papel, se percebe que tantas notas de Brahms tinham em mente o seu amor por Clara Shumann: ensaios secretos para um amor escondido.

E quantos demónios de vozes secretas, atormentadas e loucas não estão nas notas de Virgínia Woolf de cuja leitura um estilista desenha traje, interpretando o ambiente interior da escritora, misturado com o tempo que ele próprio vive e de mais que, como coscuvilheira discreta, não posso dizer.



Do conhecimento de uma história vulgar, com os seus labirintos de enredo romântico, se pode anotar, estudar,desenvolver e ponderar, num caderno, a tradução para movimento.



As escolhas que escolhemos, são já, pontos de partida para definirmos o que somos. Postas e desenvolvidas em cadernos, perdem as máscaras. Juntando escolhas e hipóteses, seleccionado umas eliminando outras tem-se o percurso do trabalho.

Uma casa interior, recolhida, silenciosa, fora de qualquer aparato.

Às vezes, as pequenas notas, são, por algumas que já vi, mais autenticas e expressivas que o produto que nos chega. Quantas vezes não se dá mais de si num ensaio, que na anunciada estreia, rodeada de expectativas que quase, quase,quase me apetece chamar de formal.

E, posto isto, que cada um guarde os seus caderninhos feitos de papel, tecla ou pensamento.

Talvez um dia, ao folheá-los tenha a surpresa de descobrir quem foi.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Como o prometido é devido cá segue

Relato o mais telegráfico possível sobre as minhas vivências e curiosidades sobre os Cohen, os Bergs, os Steins, os Witzs, os Normans ...

Considerar os judeus como uma massa fechada e uniforme é tão absurdo como dizer que cada cristão baptizado é rato de sacristia.

Vou por isso excluir já, antes que se faça tarde, os fundamentalistas quase todos de extrema direita, agarrados a um deus cego e autista, incapaz de acompanhar a evolução do mundo.
Dos outros foi tanto o sucesso espalhado que vi, que tentei perceber as origens do fenómeno.

Soube que os primeiros judeus a chegar aos Estados Unidos foram os portugueses, via Brasil, corria o séc. XVII. Estabeleceram-se nas zonas do norte. Ainda hoje há um centro de estudos da cultura portuguesa em Filadélfia.
Durante o correr do tempo, foram chegando outros sempre em estado de pobreza, já que os países que os expulsavam não tinham qualquer pudor em lhes cativar os saldos antes das expulsões. Muitas fazendas públicas e privadas lucraram com as partidas.

Ao contrário de outros refugiados ou emigrantes criaram uma arma de progresso que Martin Luther King sempre lamentou nunca ter sido posta em vigor pelos negros e outros: a educação.
Assim, por muito miseráveis que fossem, todas as crianças sem excepção ou desculpa, tinham que ir à escola, a funcionar, nos primórdios, nas sinagogas. Avaliavam-se as vocações e, os mais endinheirados contribuíam para uma espécie de bolsas financiadoras de estudos mais superiores. Essa geração já formada iria contribuir para a próxima. E assim sucessivamente. Surgiram grandes cientistas, artistas…com relevo para as ciências médicas. De facto nunca conheci nenhum judeu que não fosse hipocondríaco de corpo e alma.

Em meados do séc. XIX, chegou uma horda gigante de judeus alemães.

Começou o desenvolvimento das ciências económicas bem como a expansão da imprensa. Foi o nascimento dos mais baratos e “práticos” pocket books e do incremento das bibliotecas públicas, cuja frequência é uma tradição comum nos EUA.

Já mais para finais do séc., foi a vez dos judeus russos e arredores, com a sua devoção à música e à dança. Não tardou que o território fosse polvilhado de escolas de uma e outra arte. O Ballet tinha estatuto de sagrado.

Percebi, assim, porque é que o maior especialista de Canto Gregoriano em Boston era judeu, porque Daniel Berenboim

tem dedicado toda a vida a divulgar a música como instrumento universal de paz, , porque Leonard Bernstein criou várias actividades no sentido da música chamada erudita se tornar de gosto e compreensão popular, porque fui a um funeral judaico em que tive pena que o defunto não pudesse ouvir a Paixão Segundo São João de Bach executada em sua homenagem, porque a Batsheva Dance Company,

com sede em Israel ,tem dançado em todo o mundo também em missão pacífica, porque foi criada a série Fama, porque grande parte das companhias de dança continua a ser financiada, por vezes em regime de mecenato, por judeus (já neste blogue postei sobre Dorothy Norman, p ex), porque introduziram estas duas artes no cinema, porque as famílias se orgulham de ter um bailarino ou bailarina no seu seio, porque não há festa ou desgosto que não seja acompanhada de instrumento ou baile.

À música juntaram também as artes plásticas.

Percebi porque um colega, judeu praticante, me ofereceu, pelo aniversário, tendo Cristo como protagonista, uma reprodução do mestre dos seus encantos: Durer


Um dia comprei, num alfarrabista, um volumoso livro de histórias e lendas para crianças. Nada melhor para se ver a moral aconselhada.

Percebi que tudo se orienta para o trabalho, solidariedade, trabalho, tolerância, trabalho, luta, não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti, trabalho, não cuspas para o ar que te pode cair em cima, trabalho, nunca digas desta água não beberei mas esforça-te para não a beber, trabalho, cá se fazem cá se pagam, trabalho, quanto mais progredires cá em baixo mais feliz serás lá em cima. Trabalho.

Em algumas dessas lendas e histórias, percebi a origem da metáfora de Steven Spielberg, chamada E.T.

Também percebi o poder detido pelas mulheres na sociedade. Na prática espantosamente imenso e livre, circunstãncia magnificamente descrita, lembro-me agora a título de exemplo, nos romances Loves of Judith de Meir Shalev ou Me and my Michael de Amos Oz.

Começaram por se dedicar às causas sociais e ao ensino.

Foram elas que iniciaram o que hoje se chama de voluntariado. Organizaram a recepção de refugiados (não só judeus), encarregaram-se do tratamento e adopção de órfãos vindos de todos os lados.


Foram impulsionadoras das amizades bostonianas de que também já falei aqui.

São histriónicas, espaventosas, combativas (Bette Midler pode servir de paradigma)


e, entre elas, briguentas. Discutem por causa dos filhos, dos maridos, do trabalho, do cão, do gato, da roupa, do carro, do alfinete. Mas ai de quem ataque a parceira de luta.
Assisti a grandes discussões com ponto final do género “estás com cara de frio, ainda apanhas uma pneumonia, anda ali beber um chá quente.”
“ e tu tens ido ao ginecologista?”
Desconcertantes e por vezes difíceis.


Com os filhos são insuportavelmente claustrofóbicas. Woody Allen fez um genial retrato na parte que lhe coube nas Histórias de Nova Iorque.

Aliás, também nunca conheci gente com mais senso de humor que os judeus. Muitos são os livros e séries de televisão em que gozam e ironizam descaradamente consigo próprios.

Já agora, se há coisa que não me esqueço é de ter uma velha senhora judia a oferecer-me, sem motivo de celebração ou trato mais estreito e só por achar que eu tinha dom para determinada actividade, um caderno em branco com 400 páginas. Disse-me que viria confirmar o preenchimento ao fim de um ano. E veio.

Ainda hoje me lembro, em dias de maior vazio ou preguiça, do tal caderno.
E talvez me tenha também ensinado a gostar de oferecer alguns.

Por tudo aquilo que disse acima sobretudo em relação às artes e às mulheres, percebi porque árabes e judeus não se entendem. Como mulher, mesmo profissionalmente, sempre me foi fácil lidar com os segundos e difícil, quando não incompatível, a comunicação com os primeiros.

Os judeus sempre nos convidaram para as suas festas e casas, tão alegres e simpáticos como os gregos, apesar de (às vezes até divertidamente) neuróticos. E sempre, com abertura e generosidade , ensinaram tudo o que achavam que precisávamos aprender para crescer.

Aprendemos, cada um, a dificil exigência interior, pessoal. Muitas vezes à custa de dor.

Mas nunca nem num grupo nem no outro vi qualquer satisfação com guerras ou terrorismos, muito antes pelo contrário, apesar de ouvir os árabes falar dos palestinianos como, agora vou ser bruta mas realista, os portugueses falam dos ciganos. Todos os que conheci, naquele mundo tão grande e diverso, tinham medo de ser confundidos com eles.

Foi sempre em paz e sem decreto ou lei, que os árabes, judeus, indianos, cristãos acordavam substituir-se no trabalho de forma a que cada grupo pudesse celebrar as suas tradições.

Quem nos dera que as palavras pudessem substituir a violência.
O sangue derramado nunca é Arte ou Vida.

E a morte é um silêncio, para todos, irreversível.






Jazz suite nº 2 finale - dmitri schostakovich

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

(Lizzie, ou seja, eu, fala com Élis, sendo todas nós a mesma e única pessoa. Assim julgamos, claro)

Modalidade de solilóquio estremunhado de quem não tem outro remédio senão acordar, pós férias, em calendário de algarismo novo e em dolorosa experiência de, pela primeira vez, usar óculos de ver ao perto.

Valha-me Deus ou outra qualquer divindade, mulher, que face a tal cara, qualquer transcendência, por mais absurda que seja, serve!
Sempre te disseram, ainda gatinhavas como este novo ano, que tinhas nascido com espírito de contradição. Com vontade de viver ao contrário das maiorias das gentes ordeiras: ele sempre foi trocar letras, trocar horas, viver as noites com energia de alvoradas.



Desta vez esmeraste-te. Tu e os outros, que mais coisa menos coisa, andam ela por ela no rebuliço contra a correnteza.

Sais do espectáculo e, em vez de ires, em voz alta e exuberante a desafiar os julgamentos do mundo, comer churros com chocolate quente, dão-te os apetites de gambas panadas, estacionadas numa travessa, timidamente recolhida na mesa mais discreta, relegada para o canto mais escuro do bodegon. Dirão os mais aventureiros ou criticos, tratar-se da atracção pelo abismo.
Lá foste mastigando e dizendo aos três outros suicidas enfardadores de toxinas como tu, que tinham performado tão bem que o público até se tinha esquecido de tossir durante o espectáculo.

Veio um anjo da guarda, a tempo de a gula provocar mais estragos, puxar-te pelo braço, o mesmo anjo que chamaria uma espécie de Anjos da Noite a preços módicos mensais, cuja agente loira repetiria coño como um tique nervoso, face ao teu pãnico irracional e fora de idade de agulhas, enquanto te punha uma chuva lenta de soro a desaguar-te na veia.


Esse mesmo anjo ficaria a olhar para ti, de olhos atentos, míopes mas não daltónicos, à espera que a tua pele, ao fim de roeres, com gosto, apetite e voracidade a sétima cenoura consecutiva, mudasse de cor. Bem ouviste, ao telefone: Élis? Acostada en el sofá volviendose coneja. Sí Kafka estuviera aquí, a lo mejor,bueno, Metamorfosis II, no?

No dia seguinte foste, com a tua capacidade autoregenerativa, para a rua, para el jaleo de la calle, na já eufórica celebração da nochevieja.
Ao entardecer, luzes exorcizavam temores ancestrais com desejos,


indiferentes às doutas, proféticas, messiãnicas e redentoras opiniões políticas de diversos quadrantes que os agentes se esforçavam por incutir na opinião pública, num ou noutro canal de televisão.



Alguns seres sorridentes e confiantes davam a impressão, que, por horas, se vestiam de pessoas. Um dia destes tens que botar post sobre este novo movimento madrileno, quiçá também presente em todo o ocidente.



A Consuelo, ressuscitando o seu espírito enfermeiro, foi-te aconselhando dieta para gastritis, mas se convergiste na sopa, em contradição, devoras-te perigosamente três empadas de frango, e que grandes eram…, com pimento e picante incendiário, regadas com uma água gaseificada de Fuente Santa, com travo rochoso de Toledo, estagiada em garrafa de verde vidro , colheita de 2006.

E não ficaste tonta com os encontrões da multidão aos magotes. Afinal já estás habituada ao costume espanhol de andar em grupo, todos muito juntos e quem quiser que se desvie.
E foste para casa que, naquela rua e em época de festejos, não é mais que um mero canto, protegido por paredes de papel, do exterior.


E não, não vestiste roupa interior vermelha, a lembrar vagamente os putíclub se fosse tal lingerie acompanhada de cinto de ligas (lembrança e comentárioantropológicamente alarve que te custou uma admoestação desdenhosa por parte dos indigenas ),



consoante a tradição castelhana, nem traje de gala a ver a Deus, boutique ou estilista.


Foste, antes vestir uma idosíssima camisola comprada no Alaska, em dois tons escuros de azul, já puída em zonas de maior atrito. Porque te apeteceu coordenares-te com a invernia. Não por o azul ser obrigatório na passagem de ano portuguesa.

Também não bateste tampas de panela, nem comeste os doze bagos, não passas, de uva, nem ficaste toda a noite a pé, reprimida face à ditadura da celebração.

Ficaste antes, a perorar, extasiada, sobre o filho de vinte anos de mulher que não encontravas há anos e que ia de compras com a mãe e que agora está em estágio como violoncelista numa grande orquestra de Madrid e que tem umas mãos lindas em formato e gesto, e um ar sereno e perverso como o Tadzio da Morte em Veneza e um ar de romantismo vago, literariamente vintage, vê lá tu o que ele cresceu e



-nuestra Élis además de portuguesa e coneja se vuelve pedófila!

E se cedo te deitaste também relativamente cedo te levantaste, para fazer viagem de regresso, não percebendo se, cidade e estrada fora, era dia de ano novo ou teria havido um ataque nuclear, tal era o vazio, tirando um ou outro sobrevivente, de gentes em circulação.



E para fechar, não vais pôr aqui nenhuma valsa de Strauss, nem polka efusiva. Os novos que acreditem que a mudança num número, muda os passos do mundo.



Apetece-te antes, valsa sim, mas de Schostakovitch, aquele que, consta, durante a vida poucos anos teve a que se pudesse, normalmente, chamar de felizes.

E se te está a doer a cabeça, tira as gafas, ai credo, mulher, em português diz-se óculos. Que coisa...




valse nº2 - schostakovitch