quarta-feira, 12 de agosto de 2009

... e antes que me esqueça...



é melhor escrever a lista:

Plantas

Não me posso esquecer de deixar um recado, bem visível e colado na porta, para regarem as plantas aqui, as deste gabinete.

Não quero que sequem nestes dias em que vou despoluir a alma de sopros quotidianos infestados de tecnocracia.

Vou ver se varro a memória deles para debaixo do tapete, que sozinha sou pouca para purificar definitivamente o hálito que lhes sai das bocarras com dentes afiados na sua ilusória importância. Cada tempo tem os seus carrascos.

Cal


Antes de fechar o formigueiro, ainda tenho que ir comprar cal. Já gastaram a que lá havia. Cal daquela bruta e antiga em pedaços toscos. Fragmentos esquinados duma pedra maior. E arranjar óleo do mais barato. E lixívia.
Foi coisa que aprendi na infância com a dona, como é que se chamava a senhora caiadeira dos ventos suões caiados? Agora não me lembro.

Como alentejana que era devia ser Bia. Foi ela, que era mulher de truques, que me ensinou que misturando azêti ó óleo na cal pode-se agenti asfregar à vontadi que nela na sai nem suja a rôpa. E com a lixívia na lhe entra o verdeti.
Não nos fará mal nenhum pegar no pincel e caiar o que ainda falta.

Ver o branco instalar-se, entrar em diálogo sulista e milenar com o sol. A cal tem o dom de beber as cores do dia e de se rebelar contra as escuras da noite.

Ficaremos a tomar a nossa bebida na calma do cambiante azul, aquela hora em que a luz parece indecisa e a noite acorda. E, concordamos, que vista de perto e no granulado da parede, nos parece ilusão de neve.


Óleo de linhaça

Já agora é melhor comprar também mais óleo de linhaça para pincelar as madeiras quando nos formos embora daquele prefácio de oceano.

Além de tirar o mau olhado, esconjura o caruncho e outros intrometidos e quando voltarmos e abrirmos a porta, cheirará às cabanas uterinas das florestas do Massachusetts. Aquelas em se poisa e se tem a sensação de entrar no âmago mais estável e aninhado da terra.

Sempre em forma de fresco postal ilustrado. Ou calendário paliativo.




Parece que no Texas a linhaça era queimada para chamar os femininos espíritos terrestres, quando os aéreos se soltavam para as suas imprevisíveis traquinices.

Farinha de trigo





Encomendam-me um saco de vinte quilos. Lá não há em tal porção.

Há quem tenha descoberto que no acto de amassar a matéria do futuro pão, de lhe sentir o cheiro e a textura, está limpeza maior dos pensamentos encharcados em História de Arte, de projectos em estiradores de linhas que se quererão fixas e úteis, das mágoas que a vida deixou penduradas na alma.

Como um pára-raios que engole as tempestades.

Ficaremos, urbanos, a admirar a força descoberta daquelas mãos. A cadência da calma violenta do movimento. Num cenário quase barroco a condizer.



Talvez seja uma das formas supremas de comunhão: comer-lhe o pão que a vida lhe amassou.


Dexter



Ainda bem que não se esqueceram de trazer os dvds do Dexter. Não tenho tido tempo de ver e anda-me a apetecer crime. Ficcionado, bem feito e longe da porta, claro.

Um ai que horror sabe sempre bem ao nosso recôndito lado negro. Sublinha-nos a normalidade. Um penso rápido para a raiva amestrada.

"Royal Highness"


Do Thomas Mann. Não me posso esquecer de levar.

Andei tanto tempo à procura e um destes dias, ao entrar na loja de uma modesta antiquária, o livro chamou-me. Escondido num canto. Folhas amareladas ainda por abrir.

E outro, de capa azul e dura com letras douradas: The best american bedside stories 1870-1940. Mais setecentas páginas intocadas para cortar. No índice consta um conto de título September 21th.

Será tal prosa de ficção científica em que se prevê o meu desastrado nascimento?
Desculpem-me, mas talvez seja o primeiro a ser lido.

Para além da curiosidade específica e moderadamente egocêntrica, quais seriam as histórias de encantar com que se adormecia em tais conturbados anos?


E aqueles três livros castelhanos em que fiquei interessada. Pedi para trazerem. Trouxeram. O mais natural é que não os leia todos. Nem esses nem a pilha nova que tenho na minha morada . Talvez só leia um. Ou não acabe nenhum. Talvez consuma o Tempo gozando-lhe a passagem sem o preencher. Sem lhe dar obrigação ou ordem. Vício ou destino.
Sei lá porquê, mas um livro aberto, descontraído e acarinhado numa cadeira ou num sofá sempre foi cena que me inspirou ternura. Uma empatia funda. Uma paz feita de silêncios consentidos.



"Falling in love again"

Talvez me dedique a observar com detalhe os diversos catálogos em cenas vivas. Afinal estamos rodeados de personagens calados na prosa ou na poesia, no pincel ou no movimento, no filme ou na encenação.


Onde é que terei guardado aquela colectânea de canções da Marlene Dietrich?

Já agora vem a propósito daquele casal monossilábico que costuma ir á tasca que a exigência uniformizadora transformou em restaurante de azulejo a meia altura. Manda a moda que tenha Sabores no nome. Será Palácio dos sabores? Adega dos sabores? Cantinho dos sabores? Garfo dos sabores? Mar dos sabores? Agora só me lembro do sea food, pescados del dia, grelhados no carvão, abaixo do nome. E do chouricinho na cadeiradazinha feita com peixinho acabadinho de pescar, fresquinho.



É que me deu alembradura de ligar a Falling...naquela voz arrastada e rouca, a propósito de um tributo à Pina, ao tal casal que frequenta os Sabores.

Andarão algures entre os quarenta gastos e os cinquenta e cinco precoces. Ele tem o olhar entre o ausente e o enfastiado, ela parece viver debruçada sobre o prato e com tal bulimia aflita que, não parando o caudal da ansiedade, ainda acabará por devorar o seu próprio coração.

Como é que se… enfim…encena a antropofagia da alma? Então…o preto é o oposto do branco e o vermelho…o vermelho… o vermelho...

Chinelos e pijama já infelizmente vintage



Ainda não estão lá os meus velhos chinelos nem o pijama tão antigo como eles. Nem uns nem outro utilizados para dormir. Só para conforto repousado num bom chá ou whisky, noite bem entrada.
Já sei que me vão dizer que pareço a Pata Margarida em pose de very informal british Lady dos anos cinquenta. Que me faltam os rolos e a rede na cabeça. Ouvirão um correspondente never mind para compor a personagem. Apesar de tudo, há que manter a digna coerência.



E assim de repente não me lembro de mais nada.

Não vale a pena pôr na lista os desejos de que nada de preocupante ou grave aconteça (nem a mim, nem a nós, nem a vós), que haja paz e sossego pelo menos enquanto estiver ali e enquanto uma das minhas cidades me abrir, a seguir, as ruas e gentes e artes.


Mas esses são itens sempre reservados à lista escrita na agenda secreta dos deuses.

Sejam lá quais forem as suas formas ou os seus nomes.






Então, até um dia destes!







falling in love again - marlene dietrich