terça-feira, 12 de agosto de 2008

A loucura da Mona Lisa, coitada…



Não fico neste quadro nem mais um instante!

Sabem lá o que é viver tantos séculos aprisionada na obrigação de ser perfeita, de ser única, de manter este meio sorriso permanente e o que me doem as mãos atadas a esta imobilidade.

Estou farta de estar nesta sala fechada, sem mar, nem terra, nem céu à vista. Nem o que se encontra atrás de mim posso olhar. Sei lá onde vão dar os caminhos. Ai de mim, que a minha paisagem são só estas caras e estes corpos que desde a abertura até ao fecho do museu desfilam em frente aos meus olhos.

Talvez uns se pareçam a rochas escavadas pelo vento, outros luas de pincel diminuído de tinta, outros saídos de um pintor hesitante, outros tingidos por um balde de sépia, outros fruto de uma mão distraída. Sei lá quantos tão desiguais que nem a mão do meu criador apanhou. Bom, valha-me isso, tenho um criador fixo, não preciso de inventar fés para me dar sentido.




Lizzie, eu sei que me achas irritante, não disfarces, não encolhas esse ombro direito, não tombes a cabeça para a esquerda. Ando há tanto tempo a olhar as pessoas nos olhos, a estudar-lhes os trejeitos que não há expressão que me iluda.

Nós, os quadros, temos essa sina: temos tempo e ninguém nos vê como espelho. Dissimulamos a verdade que existe num primeiro olhar antes que o pensamento dirija e pense o segundo. Ou o terceiro. Ou o milionésimo já com olhos postiços arranjados pela ciência. Já perdemos o dom da intuição. Já temos a aborrecida rotina da sabedoria instantânea.




Já chega! Quero ir pelo mundo móvel! Vou pedir a um qualquer artista que me dê pernas já que Leonardo me amputou de tal parte. Ou peço-as emprestadas a uma qualquer fotografia descontraída. Apetece-me ser atrevida.



Não preciso de pernas muito técnicas.




Quaisquer apêndices me servem para os meus fins. Dispenso-os para outras habilidades fora da minha dimensão. Só quero sentir na pele o fresco que me foi vedado à nascença. A sorte que vós, os passageiros e mortais têm, a de provar as temperaturas do mundo.




Quero ir ouvir conversas íntimas de outras artes, outras vidas para além da terebintina, dos pigmentos moídos em almofarizes por aprendizes imberbes e dos tratamentos para que não se me seque a tela.



Quero saber o que é fechar os olhos e dormir. Já os ouvi falar desse estado de evasão em que se interrompe a vida.





Ouvi dizer que aí não existem leis e que até a terra pode ser bola de jogo a saltar pelo universo. Talvez até voe, como o Leonardo sempre sonhou voar.

Quero saber o que é o amor.






Essa palavra que vos ouço tanto e que me parece reger-vos a vida. Alguns nem olham para mim: olham-se uns para os outros nos olhos, riem de coisa nenhuma ou ficam com um sorriso parecido com o meu. Quero gargalhada que esconda as desditas. Quero saber o som do brilho nos olhos e a luz que acende um coração que bate mais forte. E quando as minhas mãos se soltarem, quero sentir o que é ter uma mão estranha na minha, aconchegada nos meus dedos.

Lizzie, pára lá com essas arrumações e não me olhes com esse ar condescendente e não feches ainda o livro. Não me espalmes em folha contra folha. Já me falta o ar. Deixa-me sair também deste papel brilhante. Deixa-me multiplicar-me na minha libertação de todos os livros a voarem de todas as estantes. Quero um vendaval de imagens e letras na alma de todas as pessoas.

Não fico aqui nem lá nem mais um instante.


Quando voltares dos teus rumos de dias diferentes, talvez voltes com olhos saudosos das luzes que te brilham na memória. E talvez sorrias, talvez te espantes, talvez levantes as sobrancelhas e abras a boca.





Ai, Lizzie, nem para os quadros o correr do tempo trava…ou se extingue.


E não te esqueças do protector solar, que a tua tela também não nasceu ontem.





E, já agora, ensina-me a andar como se tivesse sido pintada neste mesmo instante. Com toda a vida para me soltar.


Sem molduras







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terça-feira, 5 de agosto de 2008


Não sei se por ideia ou promessa, entre alaúdes e violoncelos, vou tentar dobrar este intricado cabo das tormentas da história que é


o amor entre o som e o movimento





É tudo uma questão de ordem: a música são os sons ordenados no tempo e a dança, fazendo a média geral dos pensadores, é a ordem dos movimentos do corpo dentro de um determinado espaço e tempo. Em vez de ordem, apetecia-me botar expressão, mas de pensadora maratonista não tenho nada.

Com ou sem ordem e método, a mente reage emotivamente aos sons:





sempre se utilizaram os tambores para exortar à guerra, à actividade; os sopros para celebrar vitórias e/ou empolgamentos e nunca me esqueci que os sinos, tão versatilmente virados para a transcendência, têm origem nos chocalhos a adornar os pescoços das vacas, chamamento para que os deuses não se esquecessem da fertilidade das ditas mais da terra geradora de riqueza. Ainda hoje existem tribos índias que agitam tal adorno para chamar a chuva.

E o corpo reage fisicamente ao ritmo.





Com ou sem pé de chumbo, ortopédico ou similar, a tendência é para bater esta extremidade ou abanar a cabeça ao som de estruturas repetidas e cadenciadas. É impulso sem idade. Não requer grande técnica e faz bem.

Talvez por isso, toda a gente associe a dança à música, o que está longe de ser verdade completa, olhando, mesmo de soslaio, para a História e para outras culturas que não a nossa.

Por estas bandas europeias, durante séculos, compunha-se música para ser dançada por pessoas, em bailes de corte , em festas de feira ou rituais religiosos, com o intuito de que todos nela participassem (tecnicamente falando, danças de sociedade),




ou ordenavam-se sons para serem dançados por profissionais, muitas vezes para entreter o público, enquanto os cantores ou actores mudavam de roupa. É a dança de exibição.

Os compositores cingiam-se a regras muito próprias que iam mudando consoante o avanço e as modificações das técnicas de dança: quando Maria Taglioni transformou as pontas em arte, (até aí eram uma espécie de habilidades circenses), os compositores ajustaram tempos e modos a esta nova forma de dançar: com limitações por um lado, mas com outras excelências técnicas, por outro.


(aqui Maya Plisetskaya, um dos expoentes máximos do ballet romãntico do séc XX)

A música para dança deixou os floreados barrocos e clássicos (felizmente recuperados mais tarde) e entrou na emotividade e subtileza do romantismo.



Isto tudo para dizer que a dança estava dependente da música. Compunha-se e depois coreografava-se.

No princípio do séc. XX, houve uma corrente que libertou o movimento. A dança tornou-se arte autónoma. Interessava estudar a expressividade do corpo, a sua capacidade de contar histórias ou, tal como na pintura abstracta, reflectir sobre si própria, sem referências narrativas.

Ou seja, a dança deixou de ilustrar a música.

Em muitíssimos casos

a música passou a ilustrar a dança.

Dando um exemplo pratico, faz de conta que:


ando eu na minha vidinha e deparo-me com uma pessoa, com um livro, com uma frase, com um quadro, com um olhar, com uma história, com um filme, com um post, com o mar, com uma nuvem, com um som, comigo ao espelho, com o vizinho de costas, alguém e qualquer coisa e apetece-me traduzir o que vi, penso ou sinto em movimento.





(escrevo penso ou sinto porque não sou suficientemente intelectual para me pôr a estudar o movimento sem mais. Gosto das coisa narrativas ligadas à emoção e pronto, quem torto nasce…)

Nesta minha cabeça começo a desenhar movimentos no papel daquela circunstância que me tocou. Para uma ou para trinta pessoas. Não interessa. Como não interessa se lhe componho uma história ou não.





Hoje a arte da dança, como todas, é filha bastarda das normas e legitima da liberdade de inventar.

E, no passo seguinte, posso achar que os movimentos isolados, sem som, transmitem melhor o que quero dizer, perdão, expressar, perdão transmitir, ou simplesmente mostrar. Ou posso ir à procura de um ruído ou música(s) que sublinhe tudo. É um processo de lembrança-descoberta-eliminação.



Até posso encomendar a um compositor uma música especialmente composta para estes movimentos que inventei.

E ninguém me impede de impedir que a música se adeqúe ao tempo da dança: a movimentos lentos, pode corresponder uma música tresloucada de rapidez ou ao contrário, que nesta vida nem todos os corações batem ao mesmo compasso e tantas são as situações paradoxais.

Também me pode apetecer coreografar um texto, ou deixar que o texto me coreografe a mim.

Lembro-me de Wagner, do que achava que a arte não pode viver às fatias e que todas se relacionam com todas. Chamava-lhe ele Arte Total.





E lembro-me do adorado Tchaikovky, que, embora seguindo o libreto das histórias, sempre defendeu o rompimento das barreiras que fechavam as sinfonias, os concertos, as sonatas à dança.




E daquele que não gosto muito, Stravinsky, o mais revolucionário.

Por isso lhe digo, a quem me pediu alembradura, e olhando uma parte da coerografia, que eu escolheria, para aquele lamento, alaúde ou violoncelo.

Tem que ser um instrumento envolvente que se abrace, com um som que acaricie.

E também penso em quem irá dançar tal coisa. Se se dará bem com aquelas nuvens de som. Uma questão de respeito, já que são os bailarinos que a irão sentir do lado de dentro da pele.
Que, cada um à sua medida, lhe dará cor.
Porque quer no ballet, quer no contemporâneo, tudo vive da interpretação, a forma como se doseia o trabalho com a destilação do que se é capaz de sentir.




Mas, vindo primeiro a música ou a dança, e agora sem fazer de conta, a lição é sempre a mesma:

como na vida, o todo é sempre a soma das partes!