segunda-feira, 16 de junho de 2014


Não, lamento, esta não irá ser uma prosa sobre futebol nem sobre qualquer problemática relacionada com o  esférico.


Há limite: nego o provérbio  que diz que " o olho habituado ao pó depressa de acostuma à areia". Pronto!



  É mais sobre um pianista maneta (perdoe-se-me a grosseria da classificação) e um compositor que sofria de tédio crónico.



 Convenhamos, ao que se diz, que Paul Wittenstein, um dos irmãos do célebre filósofo Ludwig do mesmo apelido (  graças ao qual a filosofia passou a figurar em t shirts e  bonés), nunca foi criatura que gostasse de ser contrariada.


Nasceu numa família vienense, convertida ao cristianismo, com fortuna correspondente ao nosso contemporâneo Bill Gates.

 E de tão rica  conseguiu até  comprar aos nazis,  para duas das suas filhas, a licença de morada em Viena apesar dos antecedentes judaicos como o Stein denuncia.


Paul, já em criança, habituado a ter em casa as performances privadas de Richard Strauss, de Mahler, de Brahms, entre muitos outros, decidiu que queria ser pianista, ou melhor, dominar o piano, quando fosse grande.


Acontece que, mais tarde e por amor pátrio, foi combater pelo Império Austro-Húngaro. Perdeu o braço direito na Polónia, foi feito prisioneiro pelos russos e enviado para a Sibéria.

Abreviando, ali, através de contacto com músicos russos também eles reclusos e alguns como ele incompletos, manteve a sua determinação de continuar a ser pianista.


Quando livre e regressado ao ocidente, decidiu  contratar, com quantias milionárias, vários compositores, como Hindemith, Britten, Prokofiev, Ravel, para comporem partituras, sobretudo  concertos para piano, reduzidos à mão esquerda. E pedais, obviamente.

As somas recebidas pelos compositores contrariaram o quase eterno princípio de que  toda a gente envolvida com Arte é rica menos os artistas.


Adiante.

Nesses contratos figurava uma cláusula de exclusividade: ninguém as podia interpretar enquanto Paul fosse executante e, em alguns casos,  vivo apesar de retirado.


Não tocou a maior parte delas por não as "entender". Dava toda a liberdade aos compositores desde que não fugissem aos cânones  de harmonia, forma e estilo do séc. XIX. Os finais deste eram a fronteira. Paul não gostava de modernices.

Dizem as más línguas que, de facto, não conhecia nem a obra nem a personalidade dos contratados. Era mais coisa do som do nome.


Muito mal comparado, claro, era como se eu contratasse o Rodrigo Leão à espera que me saísse Tony Carreira. E vice-versa. E por exemplo.

Por vingança e despeito, ou não (só o próprio saberia), Prokofiev,


 afirmou que que a perda do braço tinha sido para Paul uma sorte. Conseguia disfarçar o péssimo pianista que tinha sido com as duas mãos em acção e que mais não queria, assim daquele modo amputado, que conseguir um protagonismo mundial que em condições normais nunca estaria ao seu alcance. Paul não passava de um amador delirante sem talento. Como tantos outros.




A briga com Ravel, levantou uma poeira entre autores e interpretes que ainda hoje não poisou. Digamos que é o fulcro desta prosa.

Ravel era o mais apetecido por Paul.


Era compositor cheio de honrarias, cabeçalho de imprensa, recebido com fanfarras, frequentador dos mais ilustres salões europeus e americanos, com aura de excêntrico no vestir, sobretudo na paixão por sapatos (que conjuntamente com os pijamas, lhe eram fétiche),



 e nos hábitos,  acompanhante (consta que não era amigo nem inimigo de ninguém) de pessoas tão invulgares e poderosas no meio como Ida Rubinstein.


Fazia questão que se soubesse que desprezava a vida e obra de Beethoven. Entre outros despenteados.
Resumindo, preenchia o catálogo do que os ingleses chamam de snob.

O mito agigantou-se quando compôs o Bolero, considerada a música mais sensual do mundo também ilustrada nesse sentido por outro Maurice, o Béjart,  mas, de facto, inspirada pelo ritmo repetitivo das máquinas nas fábricas.




No fascínio pela potencialidade artística da maquinaria, Ravel foi bem testemunha daquele tempo.

Ravel viu as suas finanças desafogadas até ao fim dos seus dias e mais algum para levar para a morte e escreveu uma peça de vinte minutos: Concerto em D para a Mão Esquerda.

Ao ouvir a interpretação de Paul, Ravel acordou de uma das longas crises de tédio em que não fazia nada senão aborrecer-se com tudo e deambular cansado com o facto de nada fazer ( dizem as más línguas que esta prostação fazia parte estratégica da sua imagem de marca e seria longo dar aqui episódios caricatos). Também a coscuvilhice tem limites.


Não reconheceu nada do que tinha escrito. Paul tinha modificado a sua obra desde a essência até aos pormenores.

Ravel cometeu um acto impensável e inesperado: irritou-se em público e chamou a atenção a Paul.

Paul terá respondido textualmente que os interpretes não são escravos! ao que Ravel respondeu que os interpretes são escravos!

E abandonou a sala.

Esta breve troca de palavras criou raízes nos que vão à fonte beber sem moderação.


E lançou guerras, práticas ou teóricas em que uns e outros ostentam bandeiras em que, não raro, a maior vítima é a própria Arte. Já evadida e longe do chão do palco. Sem pertença ou submissão.

A que se ama e admira sem lhe reconhecer um nome.