sexta-feira, 28 de março de 2008




Do matinal verbo baseado em atento sentir





Ai senhores que me não são ainda longe na lembrança os campos de Brozas e da imagem de doce cavaleiro de Castela, que chegado com atraso do leito e olhando as damas sentadas à mesa da primeira refeição do dia e mais olhando livro de notas, óculos e pena pronta, resolve, como turista das almas que costuma ser, divagar em voz de rouquidão matinal, sobre a beleza própria das mulheres assim sentadas em repouso e quando dedicadas ao solitário acto de ler ou escrever.






Palavroso e eloquente, como que possuído pelo espírito místico do lugar, trova ser tal visão raro momento de graça, inspirador da mais alta contemplação, pois que se são as mulheres nas restantes horas, para os homens, insondáveis nos intentos e nos sonhos deles, quando debruçadas nas sábia práticas, criam em redor uma esfera tão intima e misteriosa na calma das feições, que parecem ter o toque da divindade mais imaculada. Supõe-nas num palácio de que só elas sabem a morada.






E mais diz ele que pegando num livro e embora quedas, fogem do lar e obrigações não notando os maridos, ou outros de estatuto, que assim deles elas se invadem e vingam com a capacidade de imaginar mundos que não têm mas com que sonham. E segue récita sobre a Emma Bovary que em cada uma mora, traindo-se no ligeiro franzir do sobrolho cabeludo.




Diz ele ainda, sem recato, que olhando a posição das femininas mãos e a pose melodiosa do corpo, as ama com fervor celestial, pois que parecem desprendidas do mundo enquanto os homens no douto afazer, denunciam o seu mester de dominar o mundo, tal é a guerra conquistadora que lhes corre nas veias.





E depois de às damas se lhes ter atenuado o espanto face a tal escorreita prosa, eu, humilde, remeto para a Senhora Dona Ilustríssima Emma de Larbos na sua pertinaz referência à imagem das mães quando ensinam as primeiras letras aos seus filhos, fazendo cópia do seu dito mãe criadora do corpo e do espírito, como glosou num comentário neste meu livro das horas.





ao que ele responde ser tal benesse coisa que não se esquece pela caminhada fora marcando a alma com a flor da suprema ternura.








Malvados são os homens que de tal se esquecendo, com o seu desprezo ou ganância, ficam com os sentidos secos como o deserto, não agradecendo nem em amigas, esposas ou filhas a graça que a eles lhes foi concedida.





E depois de tragar tudo o que havia na mesa, levantando-se e ajeitando a armadura preta de pano turco, deixou as damas em seu sossego





atribuindo-lhe elas tal estado, não sendo varão de engolir ou cheirar nada que lhe altere a razão, à fonte de S. Gregório, potenciadora talvez, da beleza que lhe vai na barbuda alma.






E, tendo eu também bebido de tal verborreica e arcaica fonte, como podeis intuir, muito seria meu desejo aqui botar centos de quadros e riscos de todas as eras que bem lhe ilustrassem o atento e devoto pensamento.








Ficando-me por aqui, vou, em apressado trote devorar o fim de mais uma história de encantar, para morada de que só eu, como vós quiçá da vossa, possuo a chave do segredo.







segunda-feira, 24 de março de 2008

A janela da viagem









As viagens tornam a memória indiscreta.
Ligo a ignição e lembro-me de muitas partidas: aquele momento irreversível de partir, porque mesmo que se arrepie caminho, já lá ficou como um selo: a intenção e o acto de deixar para trás o que lá se viveu.


Sei lá porque é que me lembro de forma viva e nítida do rapaz fardado de bancário, que indiferente aos balanços do metro, não despegava os olhos do livro obeso. Tinha ar de quem partia para o sítio onde nunca irá. Exilado discreto num campo de letras.







Quantas vezes parti de Lisboa? Quantas vezes em mim se transformou a cidade numa massa estanque, segura e sustida pelo Tejo, embrulhada num movimento cristalizado na memória. Neste caso só tem vida o que se vive. Quantas vezes lá deixei, paralizada a minha idade?
Não corras tanto, não vai ninguém atrás de ti, é um sussurro conselheiro vindo de um recanto de um neurónio escondido na sombra da lembrança. Volto a sorrir. Volto a mentir na rapidez compulsiva das rotações.







Vai com cuidado, não corras…
Corria só na liberdade que vivia naquela casa, férias e visitas, lá ao fundo do verde, ponto de cal na origem, na aprendizagem de correr solta.







Voltou a tornar-se memória, quando ainda a vejo pelo espelho retrovisor e ainda memória mais assente quando a curva a, ou as, apaga.


Passo a fronteira, agora morta de vigilantes, para onde não nasci com vocação de ser estrangeira. Só mudo as palavras de acordo com os olhos dos que me esperam.


Num sítio com cheiro antigo.







A pedra exala um perfume teimoso de tempo. Convento que se cansou da clausura e se abriu ao mundo. Andam por ali muitas eras com luz comum a condizer. Entramos num mundo sépia que não vivemos.






Já não nascemos a tempo de conhecer aquele vagar. Vamos ali pedi-lo emprestado. Sem horas, a não ser o anunciado cante a palo seco da Paixão, sexta-feira às três da tarde, por uma cigana doméstica no flamenco choroso.








Nem que bebesse uma pipa da adega a poucos kilómetros, onde existem portas que parecem famílias,






teria tal voz sofrida, rouquidão tão arranhada no sangue.



Há-de ser no sábado, que as mulheres deixam os maridos e filhos em casa e invadem por umas horas, o terreno do vinho em grande algazarra de cantos e línguas soltas. Vestem-se de freiras possessas por Diabo doido, e emborcam uma espécie de sangria até o corpo pedir dança à vista do monumental e sóbrio cruxifixo.








A chefe da confraria tocará o sino de recolher da festa sem nome fixo que se perceba.


Na cidade próxima, entre tapas, ouço da boca de um professor improvisado, a lenda medieva destas gárgulas, aqui amante fugidio,








depois de ter deixado a amante com um filho nos braços, mulher que mãe, se tornou indiferente a amores antigos e legítimos.






E perde-se o tal vagar com o regresso, motor ligado para o comum dos dias que reclamam pressas, horas marcadas.


Vive devagar, não vai o futuro atrás de ti.

Para corrida, já basta a do tempo.



quarta-feira, 19 de março de 2008



Redacção

A Páscoa


Para já agente não gostamos da Páscoa! Mas temos amigos que gostam e dizem que a Páscoa é muito importante pa todos.

Quando éramos mais pequenas do que estamos hoje agente foi à catequese mas só foi poucos dias. Agente tínhamos medo e gostávamos mais de ir andar de bicicleta e agente já estávamos a aprender a ler e a escrever mais a fazer coisas parvas como pôrsse cus pés pó lado e nos bicos mais os trabalhos de casa da escola que mandava a professora porque dávamos muitos erros logo à nascença.

Agente tínhamos medo porque agente lembra-se de ver homens dependurados mais outros espetados com setas espalhados plas paredes





e uma senhora com cara de má dizia que o senhor tinha morrido por causa de nós e agente num se lembra de ter feito mal assim daquele que mata pessoas nem que faz sangue.




Agente só dava carolos no nosso primo Jorge mais na nossa prima espanhola Concha porque nos chamavam Batata e Ojuda. Agente também tinha medo da D.Belarmina que era porteira e andava com o senhor pendurado ao pescoço e disse que o senhor tinha levado o nosso namorado pequenino como nós, Sérgio pó céu e o céu fica muito longe e não podíamos ir lá buscálo nem o pai dele que guiava aviões.





E a senhora com cara de má deu um livro e agente abriu e ficámos zangadas porque tinha lá uns homens de barbas e vestidos cumpridos a queimar um cordeirinho e agente gostávamos muito dos cordeirinhos e contámos ao nosso avô que abanou muito a cabeça porque não fazia mal aos cordeirinhos nem deixava fazer. Agente achava que em vez de andar a matar cordeiros de vários rebanhos valia mais matarem-se a eles.

Agente também não gostava que dissessem que se fizéssemos mal íamos pó inferno.
Já chegava ficar de castigo.






A senhora também dezia que os judeus e outros que não nós eram muito maus pós meninos e para as meninas mas quando fomos mais crescidas do que somos hoje agente conheceu muitos e eram iguais a nós e alguns trabalhavam no dia de Natal porque não acreditavam no Jesus e os do Jesus trabalhavam nas festas deles e não zangavam-se.

Naquela terra grande anda muita gente sempre a chamar por Jesus que eles chamam Jizas e outros também dizem Jizas e fazem mal às pessoas que têm a pele mais preta ca minha. Agente achamos que o tal Senhor Jesus não tem culpa nenhuma destes feios.





Também quando éramos crescidas tínhamos um amigo que era padre e se ria muito cum aquilo que agente dizíamos e agente chamava-lhe o bom gigante




e gostava muito de vernos aos pulos e não se importava com o Deus das pessoas desde que as pessoas não fizessem mal às outras porque as pessoas já nascem más e sempre hão-de ser porque sempre foram mas mesmo assim ele gostava delas e ia ver os condenados pelas pessoas ao inferno.




Agente acha que ele era bom professor de Deus mas nunca nos conseguiu ensinar mas éramos amigos à mesma, porque ele tinha cara de bom. E achava que as mulheres eram tão importantes e inteligentes como os homens e sofriam muito na terra grande, na terra pequena






e em terras em que o Deus é outro ou o mesmo com outros diplomatas e políticos e se calhar não mandou fazer nada daquilo e os homens é que se lembraram enquanto Deus está a dormir a sesta porque tem sempre muito sono.




Agente não gosta da Páscoa mas gosta do que as pessoas pintaram, escreveram e compuseram na música a propósito da Páscoa mais do Senhor Jesus assim como o Senhor Bach e o Senhor Charpentier, por exemplos.





E prontos!
Maria Papoila

sexta-feira, 14 de março de 2008

Os clubes das fadas acordadas




Os clubes de leitura femininos, como respeitável instituição, nasceram nos finais do séc. XIX, princípios do XX com a saída das mulheres para a vida pública, quando o mundo se estendeu para além das casas de família, quando as fadas do lar perderam o condão de serem invisíveis para o mundo.


Foram fundados, os primeiros, em Boston, Filadélfia e Nova Iorque, por judias, raça que entre todas as outras emigrantes em terras americanas, tinha exigência no saber ler e escrever independentemente do género. Os ricos eram obrigados a pagar contribuição para as escolas públicas dos pobres, agregadas às sinagogas. Infelizmente, para os latinos, as crianças eram meros instrumentos de trabalho braçal precoce.

Nos Estados Unidos a literatura feminina até então, tinha como doutrina exclusiva a santificada missão da esposa dedicada , devota e orientadora na arte de bem obedecer para filhos e sobretudo filhas de forma a adiar eternamente o fim do mundo.





Com o tempo a andar mais depressa, surgiram as amizades bostonianas, de que já falei, e uma nova prosa como se de safari pela selva calada dos sentimentos e desejos do comum das mulheres se tratasse. Tinham começado a olhar para fora da janela como Kate Chopin,






ou atirando-se, algumas, dela abaixo como Charlotte Perkins que teve o mau gosto de se suicidar com clorofórmio.




Começaram a ler e a trocar impressões. Fizeram pactos: eu compro este, tu aquele e depois encontramo-nos no chá e trocamos. E tornou-se numa bola de neve até que alguns lanches já tinham nome, administração e casa , forrados de livros ao som de discussões e comentários, rezam os relatos que alguns bastante inflamados.







Curiosamente, na pintura e fotografia americanas choviam as poses de mulheres a ler, tal devia ser o fascínio, também existente na Europa, de tal estranheza. Mas só isso dá para mais dez posts dado que as artes europeias também tinha essa apetência desde tempos remotos.




Os clubes tornaram-se temáticos consoante os interesses: poesia, história, arte, dança, economia, política, culinária, índios e cowboys, amores cor de rosa e azuis às pintas, pornografia,… tudo a troco de quota mensal ou convite honorário e nem a restauração dos bons costumes familiares nos anos cinquenta os fecharam, tornando-se alguns deliciosamente subversivos na ironia como os são descritos neste precioso livro em letra e design.





Alguns começaram a chamar pessoas para contarem a sua experiência. Foi assim que um dia, já com outras bebidas que não só chá, diga-se em abono da qualidade do whisky americano do Kentuky, me vi sentada com mais duas num amplo sofá pós moderno num loft com milhares de livros, em frente a muitas numa animação de pergunta- resposta, sem obrigação nem enfado de levar bocejante palestra preparada, que nenhuma de nós tinha tempo nem competência para escrever grande coisa a não ser Redacção nas suas respectivas línguas.

Mas ao menos algumas ficaram a saber que Portugal tem longa história e nunca foi uma colónia do Brasil e existem mais profissões que não só a de especialista em couves. As verdades são para se dizerem ponto final parágrafo


E, em companhia de debate, com cúmplice ou sem (e que bom que é ter cúmplice em tal acto), continua a ser bom abrir as portas para o mundo visto por outros olhos que não os exclusivos e já monótonos nossos.



Uma forma simples de, como elas, sermos assim:



Acho eu...

quarta-feira, 12 de março de 2008

A observadora do inevitável






Serve o presente e assim lho dedico, à minha amiga Nnannarella, por dia 13 de Março de todos os anos, sem falhar nenhum, ter o desplante de cumprir aniversário, mantendo, assim, a sua capacidade inata para rejuvenescer a vida, que nela é rebento contínuo, ou seja sem demora nem parança e de quem basto me lembrei no que a seguir virá, sabendo ela e quem a conhece porquê.



FGP(YOV (afinação da tecla), senhoras e senhores na minha e na vossa presença



cá vai:

Estando eu posta em sossego numa recheada livraria de Madrid, bebericando uma inocente limonada e folheando livro, quando ouço perguntar de rompante, se já tinha escrito o epitáfio. Olhei em volta e percebi que a destinatária era eu. Fez-me a pergunta senhora, que não tendo nada de gótico urbano dos anos oitenta para cá, correspondia em parecença à duquesa de Alba com menos trinta anos, de ganga trajada, cabelo ripado e flurescente maquilhagem à boa maneira espanhola.







Vi que estava a folhear um livro sobre estatuária votada ao descanso eterno.
Continuando, e sentindo-me surpresa, disse-lhe que não, que ainda não me tinha ocorrido tal preocupação com a minha posteridade.






Respondeu-me, com ar de responsabilidade concentrada e vasto sentido prático, ser tal coisa importantíssima: em vida tudo se faz e desfaz, mas depois de morto, ninguém se defende do retrato literário ali deixado.


Ela andava há anos a aperfeiçoar o dela, entre pesquisas que iam de Shakespeare a Bette Davis, passando por Groucho Marx, o tal que mandou escrever: desculpe mas não me posso levantar. Ou o de um cantor espanhol, que sendo gago a falar teve a autoria de um fabuloso: Perdóne-ne-ne-me usted pe- pe- pe- ro no tengo go- go voz.

Como em Roma sê romano, perguntei-lhe se trabalhava em alguma agência funerária. Disse-me que não, que era publicitária criativa, mas que tinha o estudo de cemitérios como hobby, já que é terreno desprezado pelas demais artes e ciências. Atenta alma.





E o que se aprende e vê sobre a natureza humana…! Além de ser o único sítio na terra onde ainda há valores, como o respeito pela dor e pelo silêncio sem grandes interferências incómodas.

Por isso , na sua investigação tinha chegado a conclusões:

como, no cinema e outras artes, existe uma literatura epitáfial de autor, correspondente a pessoas de convicta personalidade forte ou não confiantes na ideia que têm deles os que cá ficam;
as famílias reflexivas, vão para as citações de filósofos gregos ou outros, sobretudo Schopenhauer;

que os que não têm verbos deixam tudo em suspenso, e citou um ,como se fosse um intervalo e que os orientais assumem a morte, reflectindo sobre ela enquanto que os ocidentais, negando-a, têm sempre textos que apelam à acção.

Depois disto, pergunta-me de onde sou. Lisboa. E diz-me que vem cá muitas vezes. Lindíssimo. O quê? A luz? O Tejo? Os Jerónimos? O Bairro Alto? As Docas? Os pastéis de Belém? Não!! O Cemitério dos Prazeres. Diz-me que tem dezenas de fotografias.

Jazigos onde apetecia morar,





gatos passeando-se metaforicamente sobre e entre as campas e a espantosa vista para a ponte para a outra margem .







E que belos epitáfios, tirados do flamengo, no? Sabe, em Portugal canta-se o fado, não há flamenco… é parecido, mas diferente.
E chega a minha companhia e despeço-me, muito interessante, vaya.

Educada e polidamente, também ela se despede, prevendo que eu darei uma morta muito calma. Superior piropo.

Nnanna, Meu Anjo, que achas de, em consonância

Finalmente, aqui jaz quem nunca dormiu o suposto suficiente?

Ciprestes e ciprestes deles, reflectidos em laguinhos.