quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Lá, no outro lado






Com um avião na alma chegamos lá num instantinho, à terra de todas as cores, de todas as línguas, de todos os calmos rebuliços, a mais conservadora onde começaram quase todas as revoluções, desde a libertação dos negros à autonomia das mulheres quando decidiram trabalhar para seu próprio sustento agarradas a livros que lhes dariam crédito à opinião formada.




Podemos cruzar o Mistic River num dos barcos de partida e chegada constantes. A noite faz-se cedo e parece que o céu desceu à terra.



Para ver a constelação de dentro podemos subir ao terraço deste arranha céus e tomar qualquer coisa quente, que o frio ri-se do que faz por estas lisboetas bandas. Atenção aos hollywoodescos helicópetros que nos roçarão a cabeça como aves de rapina.

E podemos ir ao sítio onde tive morada, arrendado ao mês como todos, assina-se o contrato até ao mês seguinte que quase toda aquela gente é nova e de arribação, chega e parte, a falar línguas variadas. Uns saem de saco às costas com o equipamento dançarino, outros carregados de livros, outros de pautas e instrumentos, outros de equações a rechear-lhes os pensamentos, uns sérios outros loucos, uns já sábios outros na promessa e sonho disso.




E não faltarão bibliotecas. Até poderá aparecer um bibliotecário velho e simpático que nos mostre os manuscritos do Damião de Góis, conservados em vácuo como tantos outros. E ficaremos espantados com o que de português existe ali, com todo o respeito e carinho pela história e cultura. Ah, os eternal dreamers, aqueles que chegam à beira do precipicio e empurrados descobrem a maneira de voar. Com a calma da poesia. Veja esta colectanea de poesia popular alentejana





Se quiser, pode requisitar uma cópia e ir para uma das enormes salas. As bibliotecas são formas de dar viagem ao mundo.

Podemos passar depois por esta igreja, onde ensaia uma orquestra. Toca música sacra em sítio apropriado e espantemo-nos...é o Te Deum de Sousa Carvalho. Cá onde ele anda


Se quisermos comprar uma revista ou um livro, podemos ir a esta livraria, muito espaço de saber e podemos até encontrar, já que estou entre portugueses, vários deles. Tantos cientistas, professores das humanidades, das artes, tantos quantos Portugal ignora. Ao menos os espanhóis divulgam em Espanha os que lá, ou noutros sítios, estão. A meu bocado de sangue português sente-se triste. Tanto valor, tanto desprezo. E, diga-se em abono da verdade, que ninguém tem grande vontade de regressar. Nem a ciência nem a arte têm pátria. E o Eça de Queiroz, sempre contemporâneo, ainda vai piscando o olho, ali, na estante, a ouvir a conversa.



Mas como a fome é global, podemos ir lagostar e frangar à beira rio, ou mar, até pode ser aqui





não se lambuza os dedos que é feio, então?

Depois podemos ir ver anoitecer em um dos parques cheios de laguinhos, ali vamos nós,






brincar com a neve e ter atenção aos pertences, não por causa dos humanos ( aqui nesta zona não haverá perigo ao contrário de outras onde nem podemos, nós pessoas sérias, pôr o pézinho que até os Sopranos são uma brincadeira) mas por causa das criaturas que ali se movimentam, fazem rir com tanta brincadeira e descaro e sofrem de cleptomania crónica






ladies and gentlemen. os esquilos.

Podemos depois ir a um clube de jazz livre, nunca se sabe quem se propôe actuar





ou a algum sítio mais de vanguarda, com teatro, dança ou performance.






E vamos dormir, porque talvez amanhâ as cores se esqueçam de existir para entrarmos no reino de uma só


a que , polvilhando, diz chamar-se Dezembro.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

A ilha da couve




Dizem-me que continuam na mesma. Sobreviventes, vá-se lá saber como, com meia dúzia de palavras estrangeiras úteis, as indispensáveis para o sistema de troca : sai couve, entra dólar.

Nunca soube como foram lá parar, os outros trabalham na construção, ou por conta própria como handy-men. Eles chamavam-lhes "artistas", ou seja serralheiros, canalizadores, marceneiros. E ainda existem os outros num mundo ainda mais desviado, os professores e outros finos que tais. Gente com bom corpo, folgado para trabalhar, mas que nada fazem, e que não se juntam a eles no perdão da missa dominical e aprendem e falam a língua deles, inglês. Até parece que não gostam de ser portugueses, os enjoados, gente rica, que só pensa na roupa e gasta tudo aquilo que tem, até a jantar fora, como se em casa não se pudesse fazer o jantar, pudera que aquelas finaças nem batatas sabem cozer.

Podiam ser estes, são parecidos




assim encostados à telefonia da Voz de Portugal.

Tinham uma mercearia nesta rua da chamemos-lhe baixa, zona nobre




com a sombra concorrente de uma loja grega, do mesmo género, mas mais mini-mercado, estupores que se fartavam de vender azeitonas e queijo feta, como se as de Elvas e o da Serra não fossem melhores. O que vale é que os italianos eram mais para os talhos.

O que é que estas querem agora, é portuguesa? Tem mais cara de comer pão de forma do que de Mafra. Quer SG Ventil, é para o seu marido, não? O que andará a fazer aqui se não tem marido e o tabaco não é para o pai ? Havia de ser minha filha ...pouca vergonha. Quantos desmanchos não terá feito já. O que vale é que gente desta só cá vem quando fazem festas, deve ser o bom e o bonito. "Pelas costas das minhas vizinhas, vejo eu as minhas", pensava eu.

Os filhos não têm tempo livre depois da escola a que o district os obriga a ir. São ensinados a carregar sacas de batatas e outros pesos e as raparigas, tratam da casa, não se querem ali mandriões nem putas, se comem trabalham, assim não se fazem vadios. Se começarem a ler e estudar ficam com más ideias, perdem o temor a Deus, o mais velho nem sequer quer ir à missa. Isso de doutores é para os judeus, até me dá vontade de cuspir para o chão. Calões. Sempre a gastar dinheiro mal gasto, ele são cinemas, teatros, borgas. Vai-se a ver e nem um cordão de ouro têm.

E a única leitura era uma revista religiosa, com filosofia editorial baseada num Deus odiento, alérgico a qualquer evolução. Nunca me dei ao trabalho, depois de folhear, de lhes dar explicação detalhada que o 25 de Abril não tinha transformado o país em Sodoma e Gomorra. Só lhes disse que estava tudo normal e calmo, as igrejas não tinham ardido, já passados aqueles anos do evento e não senhora, não havia padre nem freira enforcado em nenhum altar, não, os russos não estavam no governo, disfarçados de portugueses.





Dei uma volta, um domingo, pela zona onde moravam, eles os portugueses, em bairros arrumados com casas deste género. Solitários e tristes, sem a alegria dos brasileiros, gregos e espanhóis. Sem a algazarra festiva dos italianos. A roupa estendida na frente que as trazeiras floridas, feitas para o repouso na ilusão do campo dos nativos, eram para os galinheiros e para as coelheiras e para a horta. Os homens sentavam-se a beber, a jogar às cartas e a ouvir os relatos de rádio encostado à orelha. Para quê gastar dinheiro em aparelhagens. Para quê ir comer marisco na terra barata dele. Para quê ir visitar faróis a encimar prodígios da natureza. Para quê sair e sentir a beleza das cores outonais, aquelas que nunca vi sem ser ali. Para quê rir das brincadeiras acrobáticas dos esquilos. Para quê perder aquele ódio ao mundo. Para quê rir, dançar, amar.


Para quê viver?
Se a vida é tão curta para poupar.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

O gato








Foi por esta altura. Estávamos ali, rodeadas de branco, à porta daqueles armazéns, transformados em arena de esforços e criação. Refilávamos: numa cidade tão grande e não havia um disco da Amália nem da Niña de los Peines, já agora convinha. Passou ele, sorriu e numa misturada propositada de português e espanhol apontou num gesto largo: allí há, no indiano. Dois quarteirões para norte e as vozes das cantoras das terras encostadas ao Atlãntico ecoavam como uma saudade. Acompanhou-nos em passo rangido na neve. Disse-nos ser de Barcelona, ser marinheiro de água doce, ter estado com os pais cinco anos em Portugal, não ter cordas que o prendessem a terra firme, ter sido, por acaso, bailarino do Merce Cunningham, e por vários outros acasos, estava ali até não saltar para outro lado, sem previsão nem futuro programado.

Falámos algum tempo e percebemos-lhe o ouvido atento ao mundo. Alerta.









Dizia, já nessa altura, que o seu mote de estudo era a comunicação, ou a falta dela. Conversas de surdos, corações mudos, verdades caladas. Ele queria desamordaçar o corpo e a voz dos silêncios povoados. Queria rasgar as vendas, todas as vendas









afinal para que serviamos nós?


E despediu-se até qualquer dia, sem telefone ou morada.


Um dia, estávamos a despir mais umas das vestes de personagens e vieram dar-nos dois embrulhos de papel pardo, atados com fio alemão: um tinha um disco da Amália e outro da Ninã de los Penes. Estáva sentado de cigarro na boca, olhos a fugir ao fumo, nas escadas, à nossa espera. Riu-se. Nós também. Vamos jantar. E fomos.


Comunicou-nos ideias, os sítios por onde tinha andado. Em todos eles se guerreavam conversas sem som que se ouvísse, batalhas sem palavras traduzidas para os sentimentos. Corações em fogo







mais uma vez, não havia lugares inocentes e claros.



Depois de uns poucos meses de trabalho voltou a desaparecer, esgueirou-se por um qualquer telhado.

Até uma peça em Barcelona, "Equos, angústia para um cavalo", e ali estava nú, meio louco, meio vadio, meio tudo






porque mesmo angustiados os cavalos foram feitos para correr. Convidaram-no para secções fotográficas, é experiência nova, vamos ver como é. Não chegámos a saber.

Até Lisboa, a olhar para o Tejo, vamos almoçar, estou cheio de fome
até Madrid, venham comigo, vou ali comprar um livro,




até...




até ontem, em Stª Apolónia, apetece-me uma pizza bem quente, e o vinho é bom?
Depois, até ao próximo abraço, daqueles em que nunca se perde a comunicação, seja qual fôr o tempo, o espaço ou a idade,







sem espera, nem aviso.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

As escondidas



Não, não é só por não saber fazer uma baínha em condições, é porque tenho vontade de me lembrar delas, das costureiras que longe de olhares do público trabalham com engenho e ofício os fatos que hão-de completar as personagens. E trabalham ali com saber aprendido na experiência. Lembro-me da Lola, a chefe, senhora de palavreado e história sonhada nos folhetins da Corin Tellado. Vivia de amores emprestados. Sem filhos tinha sus niños e niñas, a quem conhecia o corpo e a quem ia perguntando pelos amores, na maior parte dos casos, por contágio dos romances: achava-os sempre onde não existiam com uma pitada de drama.

Mas recebia os desenhos dos figurinos, faz de conta que eram estes:




e lá começava a azáfama. Medidas, cortes, tecidos. E lá ia dando achegas que aquele desenho deixava as meninas ou os meninos sem ar, ou aquele tecido tinha muita estática, ou arrebitava.

Quando passava por lá fascinava-me aquele matraquear das máquinas e as conversas encaloradas sobre casamentos , divórcios e baptismos, quase sempre sobre gente famosa, quando não era sobre nós, claro, mas com pessoas de carne e osso conhecidas, tem-se mais tento e ternura na língua.
E é muita a dificuldade, penso eu, em coser e bordar traje que a tudo se ajuste, até a desafiar a gravidade





ou a acentuar a leveza etérea.
E tanta linha e goma fora de horas, às vezes noite dentro, madrugada fora, para que em minutos tudo brilhe, sem desmancho nem caos






porque não largam o perfeccionismo da agulha nos dedos couraçados por dedais, nem o borrifar do ferro de engomar.
Estranham, às vezes, o que lhes sai para construir, que isto de artistas são todos doidos, quem é que se lembra de fazer tal mistura de cores, parece a niña um palhaço, nunca tal se viu nos moldes da Burda





aqueles onde começaram a aprender, na casa das mães ou das tias, ou na modista, ou no alfaiate que o dinheiro não dava para estudar outras letras , artes ou ciências. Eu, filha, aos doze já virava colarinhos. Desabafo em tempo de provas. Levanta lá os braços, ai está mais magra, ai que o niño definha, o que andará ele a fazer, é da vida que levam, deixa-os largar isto que logo se compõem, olha o X, com mais dez quilos, não me digas, vistesio?

Ficavam na última fila a ver o resultado, de agulha pronta para qualquer urgência. Não queriam ficar nas primeiras que isso era lugar para gentes que circulavam no outro mundo, tão distante, aquele que via, elogiava, mas raramente se lembrava do reino do alinhavo.

E com tanto fecho de companhias de repertório, fica uma paisagem deserta


da música sábia do imenso matraquear. Já não têm rosto conhecido e fixo os romances inventados.Arranjam-se trabalhos nómadas, pagos à tarefa. Sabe-se-lá se eles já foram mais gordos ou mais magros...

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

"I want to be alone"




disse ela, a Garbo, no Grand Hotel e nunca mais o sentido daquelas palavras lhe abandonou a pele.

Um dia estavam todos os bailarinos sentados no chão. À espera. E eles chegaram com folhas de papel. Bueno...ia-se contar a vida de três divas do cinema. Três mulheres célebres encomendadas à solidão mais funda : Greta Garbo, Marilyn Monroe e Marlene Dietrich.

Depois apontaram como quem dispara tú lo de Marlene, tú lo de Monroe y tú lo de Garbo.
Alvoroçaram-se as ditas apontadas. Yo?

Eu?
Sim tu!

A memória ainda ouve o pãnico. O mesmo olhar vago e triste? A mesma maneira de andar, pouca correcta postura? A mesma maneira de usar as mãos? Ay qué coño.
Foge o sono, foge o apetite. Sonha-se com 1m e 75 de altura, sonha-se com o talento que nunca se sentiu, corre-se para a investigação. Sabe-se que nasceu num dia 18 de Setembro, olha tão perto do Outono, sabe-se que foi auxiliar de barbeiro, depois modelo de chapéus, depois estudou teatro, depois passou de Greta Lovisa Gustafsson (sei lá se está bem escrito) e depois sintetizou para Garbo, ainda não se sabe porquê porque ela nunca disse, mas talvez seja o nome das ninfas nórdicas que dançam em noites de luar. E que foi para Hollywood, sem vontade, sempre agarrada a homens protectores a subtituirem o pai defunto. E que gozavam com ela por causa da voz e da maldita pronúncia, e que fez dietas porque era roliça, e arranjou um dente torto, e puxava o cabelo para trás ou usava chapéu para alongar o rosto, e que teve amantes, mais mulheres que homens e que foi subtituída por mais bonitas e novas e que sempre teve vontade de interpretar uma mulher palhaço, porque gostava de metáforas e pinturas e solidão. Tanta solidão.

E todos os filmes se viram sem ligar o som. Só a fluência dos gestos. Só o arrebatar das expressões, das pequenas expressões, aquelas que se intuem mais do que se veêm. As que esmagam ainda mais os parcos 1m e 60.

E um dia chamou-a, à ínfima, Concha. Sientaté. E sentou-se. Concha ia fazendo o desenho como quem faz desenho à vista. Los puñeteros de tus ojos, chica. Era preciso torná-los menos redondos e mais pequenos, e a boca, e






assim sem mais nem porquê, Concha, Concha, Concha !

E depois é melhor já não pensar, é melhor que tudo parta de dentro, aos gritos de uma forma serena, que a verdadeira tinha fobia de discussões ou violências. Trabalha-se até altas horas, para que o arrastar das mágoas se solte num chão duro, o vestido que fale que esta voz dorida do corpo é impotente.




Lá para o fim há-de tombar a Marilyn, há-de ir ela levantá-la do chão, já meia morta, e dar-lhe um beijo de empatia e alento na boca enquanto a Marlene se ri. Ria-se sempre dos gestos íntimos de quem sofre, ela que sempre fingiu não sofrer.
E chegou o dia. Burburinho difuso do outro lado. As pernas tremem. Seca-se a boca. Á la mierda, chicas del..... berra Concha ainda de apretechos maquilhadores na mão.
E a Garbo sobe primeiro, é a mais velha, embora despida seja a mais nova. Coloca-se à boca de cena. Sobe o pano. E vive rodeada dos fantasmas que nunca esqueceu. De chapéu e casacão. Quase incógnita, como viria a morrer, em 1990, num hospital de New York City,ou seja, como quem continua bem vivo ainda para lá da eternidade.





sexta-feira, 16 de novembro de 2007

soberba moral





E para fechar tais silenciosos desvarios mais digo que no cinema mudo, chamado de mundano, isto é sem grandes afoitices no estético filosófico, (isso reservava-se mais para os expressionistas alemães e para os ultra dramáticos russos), e como diz Mi Emma lá para as sonolentas capitanias, as protagonistas eram sempre de má índole, de vasta perversão com um poder sedutor capaz até de subverter Deus, como dizia um crítico da altura, isto tudo se bem me lembro.

Também se bem tenho alembradura fresca, a fartura da falsa moral vitoriana, acrescentada aos desaires da guerra levavam o público à sede de desordem nos amores e afins. La Belle Époque dos abastados, o viver o dia a dia em tempos incertos.

Na tradição da dança, até aí, todas as maldades se reservavam para o campo da fantasia ou da mitologia, fábulas moralistas com personagens irreais. Tanto quanto julgo saber, foi em Boston- chamadas as amizades bostonianas-, que se começaram a criar tertúlias de mulheres muito citadinas, intelectuais, revolucionárias para a época e que, pelo menos nos Estados Unidos, influenciaram a coisa no sentido de se representarem figuras reais. Com exaltação da vontade e desejo femininos. Fartas do puritanismo de salamaleques e valsas praticados nos salões.







Foram muitos os artigos que li, de furibundas e desmesuradas críticas ao cinema, quer enquanto arte quer enquanto desvirtuador dos bons costumes familiares. Muito se aconselhavam os imprevidentes a não levarem mulheres e filhos ao cinema. lembro-me de um que, em letras gordas, advertia do alto do púlpito que era meio caminho andado para a indigência e abandono do lar. Elas iam querer jóias como as actrizes, os vestidos e até cortar o cabelo à Louise Brooks. Mulher honesta tinha que ter melena vasta,devidamente presa após o casamento.

As jóias, já agora, eram uma obcessão nos guiões. Sobretudo as pérolas. Há um filme, que tive que ver várias vezes, em que a gananciosa mata quatro cavalheiros só para ter um colar das ditas. Leva meia-hora a olhá-las antes de ser humilhantemente presa.

Uma cronista social da época, que em Portugal bem poderia ter escrito para as Modas e Bordados ou para o Clube das Donas de Casa, referia o insólito hábito de as damas andarem na via pública com olhos de "carneiro mal morto", pose da mais alta sedução, como toda a gente sabe, até a Betty Boop.





Aos homens, que desde o Adão não resistem às tentações, cabia-lhes andar de cabeça perdida, entalados entre a inocência e o pecado. Geralmente eram mais velhos, já com idade para ter juízo mas de vida muito parada de experiência.


Em dança, coitadinhos, tinham que ser mais novos e atléticos a expressar o angustiado dilema.


Mas tenham tranquilidade as almas. Que todas as malévolas tinham um mau fim. A Brooks, a certa altura, não sabia se ia morrer às mãos do Jack, como foi sugerido em Inglaterra, ou no altruísmo do Exército de Salvação , como convinha aos americanos.
E por aqui me fico, a pensar na gargantilha que vi ontem. Sem falar nos brincos. Ai e o anel, o anel, Capitão, estai aí, Capitão?
Olá meu General...
Volto já, vou tomar chá com o sultão...

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Soberbos delírios



E sempre foi assim, histórias de amores atraiçoados, com as virgens postas no mundo do amor sem aviso e as outras, as que já calcorrearam paixões, figuras malévolas em decifrar fraquezas de homens honrados mas impuros nos desejos.

Má sina a das que têm olhos da cor do pecado, que em rebuliço de estúdio, entre risos e más palavras, são perseguidas por fotógrafos (profissionais) em busca de melhor ângulo, o ângulo da completa devassidão.

É grande a agitação. Correm cabeleireiros em passos curtos penteando perucas, que para umas fotografias encolhem as testas, para outras as alongam. Queixam-se as actuantes do calor por elas provocado debaixo de luz crua como o sol. Gritam algumas haver até vasta piolhagem nelas escondida, tal é o prurido no couro cabeludo. Mas é necessário sofrer para que a arte seja produzida.

E todos andam de fotografias dos tempos mudos nas mãos, para que fielmente se reproduzam expressões e trajes e cenários que tudo aquilo há-de ser obra completa.

Pobre do pianista, estudioso a fundo de música erudita e que vê o seu Debussy, o seu Chopin, envoltos em algazarras vocais que mais parecem erudição melódica do séc. XXI. E também ele é maquilhado, vestido e postiçado que até Satie nos seus dedos se arrepia.





Fiteiro e folgazão como com o correr do tempo se verá.

E continuam as cópias quase fiéis da silenciosa lide. Manda a publicidade que tudo se faça como então se fazia. E Concha Prada, a maquilhadora, lá vai coraçãozando bocas, pintando sobrancelhas, pondo sombras para corrigir narizes e bochechas e o mais que falte.
Chega o solene momento da estridente gargalhada. Veste a artista uma combinação preta, vai a Concha com mil pincéis, anda o fotógrafo em liça com filtros e luzes. A artista deita-se numa cama de rede preta. Devassa e já não tão jovem como a maquilhagem faz parecer, começa a rir desenfreadamente, possessa. Grita desvairado o director e coreógrafo. Já está contagiado e gesticula em pré-síncope expressionista. Berra que falta o livro, coño. E já de livro pensa a astista que os progenitores não podem ver tal cena. Puxam-lhe a alça da combinação e ela mais se ri. Uma outra artista, espanhola, esquece-se que é filha de militar e grita : Puta mas lectora, no?





Se fosse portuguesa, diria com certeza, meretriz. Mas é espanhola. E mais não digo, que sou uma senhora de boca lavada.

A artista contorce-se e, é tal o desmando que já lhe dói o estomãgo de tanta infrutífera concentração.

Muda-se de dia, que tudo isto é trabalho longo e demorado, pelo menos nas intenções, e a de má vida, depois de ter estragado um noivado, ver suicidar-se a noiva traída, ver o noivo, culpado e desonrado na fidelidade, espetar-se um punhal no ventre, ver as tais mortes tão longas arrastarem-se sem fim, teriam todos tempo de ir às tapas e fazer pousada digestão, resolve arrepender-se. Para acentuar a dor, cobrem-lhe os cabelos Brookianos com translúcido véu preto, e sente-se Santa Madalena. Não escurece os olhos, porque o dom do perdão tudo permite, mas de calendário lembrada, faz cara de quem ganhou os favores de S. Pedro com entrada gratuita.


E comovida com tal gentileza celeste, resolve não perder tempo, pegar no punhal, esquecendo-se de pedir as análises actualizadas da SIDA aos outros suicidados, aponta para o coração e ferverosamente espeta-o. É a que tem morte mais rápida.
Fecha-se o pano em alta moral, despem-se roupas e cabelos, guardam-se holofotes e máquinas, arrumam-se estojos e sai-se para fora, onde o tempo, vivo, continua.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Soberbo exagero








Vem esta prosa a propósito da Louise Brooks, lá no sonolento Haddock e volto a dizer que não sei botar links. Vodes lá ireides, se não vos importardes.


Como alguns já sabem tempos houve, ainda as galinhas tinham forte dentição, em que uns quantos mais eu, tivemos que entrar no "exagero expressivo" do cinema mudo. Tarefa hercúlea para quem já nasceu na época da chamada representação naturalista, e mais ainda, não sendo actrizes de seu nome completo, apenas aprendizes de feiticeiras e feiticeiros com gosto nas aventuras do ofício, que é como quem diz, dançando artes não aprendidas na dance d´école.

Ajudados e muito por maquilhadoras, costureiras, cabeleireiros e fotógrafos a quem nunca me canso, cansamos, de prestar justa homenagem.









Como sabem nem sempre os espectáculos foram vistos com o público às escuras, e em silêncio antecedidos por vozes que pedem gentilmente, às vezes em vão, para desligar os telemóveis. Era comum, numa sala iluminada tanto quanto o palco, as pessoas falarem no que mais lhes apetecia, verem quem estava e quem deixava de estar, coisa que ainda hoje se usa imenso sobretudo nas estreias, e enviar mensagens de apoio ou desagrado aos palcantes. Contam-se relatos de na Russia, onde as bailarinas eram deusas, haver manifestações dos fans tão ruidosas e anárquicas, que mais pareciam damas em concerto dos Beatles. Desmaios incluídos.




Por isso só o uso da voz ou do canto não chegava. No Ballet a história era outra. Fica para outra altura. Optou-se então por ignorar o público e focalizar o olhar para a parede ao fundo das salas, isto é, a oposta ao palco. Estava criado o chamado "estigma da quarta parede" (não sei se se diz assim em português mas deve ser mais ou menos). Olhar para a massa em estendal sentada era tabú, mesmo quando, com a invenção da luz eléctrica, tal multidão não passava de uma mancha vestida com manto negro de juíz. Ainda hoje, mal ou bem, o veste. Já agora houve uma senhora que nunca foi de tabús e sempre enfrentou o público com requintes de extraórdinária improvisação: chamava-se Mae West. Claro.









Além do olhar para o longe dar uma expressão, naquelas circunstãncias, já de si estranha ao comum dos mortais, o resto dos sentimentos era ainda herdeiro de uma forma de representar sublinhada, não fossem haver equivocos. Era preciso que um achaque de desgosto ilustrasse o texto, por exemplo. Era provável que não se conseguisse ouvir desmaiar. E num ataque de riso, sobretudo se fosse de desdém, era importante que se visse o esófago.








além do em cima exposto, dizem que seriam também heranças ainda da comedia d´ll arte, a juntar ao romantismo.


Não sou especialista em cinema, mas consta que ao iniciar-se tal arte se transportaram todos os tiques do ballet, do teatro, e da ópera. Junte-se a falta de mobilidade das cãmaras, e os vários pais alemães, com Murnau à frente, com forte ligação ao expressionismo no corpo e na alma.








Junte-se ainda o preto e o branco, com a técnica de luzes a acentuar as sombras em cenários e faces e tem-se um dramatismo sem igual no todo do drama.









Aquela primeira senhora, lá em cima, Gloria Swanson, aqui já no sonoro, queixa-se, e queixava-se mesmo, que o cinema tinha perdido a magia, já não havia a gloriosa arte de representar com a força da expressão facial. Olhem se ela tivesse estudado no Actor´s Studio. Era aquela expressão que criava a ilusão, que fazia os actores. Greta Garbo achava a sua voz ridicula, com pronúncia, ainda por cima. Nunca perdeu a nostalgia de estar calada. Até ao fim.








Para nós fica-nos o prazer de ver com olhos esbugalhados , mãos postas e boca aberta.


E já é tanto!