quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A versão pobre da riqueza,

enfim, mais ou menos, ou seja, o conceito multi-abrangente chamado

kitsch


de que este palavroso título é já exemplo.

Desde que apareceu, muitos cérebros já se ginasticaram para lhe definir fronteiras, tal é a confusão nos limites.

Sabe-se que a palavra vem de um verbo alemão, verkischen, que significa regatear. Coisa de pobre, feira e mercado. Nos salões negoceia-se entre vinhos seleccionados e em voz baixa.

Seja qual for o tom de voz, no início do séc. XX, chega-se à produção em massa de produtos, à industrialização e surge uma pequena burguesia mais urbana e, convenhamos, já mais endinheirada, com laivos de consumismo.
Chega-se a uma das características basilares do kitsch: vale-se mais pelo que se mostra ter do que por aquilo que se é. Ostenta-se. Exibe-se.

Com o aumento de publicações de moda, decoração e mais tarde com a televisão, a generalidade das populações tem acesso ao conhecimento de como se vive do outro lado da sociedade, a chamada fina.
Entra-se na outra característica: a cópia caricatural e espaventosa, com atraso, das escolhas mais recentes ou antigas, anteriormente feitas pela classe alta. Reproduções feitas em série. Por molde e design plagiado.



Aparecem em todas as casas as mobílias “estilo séc. XVII”, encharcam-se os espaços de bibelots tipo rococó, ( o séc. XVIII francês, pela exuberância quantitativa de arrebiques é ainda hoje inspiração constante),


copia-se a tradição inglesa do papel de parede, enchem-se jarras de flores de plástico, transformam-se carros utilitários em aparentes Ferraris de escape aberto, etc e muitos mais etcs, tudo em quantidade e sem diferenciação até no comportamento social de esconder as origens:

ninguém quer descender das pessoas do campo. Compram-se brasões, inventam-se genealogias. Os ingleses chamam-lhes snobs, os espanhóis cursi.

Milan Kundera, entre outros, dá um cunho político ao fenómeno: interessa aos regimes, sobretudo aos totalitários, criar uma massa de gente embalada na parecença, de pensamento obstruído por esta guerra de pretensão e de ostentação com o vizinho.

Face ao kitsch, a individualidade, o assumir do modo de ser próprio de cada um, o espírito critico e analítico são aberrações.


Por definição, o kitsch é um fenómeno de extensa gregariedade virada para o exterior e com horror do vazio. Dos vários vazios.



Sob o ponto de vista estético, pensa-se que teve origem na Arte Académica bem feitinha do séc. XIX. Arte sem ousadia no traço nem na expressão, sem carisma pessoal que identifique o autor, que não puxa por qualquer esforço de leitura ou interpretação. Arte completamente passiva por parte do espectador. Estética do bonitinho mais tarde reproduzida até à exaustão em posters emuldurados a dourado, modalidade barroco ibérico, com destaque na sala de visitas.


(em sincera homenagem ao ilustre visitante deste espaço, o digníssimo e ilustre Capitão Haddock)

(e por oportuna alembradura da simpática, atenta, assídua e ilustrada Arábica)



Mas o mundo dá muitas voltas. As vanguardas que tanto rejeitaram o academismo e o kitsch, vieram, com o pós modernismo dos anos setenta, a elevá-lo a categoria de arte popular superior, havendo mesmo muitos artistas que se apresentam como kitsch artist.

(tela de 2005)

No mundo da critica de arte, para alguns, o casamento de Jeff Koons com Cicciolina, é referido como manifesto e obra prima do movimento.

São considerados como... sei lá...Monet para o Impressionismo, ou Magritte para o Surrealismo.

Enfim, génios da ironia dos nossos tempos, ou meros espertalhões a aproveitarem o escãndalo mediático, mas sempre controversos.

E, passando para as nações, qualquer ocidental ficará de boca aberta com o poder kitschiano imitativo cá destas bandas da moderna China, seja na sociedade em geral, seja nas trapaças da abertura de Jogos Olímpicos, seja em qualquer afamada galeria de arte de Nova Iorque, passando pela incrivel versão do Lago dos Cisnes em dança, que recomendo como penitência de pecado à vossa escolha.


Nas artes performativas, Marco de Canavezes produziu a considerada pioneira: Carmen Miranda, considerada Kitsch por uns e fundadora de um movimento intelectual por outros, o tropicalismo.

Mais uma vez, tudo depende do ponto de vista.
Em Espanha, só por curiosidade, é chamada simplesmente de hortera (pirosa, foleira) tal a profusão de produtos hortícolas e adereços pechisbéticos com que se enfeitava.

Na dança e no teatro, o caso é muito complicado. Teria que botar faladura mais prolongada acerca da Camp Art (não sei se há tradução para português), considerada nestas andanças a herdeira do romantismo.

Mas continuando a falar do kitsch, deixo-vos aqui o desabafo acerca da minha fobia: as (erradamente chamadas) danças de salão, coisa que começou com força na Alemanha, caracterizando-se por cópias adulteradas de movimentos do considerado elitista e fino Ballet, misturado com danças de genuína e rica história como o tango.

Na sua maior parte ficam tão longe de uma coisa como da outra.



E assim, senhora e senhores, prezados e pacientes leitores, vos deixo esta prosa contextualizada numa ínfima porção do imenso universo da blogosfera, pedindo desde já desculpa por qualquer erro, que omissões foram muitas por via de não os maçar mais ainda, despedindo-me de voceses até ao próximo, uni ou bilateral, acto comunicativo em sede de internet informático-computacional.

Nota breve: aos primeiros dois mil e cinquenta comentadores que telefonarem para o 96....... ou 91.......oferecemos, de forma gratuita, uma colecção de magníficos postais referentes à quadra festiva já em curso, numa promoção da marca Paraíso Feliz.

Oferta limitada ao stock existente.


quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Fica o do kitsch para outra altura que agora, por via de ter tido a honra de ser convidada a assinar uma petição espanhola contra a crueldade das touradas e a favor da criação de reservas, ter lido uma entrevista de senhora professora admiradora e defensora de marialvas e ter assistido a uma conversa na 2 com o famoso professor de literatura Amorós, devoto da morte e do sangue, me está a apetecer escrever uma

carta aberta aos paralíticos do tempo



Srs. Professores:

Antes de mais, não posso, à velocidade a que o tempo desde há umas décadas corre, deixar de me comover com a vossa sintonia ideológica. Que o Sr. Prof. se encoste a um tempo já morto até percebo, dada a sua provecta idade com refúgio na nostalgia, agora a Sra, nascida mulher, perdão, fêmea, rapariga nova…



E deixem-me também dizer-vos desde já que, embora pertencendo àquela massa tonta e desprezível dos urbanos, tomei conhecimento do vosso estimado mundo em infantis e adolescentes férias no Alentejo, uma espécie de Andaluzia frouxa. À portuguesa.

Dizem que a civilização é o evoluir do encontro interdependente entre a ciência, a razão, a justiça, a busca da beleza e formas de expressão artísticas várias no sentido de atingir ideais perfeitos para a vida no mundo. Toda esta interdependência gera cultura. Gera racionalidade.
Nenhum dos srs. Profs. acharia plausível hoje, suponho, a queima de um epiléptico por bruxaria, pois não?

E concordarão comigo que a medicina se tem esforçado por minorar a dor e o sofrimento!

E que a sociedade se dirige à absorção e dignificação dos diferentes do geral.

Ora o evoluir ocidental, desviou-se da cultura estritamente antropocêntrica apoiada por dogmas religiosos de que são tão devotos e houve quem descobrisse que os animais e as mulheres têm sistema nervoso, logo dor. E que são dotados de personalidade. E que merecem respeito.



A Srª Profª. admite tal coisa mas defende o superior direito humano de massacrar os animais em geral. Diz que é um símbolo de festa e alegria. Defende o ensino da tortura festiva às crianças. O contacto com a morte. E, pasmo: as “pessoas também têm dor quando levam uma vacina”.

Prodigiosa comparação, insigne pedagogia.

O Sr. Prof. diz que pessoas como eu têm uma visão Walt Disney dos animais: uma versão coitadinha e ternurenta, referindo-se, salvo erro e nomeadamente, aos cavalos dos picadores. Pois com ou sem Disney, sabe tão bem como eu, que são utilizados cavalos velhos, doentes, ulcerados para serem supliciados, com mais sofrimento ainda, na arena.

Sr Prof., no reinado de Isabel I, séc XVI, em Inglaterra, o mau trato a um cavalo já era punido e…Walt Disney, como sabe, ainda não tinha nascido. Fará coro com a Srª Profª. quando ela diz que as mulheres são fracas.

E saberão os dois que o touro quando entra na arena já esteve encurralado durante dias, sujeito a torturas várias como a impossibilidade de dormir ou choques eléctricos que lhe geram pânico. Agitação, no dizer dela.


Também se esqueceu de dizer que são quase cegos, como a senhora se esqueceu do forcado rabejador que ao torcer o rabo do bicho lhe provoca tonturas, logo inacção. O rabo do bicho é o prolongamento da medula espinal.

Caro Prof. devia ter dito que o matador Bravo que tanto com tanto extase idolatra foi preso várias vezes por desacatos e pelas cargas de pancada quase mortais que dava às mulheres;

que o matador português Pedrito se gaba de deixar filhos espalhados pelo mundo, afastando qualquer responsabilidade, como qualquer macho que se preze;

que Hemingway era psicótico e alcoólico, gerando infelicidade onde chegava.

e Picasso, enfim, além de maltratar física e psicologicamente as mulheres, não era propriamente simpático para os homens que não viviam para demonstrar até à exaustão, o seu poder de machos dominantes. Olhe as brincadeiras dele e Breton com o talentoso e sensível Miró.

Srª. Prof., agora de mulher para mulher, sempre lhe digo que nem todas como a senhora gostam de ser dominadas pelo poder já anacrónico do centro testicular masculino,



nem todas andam com a sua adorada e repetida palavra virilidade como filtro nos afectos quando se apaixonam ou amam, nem todas acham legitima, no séc. XXI, a condição exclusiva de retaguarda. Virilidade fica muito para além das mulheres, copos e touros.


Sou tão mulher como a senhora, acho eu, e gosto de homens que reconheçam categorias intermédias entre a santa e a prostituta (puta), sendo as primeiras as suas legitimas, recatadas, sofridas e submissas esposas e as outras todas as demais, casadas ou não.


Gosto de homens que não tenham vergonha de abraçar afectivamente as mulheres, que me mostrem, com brilho nos olhos, as fotografias das filhas sem lhes chamar, como sabe, os nomes ordinários que os seus homens lhes chamam, que assumam que nunca frequentaram prostitutas ou as levaram para o campo abandonando-as despidas e violadas (como sabe ser corrente os seus fazerem), que saibam dar e receber, que saibam que não são máquinas de erecção constante e que utilizem o cérebro, aquele que se situa no interior da caixa craneana.


Eu, como tantas das tais intermédias, gostamos de homens livres.

Como considero Homens (não desmaie) os que amam outros homens. Srª Profª, despidos no corpo e na alma, garanto-lhe, já vi vários, são tão homens quanto (assim em quantitativo) os seus.

E, Sr. Professor, não compare o bailado à tourada: no Ballet (baille, balé) trabalha-se para a harmonia melódica do movimento,

nos Toros exibe-se a performance do carrasco.

Nem ligue o flamenco à tourada. Tal como o fado, existe apenas uma pequena parcela que lhe aproveita o mote.

Muito menos utilizem o argumento estafado de “quem não gostar não veja”.


Também nunca vi ao vivo nenhuma mulher ser lapidada, ser vítima da excisão do clítoris ou vendida como coisa, mas tenho o direito de me revoltar e opinar sobre o assunto, virada para a nascente do futuro.

Confesso que tive uma certa pena de si quando disse que há menos touradas mas mais público. E quando enalteceu a raça da gente espanhola. Tentativa patética de virar o sentido do relógio, ao saber do progressivo desinteresse e falta de gente nas praças.

Cada vez são mais os que defendem, como eu, a beleza dos Miuras, mas em reservas, onde se lhes possa admirar, em liberdade, a pujança.


Caros Profs, os ingleses não deixaram de ser ingleses por terem proibido a caça à raposa e a outros animais correspondendo à vontade antiga de Isabel II.

Srs. Profs., nem os senhores nem o vosso Deus furioso têm poder para segurar o tempo.


O vosso mundo está agónico. Chegou a hora de sofrer a estocada final, de se lhe cortar uma orelha e exibir a cabeça numa qualquer taberna, situada lá para os lados da Praça da História.

Com licença

Lisboa, 19 de Novembro de 2008

Lizzie

p.s. aqui vos deixo um exemplo de um flamenco sensível, dirão amaricado (mariconero), de quem chora uma partida, longe, em qualquer terra, das praças de touros. Os homens também têm autorização para chorar.


el adiós - paquito corrales

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Vem este a propósito do anterior e do que tanto se ouve, quer no cabeleireiro, quer onde no mais haja espera passando pelo meu chá das onze...

ah, vê lá tu, esta gente…com esta idade…
ou
a difícil arte de viver escondido



Tudo começou com um amigo de Fellini, Tazio Secchiali eminente fotógrafo de olhar indiscreto e, convenhamos matreiro, mas contido na pública divulgação,
que resolveu, aqui e ali, ir surripiando fotografias da vida privada das estrelas e realezas, até aí vistas como deuses inacessíveis numa esfera longe de qualquer humanidade em existência e normalidade.
Fez em fotografia o que já Truman Capote, Gore Vidal e Scott Fritzgerald tinham feito em palavras, mudando a identidade das vitimas. Dando-lhes outros nomes.

Pegou o vício a um outro senhor chamado Paparazzo. Este, sem qualquer ética na exposição das alheias intimidades, irritou Fellini, que lhe pluralizou o nome estendendo-o a todos os que de fugida e à má fé, roubavam recatos para alimentar e/ou destruir a reputação dos famosos. Exactamente: os paparazzi.



Até hoje muitas teses já foram defendidas sobre o sucesso do vampiresco fenómeno:

para uns a base estará no voyeurismo, por encanto ou raiva, sobre a vida inacessível dos que vivem com nome e rosto que se distingue da multidão;



para outros, uma forma de reavivar a mitologia morta dos contos de fadas, com moral actualizada aos tempos que correm;


há quem pense, ainda, tratar-se de uma forma subtil de criar e dirigir imagens de forma a condicionar gostos e opções da sociedade em geral (hei-de fazer um post sobre o kitsch, intimamente relacionado com esta tese);

e há quem veja uma forma de preencher solidões e vidas vazias, levando os leitores e espectadores das imagens, a fantasiarem uma rotina completamente oposta ao ressonar indiferente do marido, ao despertador das seis, ao trabalho mecânico sempre igual sem decisão nem pensamento, aos problemas dos filhos, ao estender da roupa, ao pensar do jantar de amanhã, que jardineira de frango já enjoa. E siga a roda.

Seja como for, é indústria sempre florescente, parecendo até imune a qualquer crise financeira. É capaz de dar um certo jeito que haja um afastamento da realidade: não virá grande mal ao mundo que a duquesa de Alba ( os meus respeitos) queira casar com um homem pouco próprio,



como Wall Street não dependerá da operação ao nariz da princesa Letízia Ortiz, Cinderela comum aterrada no colo da monarquia.

Existem dois tipos de paparazzi:

os que fotografam os famosos à má fila, sem consentimento e utilizando meios técnicos cada vez mais sofisticados,

e os que são contratados para fotografar os que querem ser fotografados a fingir que não querem dar nas vistas. Neste caso os interessados e seus agentes promocionais, também criam argumentos amorosos e outros mais ou menos excêntricos, para que o mundo fale deles. A qualquer preço. São mestres no fingimento da humildade e da ofensa.

Os furtivos são inversamente proporcionais no anonimato público e nas contas bancárias. Ganham fortunas. Movimentam milhões em cadeia e toda a gente ganha:


Os jornalistas utilizam uma linguagem tipificada, estudada e fartas vezes mentirosa para seduzir a opinião pública. A tragédia, a infidelidade (mais a feminina que a masculina) e o ridículo vendem mais que qualquer tipo de felicidade ou boa notícia.


Desde a morte da Princesa Diana de Gales que existe um amplo debate sobre os direitos e deveres mediáticos das figuras públicas, sendo este estatuto também objecto de discussão. Para a maior parte dos editores das revistas cor-de-rosa, a exposição da vida privada é o preço que se deve pagar por se ser conhecido numa sociedade onde se sofre por se ser anónimo, por não se ser estrela e em que interessa mais o protagonismo que o valor da obra feita.



Para outros, deve ser a figura a decidir e a marcar os limites entre o público e o privado das suas vidas.




Sob a guarda das Consuelos, toda a gente, nos seus estabelecimentos, tem direito a sentimentos privados, a ter olheiras, a dizer que está com dificuldade em memorizar papéis, em escrever, em coreografar, em desenhar, em inventar... em ter desabafos idênticos ao comum dos mortais.

E na maior parte das vezes, do que conheço, o lado timido de dentro é infinitamente mais bonito que o lado espalhafatoso de fora.



Mas isto, claro, é segredo!


terça-feira, 4 de novembro de 2008

Alien e demais augustos visitantes, cá segue o retrato da

guerreira que se cansou da morte

la Consuelo

história contada juntando peças de puzzle, dispersas por conversas rápidas ao longo de vários anos e tendo cautela e tento na tecla pelos motivos que se irão percebendo.



E começando pelo princípio, sei que nasceu no Pais Basco, terra de mulheres duras cujos rostos e corpos parecem rochas talhadas por séculos de intempéries, orgulhando-se de não haver família em que uma ou duas não tivesse passado, ao longo da história, por prisões, sempre no cumprimento de pena por insubmissão.



São consideradas masculinas e rústicas. É o que dizem os castelhanos. Para mí las bascas son igual de guapas qué las demás tías (peço desculpa pelo espanhol, mas convém evitar mal entendidos pela retratada).

Pelo que da infância conta, é fácil imaginá-la, mais coisa menos coisa, assim:


E com muito treino, dada a missão interiorizada de proteger os irmãos e irmãs nas ofensas e zaragatas, coisa mais didáctica que brincar com as inactivas e plácidas bonecas.

Veio para Madrid ainda a cronologia da adolescência lhe era moça, mas já de corpo avantajado e punho sempre pronto a ser disparado a quem com ela se metesse. Não demorou muito tempo para fazer perceber às “vaidosas” madrilenas que não é impunemente que se apelida uma basca de gorda.

Estudou. Pagou o seu próprio curso como ajudante de cozinha em variados restaurantes, e por tradição familiar, fez-se enfermeira com especialização em citostáticos, mais conhecidos por quimioterapia. E sempre a transpirar noite que, diz ela, nunca foi mulher solar.

Ao fim de alguns anos, cansou-se de olhar para o brilho vitorioso da morte nos olhos baços dos doentes.


Zangou-se com Deus, com o Diabo e com todas as comitivas dos dois.

Num arroubo filosófico, interrogou-se sobre os maus exemplos vindos da justiça da transcendência e abriu uma pequena tasca, de uma só divisão, onde cozinhava para os passeantes da noite. Passou a alimentar todos os modos de vida.

Quando já não cabiam nem freguesia nem elogios, mudou-se para uma antiga fábrica urbana de doçaria numa das zonas nobres de Madrid. Gosta de contar que trabalhou dia e noite para pagar o investimento.

Quis a sorte que lá começassem a entrar figuras conhecidas da televisão, do cinema, da moda, da dança e demais artes que chamaram outras gentes com desejo de ter companhia para dois dedos sossegados de conversa.
Tornou-se tal sítio num refúgio quase incógnito.


Mal olfactava paparazzis, Consuelo impunha a sua vontade de discrição e com amplitude física varria quaisquer olhos indiscretos que fossem impedir conhecidos de serem gente comum de todos os dias. Em exuberantes berros, mandava qualquer um coscuvilhar ... bom, digamos que tínhamos ali a síntese do solto palavreado espanhol com a rudeza basca.



Havendo resistência e com aviso prévio, não raro as máquinas fotográficas se tornaram projécteis a aterrar em estilhaços na rua. Aprenderam tais caçadores da intimidade alheia a desistirem das presas, dos seus hipotéticos casamentos e divórcios, divórcios e casamentos.

No dia 11 de Março de 2004 recuperou a memória da enfermagem e foi combater, como voluntária, a morte, o sofrimento vivo e moribundo, para o terreno do ataque terrorista.

Ainda teve tempo para ser uma das activistas do pásalo, movimento que através de sms, encheu as ruas de todas as cidades de Espanha de gente a exigir a verdade sobre a autoria do terror, numa manifestação de maturidade do povo espanhol: embora o governo afirmasse que tinha sido obra da ETA, o povo sabia que os terroristas caseiros nunca matam assim, com aquele tão grande número de incógnitos inocentes. Nem sem aviso.


Com o tempo, Consuelo tal como nós, lá vai tentando empurrar tal memória para um canto escuro. Onde, pelo menos, adormeça.

Entra, todos os dias ao pôr do sol no seu estabelecimento para dele sair quando se faz dia, provando e orientando petiscos e refeições agora já cozinhados por outros. A recomendar pratos do dia seguinte, mesmo quando sabe que não iremos lá. A aceitar o estranho mundo dos artistas com obra executada ou na forja dos sonhos, e de todos os não encartados que lêem e traduzem o mundo com lentes próprias, por mais estranhas e bizarras que possam parecer.



Consuelo não liga a estatutos mas os seus cinquenta e tal anos ensinaram-lhe a radiografar a autenticidade dos corações. Habituou-se a brandir espada contra quem tem pressa em rir ou soltar juízo sobre as várias fragilidades dos outros. Não gosta de mentes infectadas.


Um general vela sempre e por vocação pelo seu exército.

Agora com estatuto de não residente, continuo a preparar as costas e o equilíbrio para a palmada de mão aberta e gigante de boas vindas.

Se Consuelo ler isto, finalmente ficará a saber, que àquela brutalidade com laivos tão usualmente viris, por ela assumidos, chamamos confiança.


Ali, ao virar da esquina...




erbarme dich - johann s. bach