quarta-feira, 27 de maio de 2009

Segue este como explicação desenvolvida da razão porque acho que a Zelda Sayre Fitzgerald, falada no anterior, ficaria melhor no Texas que em Filadélfia , ao contrário da opinião da Frioleiras.

Pradaria fatal


directed by

Lizzie M Girl

produced by

Memory Studios



Não sei como se mede o barulho do silêncio
Talvez em mais nenhum sítio tenha visto tantos gritos como no Texas.

É disso que me lembro, a imagem que ficou: gritos disparados em desesperos. E com silenciador a ocultar o estardalaço do crime.


E uns a correr para o que nunca foram, outros a trote para o que nunca tiveram.

Conheci um cowboy muito rico, com a riqueza que parece só haver ali.


Além das empresas industriais, tinha duas universidades, uma orquestra sinfónica, uma companhia de dança. Mandou construir um teatro, que não queria arte arrendada com ensaio emprestado. Ouvimo-lo dizer que gostava de tudo completo.

Não disse, mas soubemos, que tinha uma espécie de polícia privada.

Alguns agentes estavam encarregues de ir buscar uma das filhas, quando fugia em busca de amores urgentes, desvairados e cegos ao afecto, aos móteis gasolineiros.

Ali se juntava às outras mulheres de risos estridentes, baton para além da moldura dos lábios, na esperança que surgisse do nada o homem televisivo e salvador face à história, às vezes de aparência longa, dos prantos.




O homem que lhes amparasse a cintura nas danças lânguidas, e fora de ritmo, ao som de juke-box e não se importasse com o preenchimento das rugas com creme Pond´s.


Também a iam buscar às minas, cheias de homens desdenhosos, mas tementes, pela leviandade rica da filha do patrão.

Outros agentes, iam atrás de um dos filhos, tradicionalmente Marlboro macho activo, fã de medir bravura com os marinheiros ancorados em S. Francisco.


Já tinha passado a época dos acampamentos hippies em formato peace and love milionário.

Outros acompanhavam a mulher a Paris. À L´Opera. Ao Metropolitan de Nova Iorque, ao Scala


aos desfiles exclusivos de Monte Carlo. Aos leilões da Sotheby´s em Londres. Às conversas privadas em apartamentos montados a rapazes garbosos, devidamente catalogados, elixires da juventude, pensos rápidos para os arranhões, não fosse a solidão infectar.

Talvez ficasse purulenta quando, depois de discussões alimentadas pela tequilla, ia dançar nos versáteis e ancestrais celeiros texanos



Confessou-nos ela, em girls talking.

Conjuntamente com a sua idade real. É mais fácil falar com quem iria partir já amanhã. Já iam longe os tempos em que era morena, eleita Miss Austin, graças à beleza e à exuberância dos seus relevos anatomicamente tão femininos. Verficámos, de várias maneiras, tratar-se duma obsessão texana.




Se o marido, the fucking guy, lhe expunha a passagem do tempo através das amantes, modelos barbies, ela bebia e dançava em celeiros, fora um ou outro Dior ou Balenciaga, atirados para o cloro da piscina. Adorava poesia simbolista. Palavras dela.

A outra, amiga de longa data, tão loira, alta e igualmente insuflada nos atributos físicos, tinha incendiado o presente das bodas de prata, um mero Rolls Royce, enquanto declamava Walt Whitman. Ou Sylvia Plath. Já não me lembro qual o citado. Mas era grande.
Só se chora durante os dois primeiros anos de casamento. Girl, a infelicidade é uma questão de hábito. Ou de preço, pensámos nós, girls armadas ao pragmático hiper realista.



Mas o cowboy sénior usava um fato Versage, com um chapéu permanente da classe e uma botas de picareta, que dariam para a prospecção de petróleo, cheias de adereços dourados.


Para que precisaria de esporas se andava de carro longo na devida proporção das estradas do território? De avião privado. De helicóptero.

Em fase de cumprimentos, era de tal aperto de mão, que imaginei a minha pendurada na parede como troféu de hospitalidade. E logo a direita, que me faz tanta falta.

O homem deu uma festa em casa. De agradecimento pelo espectáculo que tinha pago.


Morava a duzentos km de Dallas, no meio de um reino de sol. Como se ali o astro fosse exclusivo e tivesse deixado todo o resto da Terra às escuras.

De qualquer forma, aquilo pareceu-nos logo cenário de ficção.

Deparamo-nos com Picassos, Renoirs, Pissaros a acompanhar outros de ampla tradição texana,

espalhados pela sala principal. E os retratos de família, a lembrar o orgulho de vencer na terra das oportunidades.

Nós, os assalariados vindos do norte, especulámos, inspirados pelo demónio, atrás de qual estaria o tradicional cofre.

Como em qualquer outro sítio naquele Estado, nem o Picassiano período azul, escapava ao cheiro da carne grelhada e frita, das maçarocas de milho assadas com manteiga. Nem uma sardinha, uma garoupa, um cherne, um tamboril, um camarão tigre.


Não se via criadagem negra, vestida de preto com um engomado avental branco a condizer com a gola. Do Texas, fugiram todos para as lands de cima ao som do chicote dos vencedores.



Ali, os subalternos falavam vários castelhanos, uns de Castela mais clara, outros de Castela mais escura.

Nós, tão novinhos e esbugalhados, não conseguimos perceber porque coño os mais velhos, como o cowboy, tratavam com tanto respeito e educação a empregadagem in the family, enquanto os novos pareciam esmagar baratas acessórias com brutalidade nas palavras e nos gestos.

Haveríamos de perceber, um bocadinho, quando chegámos à crise de 2008. Uns anos mais tarde.
O homem tinha, debaixo do chapéu, um ar triste, como tantos ares tristes, sem pudor, haveríamos de ver pelos caminhos. À beira das estradas, muitas palavras exteriores tinham morrido.


Os olhos fugiam-lhe para lá do horizonte. Como se alguém, de lá gritasse por ele. À medida que ia bebendo, bebendo, bebendo, mais se lhe sentia a fuga frustrada.



Fez discurso solene de agradecimento. O poder parou a algazarra.

Com piadas sem graça e graça sem piada. Esperava que a rude América nos estivesse a tratar bem, a nós os magestáticos e refinados europeus.

Talvez alguns de nós ficasse por lá. Mas nós, as raparigas, não casassemos com nenhum texano. Já, sei lá quem, tinha dito que eram a prova que os extraterrestes habitam a Terra. Blá, blá,blá.

Ninguém dormiu com o alarido daquele alvoroço: gritos de mulheres, berros de homens, crazy bitch, bastard, son of a gun.

De madrugada, os empregados limpavam destroços de copos, recolhiam sapatos e chapéus da piscina. Uma dama dormia, desalinhada, numa cadeira. De um pavilhão chegavam umas notas reconhecidas de Chopin. La Señora gostava de tocar piano à primeira claridade do dia . Antes de se deitar.

E, por alguma razão, quando fechámos, já no ar, os olhos, vimos numa tela preta, o desfilar de nomes encimado por um personagens e interpretes, ou cast in order of apearence.

E até o sol se foi tornando mais discreto. No nosso caminho para o norte.


(Vamos até ao celeiro, esperemos que por mais de trinta segundos.)








i can help - billy swan

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Estando eu, de penitência, em arrumações, encontrei dois livros amarelecidos de Zelda Sayre, Fitzgerald de casada, chamados um Save me the waltz e o outro Pages of private journal, acontecimento que me leva a botar escritura sobre


A loucura dos espelhos simétricos



Já não sei se foi Rosa Montero, ou outra qualquer escritora, que disse não haver pior profissão que a de mulher de escritor famoso. As coitadas, ou ficam eternamente sentadas no degrau mais baixo do pedestal ou são culpadas de todos os desaires na fluência criativa dos génios. Tudo depende de que lado e em que tempo na História se está.

Ora, desde que nasceu Zelda Sayre, teve sempre o condão de inflamar e dividir opiniões e sentimentos. Tinha o absurdo das ideias fixas.

Colava-se a sonhos como se na alma tivesse ventosas de desespero.



Foi numa festa que viu Scott Fitzgerald.

Determinou que, a ser preciso, esperaria toda a vida por ele.

A espera foi curta, não demoraram a casar, apesar de no namoro, o destino já não ser misterioso quanto à montanha russa mutuamente destrutiva: se Scott já era alcoólico desde a saída da infância, ela já evidenciava sinais de vulcão em iminência de erupção.

Não há redomas que isolem o amor do resto do mundo. E aquele foi vivido em época baptizada, por Fitzgerald, de Jazz Age e por Gertrude Stein de Lost Generation.

Viveram o período entre guerras, encaixado entre a euforia de ganhos extraordinários na Bolsa e a depressão de 29.

Conheceram a confusão rápidas de valores.

Tinham sido ambos educados segundo normas rígidas: ele por uma mãe egocêntrica, autoritária e chantagista de afectos,

ela, aristocrata, por um pai juiz à americana, ainda por cima sulista, ou seja, com o estatuto, exterior, de infalibilidade muito próxima de Deus.


Depois da 1ª guerra o mundo correu como um doido enfeitiçado. A moral vitoriana morreu de um dia para o outro. Todo o recato e elogio da virtude se tornou motivo reaccionário de embaraço.



Era vergonha andar-se sóbrio. Mesmo quem não gostava ou não bebia, fazia alarde do seu vício.


Tornou-se chique fungar e exibir o lenço manchado de sangue narigal, anunciando a grandeza da cocaína.

Misturando óleo de amêndoas doces com pó de carvão, damas e cavalheiros simulavam olheiras até ao umbigo, como sinal de constante folia.

Procuravam-se os mais linguarudos para confessar as infidelidades, muito praticadas, nos bancos traseiros dos velozes carros Ford. Introduziu-se a expressão, ainda hoje em vigor, de back seat love.




A dança tinha a ousadia mulata do Charleston, o ritmo do Jazz, o tango (originalmente uma dança gay) foi introduzido como metáfora de sedução ardente e clandestina.

Se raças, como a negra, tinham sido escravizadas, foram elevadas à categoria de demiurgos do futuro.

Substituiu-se o velho e paternal Deus judaico-cristão por deuses mais exóticos e... permissivos.



Começou o culto do nu, não como forma de arte, mas como revolução no modo de vida.

Zelda e Fitzgerald foram o paradigma desta mudança.

Tornou-se ela, a grande musa mediática destes tempos: alimentava-se de espinafres e champanhe, recebia convidados deitada na banheira, e rejeitando as aulas de Ballet que tinha tido desde a infância, preferia as danças, chamadas de balcão, com soldados famintos, em clubes nocturnos.

Mas há sempre uma diferença entre aquilo em que se quer acreditar e aquilo que se é.

Scott, fervoroso adepto e companheiro destas revoluções, nunca deixou de ter a sua origem católica irlandesa, logo ultra conservadora, nas veias do comportamento.

Zelda substituiu a dança pela pintura , Scott insurgiu-se quanto à capacidade da mulher para criar ou trabalhar.


Criativo, para o publico, e a levar dinheiro para casa, só ele.

Hemingway, grande amigo de Fitzgerald, escreveu cartas e artigos a segredar em altos berros que, como vingança, Zelda instigava o marido a beber, mais ainda, como forma de lhe destruir a capacidade de escrita.

Dorothy Parker, também escritora de relativo sucesso, chamando-o sempre (até no funeral) de son-of-a-bitch, contava as formas maquiavélicas que Scott arranjava para destruir a auto estima da mulher. Percebia-lhe as brechas na alma e, em momento oportuno, colocava nelas pólvora. Seguiam-se cenas de fogo de artifício destemperado.

Zelda, escrevia artigos para revistas femininas e outras, a denunciar os plágios que o marido fazia dos seus diários, sem contar com o aproveitamento da sua literal pessoa para as personagens de romances e contos. Nas festas, tratava-o publicamente por piece-of-shit.

A situação agravou-se quando o casal, protagonizado pelo escritor melhor pago do mundo, submergiu em dívidas. Já estavam em Paris, como muitos outros americanos, na ilusão de manter, na Europa, a vida, sem horas, de alta sociedade que tinham conseguido nos Estados Unidos.

Nesta cidade, Zelda aos 27 anos (vinte e sete), acordou o seu maior sonho entretanto adormecido: o de ser bailarina clássica.

Contratou um “honestíssimo” professor russo de Ballet (estavam em moda na altura) e até lhe ser diagnosticada esquizofrenia e ser internada, sofreu oito a dez horas de aulas inúteis por dia.


Não sei se conseguiu actualizar o treino muscular e ósseo tão tardio… através dos choques eléctricos e outros tratamentos iguais em crueldade, em voga.

Scott começou a vender prosa para todo o lado e mais algum para lhe pagar os tratamentos psiquiátricos.

Começou a introduzir, nos contos, personagens ligadas ao bailado. E sempre a vaguear entre o fascínio pela beleza e o repúdio por um mundo que o excluia. Veja-se o Estranho Caso de Benjamin Button, por exemplo.


Entretanto, Zelda tinha escrito um livro autobiográfico, o tal Save Me the Waltz.

Existem duas versões: uma, em manuscrito dado por ela a um editor, e outra, dactilografada, entregue por Scott a um outro editor,a pedido dela.

Zelda veio a descobrir que Scott, tinha corrigido e alterado a sua escrita.

A critica elogiou o produto inalterado.

Fitzgerald, em várias cartas, convenceu os médicos e editores que escrever derretia o já frágil estado de saúde mental da mulher.

Na guerra de Scott pelo protagonismo absoluto, Zelda perdeu. O seu livro foi remetido para a sombra. Nem a publicidade elogiosa na revista Vogue lhe deu luz.

Scott ia-se afundando cada vez mais no álcool, nas drogas e na solidão.


Os amigos foram afastados pelos constantes pedidos de dinheiro, pelo circo patético de encontros de amor fogoso alternados com reboscadas estratégias de mutua destruição.

Scott Fitzgerald, morreu novo, aos 44 anos, completamente afogado, de dentro para fora, no seu sustento: o liquor.

Zelda, oito anos mais tarde, ardeu o corpo e a alma no elemento que sempre lhe foi atribuído: o fogo.

Foi liberta do estatuto teimoso de sombra nos anos sessenta (embora só nos noventa começasse a ser estudada de forma mais desapaixonada e isenta).

Tornou-se um ícone de vitimização exemplificativa para as feministas mais radicais.



Foi, conjuntamente com Marilyn Monroe, alimento para literatura trágica de cordel.

Foi inspiração para escritores, coreógrafos sensatos e diva para outros que achavam que... para dançar era preciso provocar loucura e sofrimento nos bailarinos, tendo como agente, entre outros, o LSD.


Nas companhias mais institucionais, sobretudo americanas, foi sempre apresentada como modelo a não seguir. Em circunstancia alguma.

Muitos estilistas têm desenhado colecções temáticas tendo-a em mente.



Subi ao sótão, reli a citação dela, sozinha a meio da página, antes do começo do livro Tender is the night, de Scott Fitzgerald que, se bem me lembro, melhor a retrata :

Nobody has ever measured, not even poets, how much the heart can hold.

Onde terei posto o livro com a correspondência entre eles?
Prometi-me, pela milionésima vez, lembro-me agora, arrumar todos os meus queridos escritores americanos. Juntos.

Apaguei a luz e desci as escadas.

Lá fora, umas nuvens planas e pontiagudas pareciam apunhalar o azul, já de dia moribundo, no céu.



quarta-feira, 13 de maio de 2009


É tão vasto o mundo que tudo, sendo uma coisa igual em forma, se pode transformar em mil conteúdos consoante os olhos que a vejam.

Histórias encantadas de um mágico voador



Talvez todos os povos coincidam na curiosidade e no temor de saber o que está para além da vida, como foi feito o mundo, onde começa e acaba o firmamento, donde vem a luz e outras questões de resposta assaz difícil para a tranquilidade do pensamento.

Toda esta conversa vem do meu espanto, quando há anos, na descoberta do norte dos Estados Unidos, vi estalagens com nome Corvo, livrarias Corvo,


sabonetes Corvo, cereais Corvo, cerveja Corvo, pessoas passeando-se com os seus corvos no ombro, um velho de traços índios fazer uma vénia a um corvo, seguido de uma conversa indecifrável para o meu entendimento.

Se eu, por causa das lendas inglesas, já sabia que os corvos têm dons de metamorfose, sabedoria, justiça, a par de serem bons ladrões (Robin Hood achava-se uma digna encarnação de corvo), gozões, coscuvilheiros e alarves descarados, colegas com menos histórias britânicas na memória, ficavam em grande desconfiança ao verem tais homenagens a símbolos de morte pura, de alma penadas ou danadas e amigas de todos os vícios sorridentes do Demónio.


Lá apareciam os espanhóis, arrepiados e receosos, com o seu cria cuervos y te sacarán los ojos, provérbio preferido em períodos eleitorais, uniões ou casamentos de amor genuíno duvidoso.

Disse-me um índio, de expressão facial abotoada, como só eles têm, que ali, no norte, se aliaram as mitologias celta e índia na consideração do bicho como ser superior e intermediário entre a vida e a morte. Doutor honoris causa da transcendência.

Os corvos criaram toda a vida na terra a partir da água e de um saco cheio de pedrinhas.

Foram ao sol e roubaram-lhe a luz, numa versão, ou chegaram perto do astro e abriram um caminho para que ele se pudesse expandir pelo Universo, noutra. Não se sabe bem, porque os corvos não gostam de se gabar das suas proezas.
A terem essas conversas, só com os lobos, rivais, naquelas paragens, com os coyotes e os ursos, em grandeza de mito.


Mas, continuando, os corvos cozinharam na terra uma espécie de sopa da pedra, acrescentando elementos. À imagem deles, desenvolveram nas pessoas o sentimento da paixão e do amor. Os corvos, entre si, são amorosos. Não têm a hipocrisia do afecto remediado nem a dor da solidão escondida e envergonhada.

Eram brancos mas, foram beber a maldade e o desconhecido das trevas e ficaram tingidos de negro. Nenhum ser, conhece, como eles, turistas do inacessível, os desígnios dos espíritos que não se mostram. Já os gregos os consideravam espias. Foi Apolo que, por raiva de espionagem, os pintou de negro.
Os estilistas e outras gentes ligadas à Moda, desde o séc. XIX, são deles invejosos: muito demoraram a encontrar a química de pintura do cabelo em tom preto-asa-de-corvo-com-toque-azulado . Tal, em combinação com pele branca de leite e olhos verdes, só se encontra em terras irlandesas, galesas e escocesas, nas mulheres, muito raras, filhas de corvo.



Fiquem sabendo que iam as virgens, quando menarcas, dançar nos lagos e rios, fertilizadores dos bosques.
Vinham os corvos admirar-lhes a beleza.
Dançavam em bicos dos pés, para que a sua leveza e graça ficasse mais acentuada. E a mais bela, mais leve, a que subisse mais alto, tinha romance desflorador com o corvo mais negro.
Nascia, assim, filha, sempre filha, abençoada de cor branca como o luar, de olhos verdes como os gatos vigias da floresta e cabelo preto azulado, misto de fada e bruxa com todo o entendimento dos segredos do mundo.

Ainda hoje, nos lares daquelas bandas, se penduram nas casas quadros kitsch como este,


não sei se na esperança que nasça rebento do agrado de John Galliano, Jean Paul Gautier e de centenas de fotógrafos. Neste campo, a raridade (natural) é mãe da beleza.

Continuando, são mais fiáveis que o boletim meteorológico, apoiado em imagens de satélite, a prevenir os alertas vermelhos das tempestades. Dizem que, quem lhes entende os gritos, lhes agradece os avisos.



E, no reino do além, conheceram toda a espécie de doenças.

Avisam em caso de peste e, generosos como são, não se importam de doar penas e segredos para farmacopeias e alquimias várias.

Os cientistas já sabem, que em caso de algum ficar doente ou ferido, o parceiro ou parceira, pai ou mãe, vai à natureza buscar as ervas terapêuticas. E que se juntam, em sítio recatado, numa espécie de hospital.

Mas se, para os humanos, a dita pena e as ervas não resultarem, os corvos tomam o encargo de levar a alma do defunto para poiso adequado na eternidade. Conhecem todos os recantos de paz no céu como todas as grades do inferno.

Ainda hoje, em Boston, se celebra o dia anual do corvo e, por inerência o dia de Edgar Allan Poe, filho de tal terra.





Os celebrantes vestem-se e pintam-se de corvo, evoca-se a vida e a morte. Vai-se aos cemitérios levar flores. Come-se peixe, saboream-se frutos silvestres, petiscos a que nenhum corvo resiste, sem falar numa boa taça de gelado ao alcance do bico.


Em Janeiro, os índios dançam em honra do corvo: uma dança lenta, com gestos largos e melódicos, a exibir o equilíbrio, contrariando a queda.
Diz-se que foi neles que Doris Humphrey, uma das mais inovadoras coreógrafas do séc. XX, se inspirou em tais movimentos para criar o seu método na chamada Dança Moderna.



É crença que, conhecendo a fundo o interior da alma, revelam aos artistas, a matéria da arte contida nestes. É tão maior o artista quanto melhor souber, e tiver humildade, para ouvir o seu próprio corvo. Aquele que mora no mais recõndito de si.

...well, go home and listen to your raven...

E, não só no Massachusetts, é da tradição oferecer-se um corvo de peluche aos recem nascidos, como é uso, como prova de amizade e bons desejos, dar boneco a representar o bicho a quem se gosta. Ainda tenho um de pano, talvez um dos presentes mais comoventes que recebi.

Da protecção que dão à monarquia inglesa e a Londres, já falei em comentário no post anterior.

Já expliquei porque são constantes na Torre de Londres.

Faltou-me dizer que horas antes da morte da Princesa Diana, morreu, inesperadamente, uma das Corvas da Torre, como não contei que em 1918, se conta que fizeram grande e inaudito estardalhaço, no regresso dos soldados ingleses à sua terra: estavam quase todos infectados com a Gripe Espanhola.

Podia contar muito mais. Mas só digo que a ciência já lhes desvendou muitos mistérios. Descobertas de pasmar.

Mas, sei lá…prefiro imaginar-me sentada à beira de uma lareira, saboreando um velho whisky ou bebericando chá, braços em volta das pernas, a ouvir histórias de reinos encantados, enquanto, na memória, os vejo brincar: grandes pontos ágeis, negros, altivos e seguros, na planura alva da neve.


Até adormecer. Num sonho sorrido de mar ao som de um canto de bosque.


(arriscando a que só se ouçam trinta segundos, aqui deixo uma saltitante música de dança celta.)




the musical priest/scotch mary - jordi savall/andrew lawrence-king