quinta-feira, 31 de janeiro de 2008



Breve história das palavras mudas





Darwin defendia que todas as pessoas, independentemente da raça ou cultura, têm o mesmo tipo de expressões facio-corporais. Referia-se, com certeza, à resposta perante determinados estímulos provocadores de riso, choro, dor e outros. Paz à sua alma, mas não era homem dado ao restante mundo fora do seu, porque para além do inato, existem linguagens não palavrosas que muito dizem e variam.


Tal problemática começou a ser estudada por um tal de François Delsarte, nascido no ano da graça de 1811. Não viveu o tempo suficiente para saber que moldou gestos e poses, na dança no teatro, na moda, nas artes plásticas, no café, no trabalho, no metro, no avião mais em toda a parte em que as pessoas gesticulem ou fiquem paradas, suspensas nos pensamentos.

Teve uma vida atribulada e um dia resolveu olhar para os gestos da pessoas. Tornou-se vadio em cemitérios, cafés, circos, praças, tabernas, mercados, hospícios e por aí fora. E estabeleceu um padrão de gestos e movimentos comuns a situações, ou seja, transcreveu a alma para o corpo. Tinha na mira os actores e a eles o aplicou, vestindo-os, para maior liberdade de movimentos, com túnicas à maneira grega.





Estavam criadas as bases das poses na representação do teatro declamado, melodramático, exagerado. Quem não o conhece?
Do teatro passou para o cinema mudo




e foi até utilizado na propaganda dos regimes totalitários, fossem negros ou vermelhos




neste caso nazi, na boa tradição do olhar ao longe do romantismo alemão, porque, em Inglaterra, no romantismo latente nos pré-rafaelitas, era mais comum a pose também Desartiana, da melancolia do olhar baixo, mão junto à face, cabeça, ou coração








aliás, também muito comum, no Ballet Clássico de inspiração lendária nórdica, como o Lago dos Cisnes ou a Giselle



(espero que a Ana Lacerda da Companhia Nacional de Bailado não me cobre direitos de imagem).


Se olharem à volta, verão ao vosso lado todos os dias pessoas com este padrão de inspiração romântica. Verão melhor se forem surdos, ou desligarem o som das televisões. Ou se forem leitores de fotonovelas. Classificamo-las, até, de muito teatrais.

Se observarem pessoas pouco habituadas ao pequeno ecrâ, ao teatro ou ao cinema, porque o público da dança quase se conta pelos dedos, como os trabalhadores do campo-campo, por ex, verão que a gesticulação já é um bocado diferente.

É que os gestos são, consciente ou inconscientemente, linguagem apreendida, de identificação com um grupo , como a roupa que escolhemos vestir.

Continuando, um protegido de Delsarte levou o método para os Estados Unidos. Teve mais sucesso que a fast-food. Parecia o vírus da gripe. Espalhou-se por todo o lado até a manuais como este






Exactamente. Poses de sedução adequadas, acompanhadas de palavras a rigor para um frutuoso e feliz posterior casamento. Vi, mas, confesso, que nunca apliquei. Também há para homens.

Como os gestos têm cenário, tempo e moda, consoante as flutuações e exigências sociais, esta vaga lãnguida foi adaptada, nuns casos, repudiada noutros, por uma senhora chamada Edna Woolman Chase, editora da revista Vogue, na altura já líder no lançamento das femininas atitudes. Aqui temos Desartianas do mundo laboral. Qualquer dia falarei da moda e das suas variações de poses.






Alguns defendem que Delsarte foi avô e pai da danças moderna e contemporânea cuja mãe foi Isadora Duncan. Deslumbrada pela liberdade das túnicas, adaptou a gestualidade aos movimentos, como forma de transmitir emoções. Mas esta história é longa e isto é só o intróito.




Mas posso ainda dizer que a seguir veio Ruth St Dennis que foi professora de Martha Graham que fez uma coreografia e interpretou uma obra maior chamada Lamentation (não sei fazer links mas, quem esteja interessado, pode ir ao Youtube e botar Martha Graham e Lamentation e logo aparecerá) onde estão, na essência, os princípios do método e que por sua vez foi tinta que coloriu tantos e tantos que vieram depois, até hoje e a este preciso momento.

Sobretudo aqueles que olham para o mundo, e de alma transferida para o corpo, lhe desenham as dores silenciadas. Com ou sem voz a ilustrar.





E , já agora, pedindo emprestada a caneta à miúda Maria Papoila, junto complemento visual à resposta dada ao comentário da tia adoptada


Primeiro a eterna moribunda pulmonar, a inglesa Lizzie Siddall em pose romãnticamente inspiradora








e o furacão Lou Salome, sem medo nem doença no olhar





e aqui literalmente pronta a chicotear os seus simultâneos e buliciosos amantes Wagner e Nietzsche



e mais quem quisesse casar com ela ou a contrariasse.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

As amnésias







Já não sei há quanto tempo foi. Esqueço-me das datas, só fixo circunstâncias. Mas já lá vão uns anos.

Sei que alguém fazia anos, vou-lhe chamar $ e uma amiga minha me pediu que a acompanhasse ao jantar de aniversário. Tinha relações de trabalho e como pessoa bem educada que é aceitou.

À porta do restaurante, caríssimo, estava uma pequena multidão. Cumprimentos de um só beijo e apertos de mão frouxos a denunciarem afectos de gelatina. Talvez por isso, só me apresentei com o nome próprio. Nada de apelidos ingleses ou portugueses sonoros, que é coisa que aguça o apetite a qualquer desconhecido carente de conhecimentos que se preze. Como toda a gente sabe Portugal, não insultando a maior parte dos portugueses, é uma república de nomes eternos e sonantes. Como aqueles que eles iam dizendo que tinham como conhecidos e amigos. Pareceu-nos até matéria de competição.

Sentámo-nos no extremo da mesa, viradas e virado, que entretanto se sentou senhor ao nosso lado que só se apresentou como Zé, faz de conta porque não me lembro do nome. Ficámos em boa plateia para a representação que se ia seguir.



1ª amnésia:

todos os actores, sentados na mesma mesa, começaram a falar pelo telemóvel uns com os outros pondo a mão à frente. A criatura que estava à minha frente ia dizendo não sei, acho que é bailarina e ria-se e ia perguntando queres tu? e generoso oferecia um tábem, fica para ti.

Ora os nossos pais sempre nos disseram que é muito feio dizer segredos à frente de outras pessoas. Os deles provávelmente também, só que coitadinhos, esqueceram-se.







Largados, por enquanto os telemóveis temos a




2ª amnésia:

a $ foi descrevendo a sedução que andava a fazer, ou já tinha feito, a uma secretária, rapariga humilde com subida a pulso, descrevendo alguns pormenores profundamente íntimos, da paixão da dita que até tinha deixado o namorado face à grandeza de tanto envolvente e poético amor. Leu mensagens em tom declamatório. Os actores riram-se e contaram das suas. Uma com ar escorreito leu também, aos solavancos, tal era o riso. A outra, que estava em frente, entrou em desgarrada. Tivemos sessão de leitura. Confidências. Pedidos de ajuda. E, mais descrições de pormenores íntimos. Muito íntimos.

Ora os nossos pais sempre nos ensinaram que o que nos é dito como segredo em segredo deve ficar. Mais um ensinamento, que com certeza lhes tinha caído no esquecimento.





3ª amnésia:

de repende começou-se a ouvir falar em comer e comer pessoas. As que já estavam em processo de digestão e as que ainda haviam de entrar para a boca.

Ora na nossa cultura, que eu saiba, e salvo processos patológicos, não se pratica o antropofagismo.









4ª amnésia

descreveram-se as faces, físicos e origens familiares em tom jocoso, porque o pai daquele cavava batatas, porque a outra era gorda, porque mais aquela tinha uma pele péssima e vestia na rua dos Fanqueiros e outros pormenores referindo dimensões de glãndulas mamárias, ou tamanhos de orgãos reprodutores.

Ora sempre nos ensinaram que há bons e maus em todas as classes e que cada um é como nasce e que não há ninguém perfeito, mas eles, garanto-lhes, tinham-se esquecido, também, de olhar para os espelhos.





5ª amnésia

uma das senhoras mandou chamar o cozinheiro e perguntou-lhe se estava menstruado para ter feito semelhante porcaria. A nós, soube-nos bem,malgrado o ambiente, sobretudo à minha amiga, que tem como hobby a gastronomia. Também foram parar talheres ao chão. Apercebemo-nos que era só para testar a coluna dos empregados.

Ora a nós, quer os portugueses, quer os espanhóis ou os ingleses, sempre nos exigiram respeito pelo trabalho das pessoas, o que seria da rua sem os almeidas, bem como a apanhar objectos que tivéssemos deitado para o chão. E ai se fosse de propósito, género birra. Mas, pronto, como duas das protagonistas vivem sem trabalhar e têm falta de fósforo, esqueceram-se.



E chegou a dita secretária com um ramo de flores. Envergonhada com tal pujança de gente, sentou-se, qual bobo sem conhecimento que lhe desse para fazer ironias sem castigo. Deparou com olhos doces, envolventes e ataques de riso em redor. Mais telemóveis gargalhados.



Quanto a nós pedimos rápidamente a conta, despedimo-nos por alto e saímos a meio, ou a um terço da festa. Razão teve o Zé, de memória actualizada, de ter dito ar puro, isto não se faz.


Nós concordámos e dissemos em coro: NUNCA MAIS!


Despedimo-nos com dois beijos e comentámos que a memória traz benefícios.


E continuamos a guarda-la o melhor que somos capazes, tentando remediar-lhe as injúrias.









sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

A extraordinária e intrigante história de Grace Marks





Contada aqui de forma o mais sintética possível pois é saga com princípio mas sem meio nem fim resolvidos.


Quando Mary Whitney nasceu em Dublin, filha de pai trapaceiro e alcoólico e mãe maltratada, nos avançados de 1800, mal adivinhava que iria ser personagem de inspiração para dramaturgos, escritores, pintores, coreógrafos e objecto de estudo para psiquatras, sociólogos, criminalistas e demais gente interessada em encontrar a ponta do novelo das desordens do mundo.






O pai, para fugir a credores e na esperança de curar a sífilis, resolveu meter a família num barco e emigrar para o Canadá.





Como tantos outros viram-se metidos em massa na embarcação, com pouco espaço, até, para esticar as pernas. A mãe adoeceu, morreu e foi deitada borda fora. Adiantou serviço aos fiscais pois era regra, à chegada, haver exame médico e repatriar os que não tivessem rubostez física.





Mary foi aceite, separada dos irmãos e o pai nunca mais viu morto nem vivo.

Tinha doze anos quando foi colocada como criada para todo o serviço numa quinta de homem solteiro,mau rapaz e engravidador da criadagem. Tal espaço haveria de tornar-se local de romaria num misto de reportagem, ciência e voyeurismo.





Distinguiu-se a moçoila pelo asseio, pois dava caça constante aos piolhos e mudava regularmente a palha da cama onde dormia com mais quatro. E, facto importantíssimo, não era capaz de matar galinhas ou qualquer outro bicho de consumo, desmaiando à vista de sangue.


Tornou-se amiga de Grace Marks, outra criada, cuja memória (junta com a da mãe) da alegria e bondade, recordou para o resto da vida. Mas grávida aos treze anos, Grace morreu de complicações de aborto.


Um dia, o patrão, a governanta e gravidez de oito meses dela, apareceram esquartejados nos aposentos do pecado. Aparentemente vítimas de ciúmes de vários lados.


Mary , apresentando-se com os papéis e roupas de Grace, fugiu com o moço de estrebaria para Boston. Nunca mais de lembrou que nascera Mary.


Mas acabou por ser presa à chegada, mas não enforcada como o moço. Valeram-lhe a amnésia e os célebres desmaios, mais os ataques de mutismo alternados com ataques de umas boas maneiras e pronúncia de duquesa inglesa que ninguém percebia onde, conjuntamente com outras coisas, tinha ido buscar.


Com o contacto com as outras culturas de que falei no de baixo, logo se alvitrou a hipótese de Grace ser uma reencarnação até de Maria Stuart, visto ser católica praticante e curiosamente ter um vinco no pescoço a que hoje se chama vulgar angioma mas que naquela época ainda não tinha baptismo a não ser como sinal de transcendência.


Foi dada como doida e encerrada numa cela escura a pão e água. Acreditava-se ser tratamento adequado para a mais nefasta loucura. Como morriam entretanto, nunca se chegou a saber se ficavam, de facto, curados.

Seja como fôr, voltou, para a prisão. Se calhar não era doida, era assassina sem provas bastantes.
A sua calma e modos e a velocidade com que aprendeu a ler e escrever, levou a que ficasse durante o dia a servir numa família abastada. À noite voltava para a prisão.

E lá ficava ela, já protagonista de recortes de jornais, sentada na sala em exposição enquanto se teciam especulações sobre ela. Permitiam-lhe, até, ir bordando o seu kilt, espécie de colcha obrigatória em qualquer enxoval de casadoira.






Um negro fim de tarde, os oito elementos da dita família apareceram sentados à mesa do jantar em digna pose de mortos, a escorrerem sangue pelo pescoço abaixo.

Grace tomou posse do estrelato absoluto. Tornou-se personagem de teatro de rua, de congressos de várias especialidades, debates sem fim e lenga-lengas. Nos jornais discutia-se: terá sido, não terá, será doida, não será. Foram largas as versões nas feiras na modalidade preferida de representação das populares gentes






Escapou mais uma vez à forca já que no julgamento teve mais ataques de incoerências, desmaios intervalando com amnésias e, sobretudo, porque três guardas prisionais juraram de mão na Biblia que áquela hora lhe tinham feito guarda de forma intíma e amorosa.

Foi condenada a longa cadeia, onde se portou de forma submissa, ordenada e cordial para os muitos visitantes pró e contra a sua culpa. E muitas e variadas paixões despertou, tendo, por desgosto de não correspondência, uma jornalista famosa derramado sangue nos seus próprios pulsos com uma faca, deixando orfãos dois filhos menores.





Quando saiu era uma velha para a época, tinha quarenta e tal anos, e aproveitou para dar uso aos seus famosos kilts, no matrimónio com um homem rico que sempre lhe financiou os caros advogados e já existentes bostonianas advogadas para sua defesa.

Só se sabe que foi viver para Nova Iorque, onde uns anos mais tarde uma família do jet set local, apareceu sentada na sala de visitas, muito composta não fosse estar morta por degolação. Tinham acabado de lanchar.
O tal marido já muito velho, morreu com septissémia resultante de um grande golpe na cara ao escanhoar-se. Ela, não se sabe a certeza, mas alvitra-se que tenha morrido calmamente de paragem cardiorespiratória.






E, deste modo, desejo um bom descanso a esta senhora que acabou, ontem, como actriz, uma série longa de espéctaculos representando Grace e as suas envolvências dramáticas, e que também não é capaz de matar seja que bicho fôr, nunca esteve internada nem presa, tem boa memória e tem interessantes conversas com nexo e que, muito embora seja espanhola, nunca se preocupou com enxovais e muito menos com colchas, e tem como cabeleireiro o Manolo que apesar de trabalhar com objectos cortantes também não gosta de ver sangue.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Amizades bostonianas



Foi quase uma inversão de papéis.

A história vai do último terço do séc XIX até ao final dos anos vinte. Enfim, mais ou menos.

Com forte influência inglesa, vivia-se até então em Boston, e estamos a falar da média-alta burguesia, na mais completa vacuidade dos dias. As damas dedicavam-se à família e a receber; os cavalheiros geriam os negócios, frequentavam as casas de passe e os clubes encharutados de rigorosa selecção por nome e estatuto. Tanto elas como eles mudavam de traje dez vezes ao dia consoante o ambiente e ocasião que iriam frequentar. Assim mandavam os livros de etiqueta, que sempre achei de deliciosa leitura, sociológicamente falando, também pródigos em frases feitas adequadas a cada circunstância. Proper or not proper, there´s the question.

As damas recebiam em suas casas, rotativamente, e era moda o prenúncio dos blogues: cada uma tinha albuns com recortes de jornais e as demais comentavam a selecção entre goles de chá e dentadinhas nos scones. As notícias de crimes eram as preferidas.

Também era moda receber, como criadas, presidiárias em liberdade condicional, e comentar-lhes fisionomias, hábitos e modos em presença viva. Discutia-se socialmente psiquiatria como se fosse assunto de estar calor ou frio. Não admira que muitos cutelos saíssem da cozinha e fossem viajar até aos senhoriais aposentos. Houve até uma faca de trinchar que voou oito vezes.

Talvez inspiradas pela florescente economia ou pelo aprofundamento da arte de bem coleccionar e comentar, algumas, mais novas, começaram a querer aprender as causas das coisas para melhor opinar. Também bateram o pé contra casamentos combinados ao dólar. Fartas da função apática começaram a querer trabalhar. A estudar. Saíram da casa de família e juntaram-se em casas que repartiam consoante a sua vontade de futuro. É aqui que entra a designação de amizades bostonianas, conceito divulgado e expandido pelas revistas de moda. É engraçado que, pela primeira vez, também se promovia a vida ao ar livre. Salões fechados fora, rosetas nas faces. A palidez tuberculosa morria com os espartilhos. Arejado funeral.





Fundaram editoras para a nova literatura assinada com nome próprio de mulher, já que até aí, eram frequentes as ousadias mas com pseudónimo masculino. Livros de descarada componente sexual, acerca do desejo activo feminino, crítica social mordaz e satírica e vida do tempo em geral. Algumas chegam a lembrar o fino corte do Eça.






Voltaram-se para as artes e retrataram novas, mais seguras e afoitas expressões



(este de Sarah Wyman Whitman)


( e este de Lilian Hale)




Muito espernearam os mais conservadores! De forma inútil porque entretanto esse motor de libertação que é o poder económico, delas, tinha crescido. Largados os paternais tutores das heranças, eram muitas as que geriam os negócios. E muitos homens até talvez concordassem, mais ou menos, com a frase inscrita na parede de uma universidade (não sei se foi o princípio dos grafittis, mas ainda está lá , conservada em prol da História):

There is nothing that men can do that is not done by women now in Boston.

E tinham razão, porque enquanto no Sul, os negros ainda viviam com prática de escravatura, aterrorizados com o klux-klux-klan, em Boston esta pastora da igreja, Nnannie Ellen, organizava um sindicado para defesa das empregadas domésticas, pobres emigrantes engravidadas na sua maior parte.









Vivacidade de olhar, convenhamos, não lhe faltava. Escreveu também uma tese revolucionária sobre o papel das mulheres na Biblia. Teóloga de respeito.

As universidades começaram a encher-se de saias. Deu luta e trabalho a especialização em campos como a física, a medicina, a engenharia, a arquitectura, antropologia. Campos até então exclusivos da inteligência masculina, até se conseguir o primeiro doutoramento com chefia posterior de departamento. Tinha começado a bola de neve,





que se estendeu à paranóia ainda hoje existente do desporto universitário com a criação de equipas femininas a representarem as instituições:






Mentes de espírito práctico abriram escolas de ensino técnico que ia desde a culinária à carpintaria passando pela mecãnica de automóveis.






para grande ataque cardíaco de Henri Ford.

E, por falar em locomoção, há registo de uma sociedade de inventonas com registo de patentes, muito dedicadas ao design. Estávamos no início da pressa executiva de viver. Surgiu o famoso e muito acelerado americano dito do time is money, aqui só para nós, poderoso motivo da minha pessoal irritação.




E já agora, algumas fundaram ginásios de manutenção e não só, orgulhando-se de exibir farto treino:





Linda! Com exacta proporção no chapéu!


E tudo isto foi onda que se foi espanhando pelo território e arte fora. Até chegar ao vibrar do corpo como veículo expressivo, ou seja, à dança. A frequência das Universidades foi crucial para não falar no uso de botas e mochilas de viagem a caminho do estudo de outras culturas, outros gestos, outros movimentos até então considerados disgusting and so native. Olhou-se sobretudo para o Oriente, para os índios, para os negros, para o Jazz.


Começou a escrita dos pensamentos e afectos através da fibras do corpo. Sentido. . . na tal memória do sangue.


A tal memória que deveria alimentar o futuro.





terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Martha, a domadora

O prometido é devido, por isso cá vai história que a Martha Graham tanto gostava de contar e fazer contar e recontar e se também eu lhe faço eco, é mais uma pequena prova provada que era dama que se impunha e continua a impôr mesmo lá no sítio onde estará. Grande parte da gente pensa que seja no Inferno, e uma grande parte dela acha que o Diabo já se fartou e lhe deu exílio em prol da paz de espirito no seu tórrido território. Mas até ele, com certeza, lhe mantém respeito pelo talento.





Esta senhora, Martha Graham foi em 1956, salvo erro, com a sua própria companhia, em digressão a Itália. Começou por Florença, e a palavra escandalo ganhou todo o seu adorado significado. Com já disse aqui lá para trás, Martha não desdenhava uma boa luta. Era uma das suas proteínas diárias.

Na altura Itália em geral e Florença em particular só admitiam uma espécie de dança, o Ballet Clássico, com coreógrafos e directores sempre homens. Martha vinha do país onde, a começar por Isadora Duncan, as mulheres se tinham tornado donas do seu destino, trabalhando fora de casa, tomado decisões. Com o fenómeno das amizades bostonianas tinham provado que o seu craneo tinha pensante recheio. E, na dança, provaram também que tinham um corpo sensualmente pulsado para além dos fins finais da maternidade. Ironia pura num país marcado pela moral protestante.





A grande revolução na dança foi feita por mulheres. E partindo das ideias de Wagner, tomaram o conceito de arte total, isto é, não há dança separada de todas as outras artes, nem da filosofia. Mas isto ficará para outra altura Em episódios.

Note-se ainda que nos Estados Unidos o Ballet Clássico convivia, ontem e hoje, em paz e sossego com a Dança Moderna. Havia, por parte do público e dos intelectuais respeito pelos dois, ao contrário do que ainda hoje se passa em Portugal. É quase obrigatório intelectual que se preze dizer mal do Lago dos Cisnes ou da Giselle. Um dia hão-de crescer para perceber que cada qual tem a sua história, esforço e arte. Ou alguém se lembra de dizer que Shakespeare ou Mozart já prestaram mas hoje já não prestam?

Como dizia a Graham, só existem duas espécies de dança: a boa e a má.

Quando o pano subiu para a peça Dark Meadow, o que os florentinos viram, habituados a que a dança se baseasse na elevação, nomeadamente através do uso das pontas e nos movimentos suaves e etéreos, foi uma série de pés nus, corpos sujeitos à gravidade arrastando-se chão fora, bailarinas musculadas de cabelo solto ou curto, gestos bruscos, sensualidade bruta, animal e descarada.
Martha preferia a expressão à beleza. Falava até na memória do sangue de que o corpo deveria fazer eco.




Ouviram uma música dissonante de Carlos Chavez e deparáram-se com cenário pensado pelo escultor Isamu Nogushi




(com quem Martha estabeleceu parceria constante) , uma espécie de rocha no palco, cores inflamadas e contrastantes. Abstração total.

Viu também uma enegética bailarina principal , ela, e adivinhou-lhe a idade: 62 anos (sessenta e dois ).




E, face a tanta inovação o público assobiu, berrou, insultou, riu-se, levantou-se.

Martha mandou que parasse a dança e com a mão fez aquele sinal de stop, género polícia sinaleiro.
Acalmou-se a assistência. Continuou a dança.
Voltou a balbúrdia.
Voltou o sinal e assim sucessivamente, em tom cada vez mais decrescente, até ao fim.
Alguns bateram palmas, já eram bastantes os domados. Martha ordenou que os bailarinos, em vez da vénia, ficassem estáticos de olhos no chão. Virando as costas ao público, ela, sózinha na boca de cena, bateu palmas aos bailarinos. O público fez silêncio.

O leão tinha metido a cabeça na boca dela.

Anos mais tarde a cidade de Florença ofereceu-lhe uma condecoração: a medalha Leonardo Da Vinci. Até o Papa João Paulo II pediu para falar com ela, em Castel Gandolfo.

Já agora







Um dia uma companhia de dança sediada em Boston, mas a fazer estágio na Martha Graham Dance Company em Nova Iorque , foi mostrar habilidades grahamianas a Itália, começando por Roma e acabando em Florença. Antes de partirem, viram aparecer a velha senhora já escandalosamente frágil , com luvas a esconder a deformidade provocada pelas artroses, olhos baços já à espreita da morte. Altiva. Autoritária. Fez discurso, contou a sua versão da história, disse, mais uma vez a sua frase favorita:

os bailarinos são os atletas de Deus.

E pediu que, na altura dos agradecimentos, todos olhassem para o chão durante uns momentos. Assim fizeram. Uma questão de respeito.

Se calhar lá tinha as suas razões, porque em recepção após performance, um dos muitos apresentados como condes, ou duques, ou viscondes,( lembrou-se até uma das bailarinas do famoso
foje cão que te fazem barão
para onde se me fazem conde? )
cultíssimos, virou-se, por acaso, para duas das bailarinas e disse num inglês enlatado e parafraseando Balanchine que era sempre interessante ver, em vez de bailarinas, vacas a pastar no palco.





Perceberam as duas que tinham a boca pequena, ou que então cresce com a idade, seja com fôr disseram-lhes que no dia a seguir dançaram a outra peça agendada com toda a memória que tinham no sangue, neste caso ibérico.






E passaram a achar que a história devia ser contada pelo tempo fora, seja qual fôr a dança, ou a vida.






segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Soberanas vaidades e afins




Esta vistosa criatura é Luis XIV, enquanto Sol.

Além de outros gostos tinha paixão pela dança, fazendo-se sempre bailar como Sol ou Apolo. A duração da dança, , chamada de Ballet de la Nuit, e a que corresponde a gravura acima era de treze horas. Foi criada por um italiano chamado Giovanni Baptista Lulli, mais conhecido, depois de ter abandonado a pátria por não lhe serem concedidos poderes sobrenaturais, por Jean Baptiste Lully. Quando se tornou superintendente da música real, tomou a soberba decisão de despedir todos os funcionários italianos. A corte tinha ouvido para o estilo italiano, ele queria-o francês, apoiado na Real vontade.

E, fez saber que foi sobre sua influência que Luis criou a Real Academia de Dança, instituição que viria a ter extraórdinária importância na génese do que é hoje conhecido por Ballet Clássico. Pela primeira vez, na dança, se percebeu que para se exercer bem uma função é necessário ser-se profissional, ou seja, perceber do assunto, trabalhar e receber salário por isso.

Também foi aqui , e por autorização real, que as mulheres foram autorizadas a mostrar os seus dotes dançarinos. Até aí eram os homens a desempenharem os papéis femininos. Ninfas e musas. E foi também aqui que se inventaram e começaram a desenvolver posturas e passos ainda hoje utilizados, como o fundamental en dehors, mais conhecido pelos leigos como o dez-para-as-duas, ou, como se diz em Espanha, la marcha de pato. Ora vejam os pézinhos para fora





tão responsáveis por dores e lesões desde antanho até ao correr dos nossos tempos mais os que hão-de vir. Tal viragem começa na rotação para o exterior da anca , desce perna fora até à extremidade, passando pelo sacrificado joelho.

Foi também aqui que se iniciou o léxico técnico. Daí que toda a linguagem balética seja em françês. Nunca se conseguiu que tivesse outra língua, embora se tentasse.
E foi também aí que surgiram os cenógrafos, figurinistas e músicos em nome individual. Até aí, vários artistas botavam ideias para uma mesma cena e era grande a confusão. O homem do leme na unidade dramática foi Molière.

Toda a corte, tivesse ou não jeito era obrigada a dançar. O mesmo Molière, explica numa carta, que os desastres militares, económicos e mesmo, subtilmente, sexuais, se deviam aos falhos não saberem dançar em condições. Fazia parte da etiqueta social de então adoptar, mesmo a falar da meteorologia, poses com a dança conotadas. E o cumprimento de bons dias, tardes ou noites não dispensava um vasto leque de salamaleques, todos eles rococós de elegância.







E foi aqui parar o considerado melhor bailarino do século. E o mais vaidoso. E o mais intriguista. E o mais bajulador para quem de interesse.

Chamava-se Gaetano Vestris, florentino aterrado em Paris.





Através de maledicência e segredos de alcova, conseguiu varrer os mais directos concorrentes, ou seja, os bailarinos principais da Real Companhia. E instalou-se.

Modesto, dizia que só havia três homens grandes na Europa: o rei da Prússia, Voltaire e ele próprio. Quando uma vez foi descuidadamente pisado por uma dama disse-lhe que acabava, com tal falta de atenção, de pôr Paris de luto durante quinze dias. E não aceitou o sucesso de um dos seus vários filhos, dizendo que o tal tinha tido a sorte de o ter como pai, ele não era pai dele próprio, portanto era superior ao tal filho Auguste. Silogismo rudimentar. Dizia de si ser o Deus da dança. Filho directo de Terpsicore.
E a lista não acaba. Recomenda-se a vaidosos ou infiltrantes no jet-set com falhas de imaginação.

Estabeleceu, ainda, as regras de comportamento que qualquer bailarino devia ter, dentro ou fora da dança. Felizmente, tal receituário teve efémero prazo de validade. Tinha como pressuposto aquele je ne sais quoi entre a frivolidade e a altivez.

Dizia ainda que tinha sido o primeiro a mostrar o seu apolíneo rosto na função (até aí usava-se máscara para ilustrar os sentimentos). Contestam os historiadores dizendo que, de facto, foi uma mulher, Marie Sallé, ao interpretar a história de Pigmaleão, em Londres.

Bom, o rapaz, conseguiu, de facto aliar a desordem gesticular e expressiva da Comedia Dell´Arte italiana à disciplina da dança francesa. Para além de ter inventado, em feto, a pirouette. Aliou a emoção ao virtuosismo. Justiça lhe seja feita.

Não espanta que, por esta aliança, Leonid Jacobson, coreógrafo russo , tenha escolhido Mikail Baryshikov para homenagear Gaetano. Sublime bailarino e ao que consta, sem ilusões de divindade.




Com o pôr do Sol e o cansaço do público, Gaetano, foi, desiludido com o crescente ateísmo das almas, para Viena. O céu da dança em Paris ficou nublado e em Milão, mais discretamente, um senhor chamado Carlo Brassis, lá foi montando todos os principios da técnica de Ballet tal e qual a conhecemos hoje.


Provávelmente Vestris foi pisado por Deus e na sua cabeça ainda hoje o Universo está às escuras, em profundo luto.
Raramente as vaidades se perdem, só se transformam.