...dizia-te eu não há muito tempo, há tão pouco tempo, pouquíssimo na escala da tua imensa curta vida, que aquela tua peça em que o piano te obedecia como se fosse a tradução da tua alma, me fazia lembrar gotas de chuva a cairem das nuvens para o mar sem passarem pelo chão bruto da terra.
E mostrei-te, como apanharia essas gotas com o movimento dos meus dedos, com a dança das minhas mãos, num corpo concentrado e estático. Depois lento, numa valsa adormecida, a acordar para um olhar perdido ou de quem procura.
O clarinete ficaria para ela, corpo mais suave e cómodo como o de uma mãe, uma espécie de sustentação, de amparo. O contrabaixo...teria que lhe arranjar um corpo sólido, de traços sensatos como um juíz dos sons.
Hoje apetece-me deixar as gotas de chuva tocar o mar. Fundirem-se nele como um destino sem regresso.
Hoje, vou tocar com os dedos nos silêncios. Nas gotas de ar que ficam suspensas e invisíveis.
Assim.
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Prosa acerca de um cubo vagamente moralista com tendência estética para a sociologia filosófica, ou de como duas pessoas não vêem nunca a mesma coisa da mesma maneira, credo… que raio de título este que nunca mais acaba…
Dizia eu, lá para baixo, em resposta a simpático comentário, que um dia me tinha sido apresentada uma figura geométrica que não sei a que ramo do saber, se geometria, matemática, neurologia, ou a nenhuma, pertence.
Sabe-se apenas que a sua biografia extravasou, com certeza, qualquer progenitura original, ou seja, um senhor chamado
Necker que, francamente, nunca me dei ao trabalho de saber quem foi nem o que fazia para ter tal alembradura.
Foi assim que quando me apresentaram as linhas eu disse que era apenas um cubo e depois me disseram que não e eu que olhasse uns segundos para ele e só para ele a ver o que acontecia e foi o que fiz e peço, a quem não o conheça, que faça agora...
A perspectiva muda e entra-se no maior comprimido contra a
Realidade que se chama
Ilusão,
coisa que a humanidade sempre perseguiu contra os males do mundo, contra a evidencia da queda de qualquer crença, para além de forçar o que não existe no espaço ou mostrar ao mesmo tempo as várias faces das coisas como se os olhos fossem giratórios em trezentos e sessenta graus, sabendo-se, como se sabe, que é grande a tendência humana para só olhar em frente.
E para o desejo de conquistar, ou sonhar, o francamente impossível.
(No primeiro caso, por exemplo, os renascentistas, a começar por Brunelleschi…, talvez o primeiro dos cenógrafos da ilusão, gastaram o cérebro a fazer contas com linhas para prolongar para fora ou para dentro o que estava, na realidade, muito plano.
Foi ambição que nunca mais passou
até hoje, do cinema 3d às outras tecnologias viradas mais às emoções fortes que à contemplação.
No segundo, os cubistas tomaram-se de obsessões pelo cubo de Necker e foi o que se viu na representação esquinada das formas.
Na dança existiram algumas tentativas mas, convenhamos, não é muito artístico nem prático partir braços e pernas e ir nessa triste figura, quase invertebrada, para o palco.
Na literatura pois, Gertrude Stein quando escrevia mais com arestas do que com curvas.)
Mas o cubo também se tornou uma entidade moral e filosófica, como sempre tinha sido mesmo antes de ter sido inventado:
é preciso olhar e ver, ou ver e olhar, pensar e perguntar mesmo sem pergunta e resposta imediatas, tudo o que existe tal como se apresenta tal e qual ao primeiro instante.
Ou seja, apoia máximas como nem tudo o que parece é, não julgues os outros sem olhar para ti
e outras que tais, algumas rejeitadas pelo pós modernismo, considerado o coveiro dos valores do bom respeito de cada um para com os demais e dos demais para com cada um.
Mas o cubo anda por todo o lado, até num livro de análise sobre música de um autor soviético que li há pouco e noutro nazi sobre estética, ambos de inícios dos anos 40 e em que se defende, em prosa labiríntica, que o desgraçado do de Necker tira clareza ao único olhar legítimo e patriótico do Povo, puro nas tradições e conceitos:
a felicidade da visão única sob orientação paternal de quem protege dos maus caminhos.
À tal orientação para a planura, há quem chame propaganda, vírus que, entretanto correu todos os mundos mesmo quando dizem admitir todos os relevos.
A modos que se matem as prostitutas para que os clientes não sejam tentados.
A modos que se fechem supermercados para que os clientes não caiam na indignidade (acho eu que é uma suprema indignidade para além de outras várias coisas como humilhação) de rastejar frente às promoções.
Calhou, por isso, numa noite chuvosa de Maio e em presença das várias visões das várias faces do cubo das várias pessoas que estavam comigo, pensar que ia escrever um post sobre o dito de Necker.
Felizmente não vi nenhuma forma reduzida a duas dimensões.
Infelizmente, em todas vi a natureza que ainda nenhuma História conseguiu apagar.
E a tristeza que ninguém conseguiu vencer.
Nem com o olhar mais atento e menos iludido.