domingo, 19 de janeiro de 2014


Do amargo e hiperrealista riso dos pássaros 



Deixei o livro aberto no cadeirão velho que mora, em dias de Inverno, junto à lareira.  Está-lhe na natureza morar junto ao fogo. Há gerações.



Veio um e leu a página. Veio outra e leu-a. E mais a leram.

Por aqui, que já não somos propriamente tão novos como nos é exigido, gostamos de espantalhos.



 Por aqui cada um tem a sua colecção particular. Não espantalhos que afastem as aves, gostamos de voos e de quem sabe voar, mas espantalhos que façam rir os pássaros.




E, é sempre a mesma coisa. Inventámos um teatro, uma pantomina e uma dança à volta da página. Com a ajuda de uma interpretação que Coltrane fez de Bach.


Fingimos que renascemos em cada surpresa. E rimos. Como os enlutados que se defendem do que não aceitam.

Deixo-vos aqui a página do livro de Russell Edson, um dos meus americanos favoritos quando acordo vocacionada para o espanto. Para o deslumbre do poder da imaginação. Já lá vão muitos anos.

Faz de conta que passaram e se sentaram no cadeirão velho que, há gerações, memoriza as páginas dos livros ou as que não escritas se evaporam no fogo dos sonhos. Num tempo qualquer.


A loja de antiguidades

Havia um homem que queria comprar um velhote numa loja de antiguidades: quanto custa o velhote?

 É demasiada honra, mas devido à minha juventude não estou ainda à venda, sorriu um velho, de trás de uma montra de umbigos antigos.

 Quanto custa essa peça de lixo biológico?

Aquilo que para um homem é lixo para outro pode ser um tesouro, sorriu o velho que usava um umbigo na testa como um terceiro olho.

Já tem idade para estar morto, disse o homem, mas ainda é suficientemente jovem para ser espetado num pau, a fazer de espantalho. Diga lá: quanto é que está a pedir pelo velho?

Não é velho suficiente para ser vendido como uma antiguidade autêntica, sorriu o velhote que agora usava o umbigo no lóbulo da orelha.

A propósito, o que é que se passa com esse umbigo?

Ah, isto, ando a ver se descubro qual é o melhor sítio para fazer crescer o meu novo cordão umbilical.
Mas já é demasiado velho para ter um cordão umbilical.
Eu sei, sorriu o velhote, não acha maravilhoso...


(Foi bom encontrar, por acaso e remetido para o fundo da prateleira, Russell Edson em versão bilingue, traduzido para português por Guilherme Mendonça, com o título de O espelho atormentado, das edições OVNI.

 Quando o "conheci", uns sábios judeus, donos de uma desordenada livraria de que já falei nesta casa, haviam-no misturado na secção de Gestão e Finança. E...talvez tivesse sido a primeira vez que ouvi o som das gargalhadas dos pássaros. Em mistura com o ruído do silêncio dos espantalhos.Acho eu. )


domingo, 12 de janeiro de 2014

A tentação, Senhores, de falar neste de pré e pós funerais, de pré e pós demagogias, de pré tremoço e pós lagosta, de pré e pós "humildade" (conceito horrível), de como mais vale uma bola nos pés que um país a voar e outras oportunidades em saldo acabando na transformação de um dos mais emblemáticos cinemas de Lisboa, o Londres, em loja chinesa Paraíso à Vista, era grande.

 Em vez de tal prosa, que esperará um ano de acordo com a lei e a correcção, o post da Bettips e a paisagem  à volta e dentro da minha morada, empurraram-me para assunto que, talvez, me esteja mais na raíz da natureza.













Da mulher que adormeceu o mar.





Houve um tempo em que o mar e a demais água, se imbuíam de força reprodutora  e de tanta reprodução andavam furiosos à procura de espaço na terra seca que a molhada já lhes era parca.

Não se sabe há quanto tempo nos séculos, havia uma povoação em cima de rochedos virada para o oceano.
As gentes que lá viviam não ligavam nenhuma importância ao mar porque, como sempre acontece com rotinas e hábitos, o viam todos os dias.


Suponho que o mar, pelas mesmas razões, também não perdia tempo com as pessoas.


Um dia chegou a esse povoado uma mulher que nunca ninguém tinha visto nem sequer imaginado.
A mulher deambulante em qualquer hora do dia ou da noite sem disciplinas encomendadas, instalou-se numa gruta e não falava com ninguém a não ser com os pássaros, com as flores silvestres, com as árvores, com as pedras e com o que demais encontrasse e lhe desse ouvidos.


Dando-lhe na cabeça ficava virada para o mar sem nada mais fazer do que isso.

As pessoas tinham-lhe medo mas riam-se dela porque não entendiam as conversas que não tinha com eles e por isso a consideravam  doida ou bruxa ou as duas coisas em forma de mulher esquisita. É o costume.

Um dia as pessoas ouviram a voz do mar como nunca tinham ouvido.  Do murmúrio, que já tinham deixado de ouvir, por falta de reparo, tomaram-se de susto com o som de trovão em forma líquida.


E da calma tímida da água surgiram fúrias que saltando por cima do ar, levaram gente e casas como se fosse chegada a hora do fim do mundo.

Então, algumas pessoas assustadas e à espreita dos humores do oceano, viram a mulher caminhar até ao ponto mais alto das rochas.

Perceberam que contava uma história ao mar. Uma história de embalar, de palavras confusas e tontas. Eram palavras que viviam do outro lado do muro do seu entendimento.

E o mar adormeceu como se sonhasse sonhos longos de paisagens descansadas.


Quando a mulher acabava a história, viram as pessoas o mar acordar. Com mau humor,  pouca paciência e temperamento pedido emprestado ao vento.



À medida que os filhos foram pais, depois avós, depois bisavós, a mulher foi sendo menos vista nas suas loucuras solitárias.

O mar foi mostrando com violência saudades dela.


 Até que alguma memória ainda viva no meio das pessoas, lhes lembrou que quando acabavam as histórias se lhes podia acabar de vez o mundo.


Por isso, ainda hoje, as pessoas se reúnem  em pubs nas costas inglesas e contam e cantam histórias de que desconhecem o princípio  e ainda menos o fim e que podem ser tão doidas como as palavras da mulher dos rochedos.




Já agora, para contar essas histórias não é preciso ter nascido na Inglaterra, pois não, porque há uma pintora  que gosta tanto delas que as desenhou, em mistura com as que ouviu na Ericeira, que é em Portugal, quando era pequena. Chama-se a senhora Paula Rego.



As pessoas grandes que vão aos pubs levam para casa as histórias para adormecer as crianças que, às vezes, são tão inconstantes como o mar, ou pior ainda, quando lhes dá a pressa de crescer.

Eu lembro-me duma que começava assim:

Betty bought some butter,
but the butter Betty bought was bitter,
so Betty bought some better butter,
and the better butter Betty bought
was better than the bitter butter Betty bought before...


Também se diz que os ingleses, por contarem tantas histórias ao mar, o fizeram grande amigo e por isso
deram cabo dos espanhóis  nas batalhas navais e nas dos piratas.
O mar gosta mais dos que falam directamente com ele do que por intermediários como Deus. É o que consta.



Não sei se foi na altura das batalhas que começou aquela  que fala do cavalo que corria sem pernas e pertencia ao mensageiro da rainha que era mudo e que quando chegava à praça gritava com tal clareza a mensagem que o homem sem cabeça, que era padeiro, esfregava o nariz que era tão comprido...

que cada um, Senhores, se qualquer mar lhes bater furioso à porta, continue a história que eu já ouço a chaleira a ferver, lá dentro, no fogão...sem lume.

Com licença... não se vá a chama apagar...











quinta-feira, 2 de janeiro de 2014



Do ano que já nasceu com um número antigo. Coitadinho...




Não sou nada cronológica. Uma desgraça.
 Não fixo acontecimentos nos calendários nem ando de agenda executiva na carteira.
 Usa-se imenso e assim ninguém pode ser acusado de desleixado ou sofrer da romântica negligência artística e menos ainda de ter um tempo pouco produtivo.


 Porque, Senhores, tudo o que se anota  é tempo ocupado.
O ócio e o delírio são o chão das desgraças. Pessoais e sociais, como toda a gente bronzeada a sul de Merkel e a Oeste de Calvino e Lutero sabe. Ou DEVIA saber.


 Mas não, não tenho fixação exacta e datada do passado.
 Os acontecimentos andam-me à solta no Tempo. São-me vadios. Sem regras. Nem fronteiras definidas. As minhas referências são outras. Lamento.

Mesmo assim, vivendo neste mundo, não escapo a mudar o calendário de secretária que, generosa e gratuitamente, a farmácia me oferece todos os anos. Na esperança que muito a frequente. Suponho.
Nem escapei hoje, junto à clínica de fisioterapia, à oferta de um de uma agência funerária. Tem uma paisagem  suave e fresca. Parece-me que é um paraíso plagiado dos Alpes. Talvez seja.


E como toda a gente, com um sorriso, fantasio desejos que são uma espécie de arquitectura da felicidade.


(Falo em desejos e não em previsões porque as falhei, nesta casa, quando, há uns anos, num sonho premonitório vi o computador Magalhães a ser exportado para Marte. Senhores, não tenho préstimo como Pitonisa. É a realidade e há que enfrentá-la.)

Gostava, por exemplo, que a fobia que desenvolvi neste ano passado aos anúncios musicados do OLX me passasse. São-me penosos e temo pela integridade física da televisão  que, de resto, tem sido o electrodoméstico menos utilizado e mais em risco neste ano que acabou.


Também gostaria que a Casa dos Segredos não tivesse tanta audiência e muito menos relação directa com os estacionamentos indevidos no lugares reservados a deficientes ou com o abandono de animais nas estradas e velhos nos hospitais.

Mas adiante que estou a ficar com azia.

Um dia alguém perguntou a um psiquiatra como se distinguia uma pessoa "normal" de uma "doida varrida", ou quase . Respondeu o sábio da mente que os primeiros sabem contar a sua própria história e os segundos não fazem ideia dela.

Bem gostaria eu que fosse arranjada terapêutica urgente para esta maleita que se espalha, ou se pretende espalhada, por montes e vales. Diz-se que quem não tem memória, pessoa ou país, de facto, não existe. E o que a televisão e a imprensa me mostram, em geral, claro, são pequenas porções de nada recheadas  de pensamentos estagnados.


 E os que assim ficam, sentados nas crenças, envelhecem os anos.

E este ano já nasceu com uma certa idade mas iludido com a juventude. Um viçoso de corpo decadente. Um cultor das aparências.

Acho que foi Malraux que disse que pensar era comparar. De certa forma, uma pessoa já sabe o que políticos e comentadores, ai tantos,  vão dizer. E nem sequer tenho a certeza que dizem o que pensam.


E o que eu gostaria é que viessem a nascer pensamentos novinhos em folha. De todos os quadrantes. Não faço ideia quais, mas novos tal como foram nascendo noutras épocas. Com respeito do pai e da mãe, claro.

Sem serem nem demasiado apressados para o futuro nem com o torcicolo de quem só olha para trás. Nos outros tempos , todas as pressas para um lado ou para outro deram tropeços, talvez por aquela coisa a que se chama vagamente a vertigem do poder. Consta que é muito fácil sofrer de tonturas mesmo quando já não se repara que se anda aos tombos.


Muito gostaria eu de ver andar direito porque me parece que os tontos atribuem o seu cambalear aos terramotos que, se calhar, nem sequer existem embora eles tanto falem na escala de Richter. Parece que os gregos preferiam chamar escala de plutocracia, mas enfim.


Também gostaria que acabasse este culto orgulhoso, oficial e contagioso  do feio, do grotesco, do fácil, da criatividade domesticada.

Esta espécie de Ovomaltine multi calórico servido às almas que se querem inocentes e pouco trabalhadas no ofício do pensar e do sentir. Tão caras às ditaduras. E às ditadurazinhas que são pensos calculados nas feridas das democracias doentes.




Gostaria daquelas grandes obras inovadoras que acrescentam e que crescem quando alguém as interpreta.

Seja qual for o meio. Interpretar é também uma forma de criar. Ainda que em silêncio e na intimidade da solidão.

E neste novo ano, talvez nasçam obras, algures, em várias partes do Mundo, em que o futuro, quando os anos tiverem números mais novos, veja os criadores delas, como uns felizes inquilinos de Deus. Saiba-se ou não a morada Dele.

Agora à lareira, a ouvir uns estudos sempre novos de Bach, depois de ter folheado e mais uma vez descoberto Giotto num livro gordo,  é o único desejo vestido de certeza que ainda tenho.