segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

 de como o dia, a noite e  os festivais de dança tiveram origem numa decidida formiga anoréxica e num urso compulsivo e pouco remitente no pecado da gula, tudo isto por mais incrível que pareça.


No princípio do mundo não havia luz.
Nem solar, nem de tungsténio, nem florescente nem a económica de baixo consumo à venda em grandes superfícies com desconto em cartão ou em loja chinesa onde antigamente havia a pastelaria, a drogaria, a sapataria, a retrosaria, a tasca. Por exemplo.


Por erro de programação dos deuses, que não escapam à infalibilidade, não havia mesmo nada embora as pessoas já tivessem olhos preparados para a dita . Se vem daqui a mania humana de começar a construir casas pelo telhado, confesso que não tenho ciência que chegue a tal certeza.

Mas outros animais havia cujo sistema ocular estava preparado para a tal escuridão e que nela se moviam como peixe na água. É o caso do urso.


Ora as pessoas, coitadas, trabalhavam continuamente e sem descanso, ainda por cima cheias de frio, porque tudo o que conseguiam produzir era logo comido pelo urso que via perfeitamente todos os víveres enquanto as pessoas apenas os tateavam.

De facto, nada lhe escapava por maior que fosse o empenho alheio.


Ora um dia, uma mulher muito, muito pequena, a mais pequena de todas e de mais alguma de tal forma que lhe chamavam a Mulher Formiga, de temperamento irrequieto, ladino, especulativo e com algum carisma de liderança, sabe-se lá se com Mestrado em gestão,



 fez-se ao caminho e foi falar com o Criador.



Pôs-se em bicos de pés,

 contou-lhe os revezes, fez queixa do noctívago e mal portado urso, exigiu que qualquer coisa houvesse que lhes permitisse sempre e em cada hora ver o urso, ver o caminho para casa, ver os armazéns e sentir calor, e já agora, que nessa qualquer coisa se acabasse com o urso de uma vez por todas quer enquanto comia, quer enquanto dormia, quer enquanto ficava de barriga redonda e para o ar a descansar, ou mais prosaicamente, sem fazer ponta de corno que se visse.



O urso, por sua vez, pediu ao Criador que nunca criasse nada que o impedisse de dormir a todas as horas que lhe apetecesse nem que o fizesse sentir calor. A insónia forçada e a ideia de bronzeamento obrigatório, adivinhava-o, matá-lo-iam.

O Criador que não gostava de queixas e apesar de não ser produtor televisivo embora não imune à ditadura das audiências, determinou que a guerra entre as pessoas e o urso, o urso e as pessoas, a necessidade de luz e a escuridão seria resolvida através de uma espécie de concurso de dança:

ganharia quem mais deslumbrasse e entretece o criador e apenas ele sem chamadas populares de valor acrescentado nem coisas do género.

A música viria de todos os seres cantantes como os pássaros, os insectos, as folhas e as águas dos rios e das fontes.



Vieram, assim, todas as pessoas para o recinto e como em qualquer agrupamento do género, munidas de alforge virado ao natural picnic. Se já constava o garrafão de cinco litros de vinho Camilo Alves e o correspondente chouriço de Arganil, Almoster ou genericamente Alentejano, mais a bifana, é mais uma questão em que me falta a sabedoria.


Para que todos assistissem à competição, o Criador acendeu o Sol que é a maior vela de que o céu dispõe por estas bandas, como toda a gente sabe.


Ora a Mulher Formiga, para melhor e com mais leveza dançar e rodopiar, tornou-se abstémia de qualquer alimento ou beberagem.


 Dava grandes saltos, voava com a mais leve brisa e, de tão magra que foi ficando, em vez de cair, pousava suavemente no terreiro para novamente se erguer num impulso rápido, tão rápido que o olhar estreante das pessoas não conseguia acompanhar os lastros que deixava no espaço.

O urso, que já era gordo, entre cada passo, ia petiscando e petiscando, aqui e ali, até ficar com obesidade mórbida, diabetes, colesterol e outras inconveniências que interrompem os elixires da almejada eternidade.



A sua dança era, por isso, quase parada de tão lenta como a ondulação das folhas e das flores no embalo da Primavera.



Ao fim do que seriam mais tarde, isto é, hoje, quatro dias e quatro noites o Criador deu por finda a maratona.

A Mulher Formiga a duras penas, esvaída em magreza e sem forças para a pirueta final acrescida de vénia, declarou-se óbvia vencedora reclamando o sol constante.


O urso, desidratado, olheirendo, enfartado, com dispneia e alguma confusão mental arrastou-se e pediu o conforto do escuro.

O Criador, que se parte do princípio ser criatura estável e pouco dada a modas a si exteriores,


olhou um e outro e sentenciou que, sendo ambos suas criaturas e após aquele período experimental, metade do dia seria de luz para que as pessoas pudessem trabalhar e organizar as suas necessidades e a outra metade seria de escuridão para contentamento do urso .

Mais declarou que tanta beleza pode ter a velocidade e o artifício como a languidez e a tentação , a vertigem como a parança.


Do que aconteceu aos dois não há notícia de fonte fidedigna mas ainda hoje são lembrados, na Primavera e durante quatro dias e quatro noites, lá nos nortes americanos, em festa dançante


e em que os bailarinos, de todas as cores, são reis tendo como público todas as pessoas acompanhadas de farnel de que todos provarão


 não faltando manjar para o urso, colocado num altar, lá bem na escuridão da floresta onde a luz tem pudor em acordar.



quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Breve e inevitável história explicativa de como tudo se define pelo seu contrário e vice versa, ponto final parágrafo.



No princípio do Mundo havia uma espécie de rei tão mau e tão feio que fazia concorrência à própria maldade.

De vez em quando, tomava-se de manias do que viria a ser Alexandre o Grande  noutras terras, por exemplo, e partia em cobiça de outras terras que nem sequer conhecia de perto nem de longe.


 De uma dessas vorazes vezes, partiu para o Sul da Terra e aí conheceu uma princesa pela qual se tomou mais de posse que de paixão, porque do amor repentino ou lento nada nunca soube ou viria a saber até hoje.
 Levou então a donzela, sem consentimento dela ou dos seus, para os seus domínios no Norte, para mais perto da Estrela Polar e do sítio onde a terra dá a volta para se tornar no outro lado do Mundo.


A princesa recolheu-se dia e noite num canto do imenso castelo, se é que no princípio de todas as coisas existiam tais defensivas moradias.



A espécie de rei , furiosa com tal falta de alegria e jubilo, castigou-a em fome e conforto até a donzela que dada a natureza viril do seu raptor , suponho, já não seria, começar a definhar toda a vida que tinha na grandeza dos olhos.




Entrou, então, em tal sofrido lamento que as árvores, condoídas, choraram todas as viçosas folhas,  ao mesmo tempo que o vento, triste, abandonou todo o calor que espalhava por todos os ares.


 Ouvindo a donzela, em extremo da saudade, contar da alva cal e do sol nela reflectida das casas da sua terra, as nuvens brancas pousaram e cobriram todas aquelas paragens, aproveitando para castigar a terra, mãe que tinha gerado no seu seio, tal maldosa espécie de rei, tornando-a estéril como uma raiz possuída por uma pedra de gelo.



 Como o corpo frágil da donzela tremia com falta do sol do sul na sua pele morena, o fogo resolveu sentar-se aos seus pés e daqueles que pela noite, às escondidas da espécie de rei, lhe ouviam as histórias imensas sobre as suas terras lá para as bandas do muito longe.


Dessas laudas, inventaram os corações doces canções e melancólicas danças como as que sempre nascem das almas tristes.


 
Nem a espécie de rei nem a donzela, imaginavam que as aves, ao verem tanta desolação, tanto trabalho árduo naquela terra agora fria, agreste e sem fruto que desse sustento, tinham partido para contar tal desventura ao sul.


E do sul, partiu, então o grande amor que amparava na lembrança a solidão da donzela naqueles dias desterrados, acompanhado de todos os sóis, todas as brisas, todas as cores e nascimentos.



 Foi tão longa e tão sangrenta a batalha entre os dois pela donzela,



que o Universo, embora preguiçoso em decisões e pouco atento ao que se passava debaixo do céu, resolveu em conluio secreto com o sol, com desprezo por todos os seres mortais e parcos em transcendência e até ao fim dos tempos, que na rota que a terra desenhava em redor deste astro, ficaria a donzela entregue aos cuidados da espécie de rei em metade da volta e ao príncipe do sul na outra metade embora


 os espíritos dos bosques também digam que o tal Universo determinou que enquanto a donzela estava recolhida em esperanças de fruto, reinaria a espécie de rei e que por alturas do parto, seria o príncipe do sul a tomar-lhe a mão para a glória dos festejos.



A Natureza, ainda segundo outra versão, que é sábia e para cada coisa sempre criou o seu contrário,  determinou que nem só de labor, nem só de folia vive a terra  e que ambas devem ter lugar pois que uma não pode viver sem a outra, como a luz não pode existir sem a sombra que lhe dá a vida e contorno.


Tanto quanto se sabe, o futuro nunca soube qual destes destinos e fins da história correspondem à verdade. Não há notícia que o Universo ou a Natureza tenham alguma tido alguma vez a humildade de esclarecer.



(O que interessa é que esta história, com origem, e em várias versões, nos nativos da América do Norte , foi mote, com formas mais ou menos violentas na estética e na execução e a partir dos fins do Séc. XIX, para inúmeros coreógrafos narrativos e compositores.)


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012


Prosa das palavras idosas, ou nem por isso, refugiadas na memória e à espera de qualquer coisa com forma de amanhã ou depois, dissolvidas em solução insolúvel de qualquer dia.














enfim...