No princípio do mundo não havia luz.
Nem solar, nem de tungsténio, nem florescente nem a económica de baixo consumo à venda em grandes superfícies com desconto em cartão ou em loja chinesa onde antigamente havia a pastelaria, a drogaria, a sapataria, a retrosaria, a tasca. Por exemplo.
Por erro de programação dos deuses, que não escapam à infalibilidade, não havia mesmo nada embora as pessoas já tivessem olhos preparados para a dita . Se vem daqui a mania humana de começar a construir casas pelo telhado, confesso que não tenho ciência que chegue a tal certeza.
Mas outros animais havia cujo sistema ocular estava preparado para a tal escuridão e que nela se moviam como peixe na água. É o caso do urso.
Ora as pessoas, coitadas, trabalhavam continuamente e sem descanso, ainda por cima cheias de frio, porque tudo o que conseguiam produzir era logo comido pelo urso que via perfeitamente todos os víveres enquanto as pessoas apenas os tateavam.
De facto, nada lhe escapava por maior que fosse o empenho alheio.
Ora um dia, uma mulher muito, muito pequena, a mais pequena de todas e de mais alguma de tal forma que lhe chamavam a Mulher Formiga, de temperamento irrequieto, ladino, especulativo e com algum carisma de liderança, sabe-se lá se com Mestrado em gestão,
fez-se ao caminho e foi falar com o Criador.
Pôs-se em bicos de pés,
contou-lhe os revezes, fez queixa do noctívago e mal portado urso, exigiu que qualquer coisa houvesse que lhes permitisse sempre e em cada hora ver o urso, ver o caminho para casa, ver os armazéns e sentir calor, e já agora, que nessa qualquer coisa se acabasse com o urso de uma vez por todas quer enquanto comia, quer enquanto dormia, quer enquanto ficava de barriga redonda e para o ar a descansar, ou mais prosaicamente, sem fazer ponta de corno que se visse.
O urso, por sua vez, pediu ao Criador que nunca criasse nada que o impedisse de dormir a todas as horas que lhe apetecesse nem que o fizesse sentir calor. A insónia forçada e a ideia de bronzeamento obrigatório, adivinhava-o, matá-lo-iam.
O Criador que não gostava de queixas e apesar de não ser produtor televisivo embora não imune à ditadura das audiências, determinou que a guerra entre as pessoas e o urso, o urso e as pessoas, a necessidade de luz e a escuridão seria resolvida através de uma espécie de concurso de dança:
ganharia quem mais deslumbrasse e entretece o criador e apenas ele sem chamadas populares de valor acrescentado nem coisas do género.
A música viria de todos os seres cantantes como os pássaros, os insectos, as folhas e as águas dos rios e das fontes.
Vieram, assim, todas as pessoas para o recinto e como em qualquer agrupamento do género, munidas de alforge virado ao natural picnic. Se já constava o garrafão de cinco litros de vinho Camilo Alves e o correspondente chouriço de Arganil, Almoster ou genericamente Alentejano, mais a bifana, é mais uma questão em que me falta a sabedoria.
Para que todos assistissem à competição, o Criador acendeu o Sol que é a maior vela de que o céu dispõe por estas bandas, como toda a gente sabe.
Ora a Mulher Formiga, para melhor e com mais leveza dançar e rodopiar, tornou-se abstémia de qualquer alimento ou beberagem.
O urso, que já era gordo, entre cada passo, ia petiscando e petiscando, aqui e ali, até ficar com obesidade mórbida, diabetes, colesterol e outras inconveniências que interrompem os elixires da almejada eternidade.
A sua dança era, por isso, quase parada de tão lenta como a ondulação das folhas e das flores no embalo da Primavera.
Ao fim do que seriam mais tarde, isto é, hoje, quatro dias e quatro noites o Criador deu por finda a maratona.
A Mulher Formiga a duras penas, esvaída em magreza e sem forças para a pirueta final acrescida de vénia, declarou-se óbvia vencedora reclamando o sol constante.
O urso, desidratado, olheirendo, enfartado, com dispneia e alguma confusão mental arrastou-se e pediu o conforto do escuro.
O Criador, que se parte do princípio ser criatura estável e pouco dada a modas a si exteriores,
Mais declarou que tanta beleza pode ter a velocidade e o artifício como a languidez e a tentação , a vertigem como a parança.
Do que aconteceu aos dois não há notícia de fonte fidedigna mas ainda hoje são lembrados, na Primavera e durante quatro dias e quatro noites, lá nos nortes americanos, em festa dançante
e em que os bailarinos, de todas as cores, são reis tendo como público todas as pessoas acompanhadas de farnel de que todos provarão
não faltando manjar para o urso, colocado num altar, lá bem na escuridão da floresta onde a luz tem pudor em acordar.