quarta-feira, 25 de junho de 2008

História apressada de um triângulo amoroso entre a dança, a moda e a fotografia, sob o olhar cúmplice e interessado da sedutora publicidade



Tudo começou, de forma metódica, com um rei diletante, Eduardo VII e Adolf ( umas vezes com von outras sem) Meyer, personagem de biografia confusa e variável.

Apesar das reprimendas da mãe, a sóbria e enlutada rainha Victoria, Eduardo abria os salões para, entre outras, duas grandes paixões: os desenhadores de vestimentas e as bailarinas de Ballet propriamente dito, as únicas executantes de passos, consideradas com estatuto, bons modos e formação para frequentarem a aristocracia.

Depois de muito se insinuar na corte, qual toupeira de faro apurado, o amante da fotografia Adolf foi feito barão pelo monarca. Tinham os mesmos gostos, ou quase já que o brasonado de fresco foi o primeiro homossexual assumido a tornar-se empresário com chancela da corte, fundando conjuntamente com a sua mulher Olga, uma empresa de divulgação da moda através da fotografia.

E apadrinhado por Eduardo foi parar aos Estados Unidos conhecendo Condé Nast, patrão da Vogue,





revista empenhada em libertar as mulheres do espartilho da barbuda moral puritana.

E lá apareciam as bailarinas como modelos.




Os fotógrafos e costureiros queriam ilustrar as vestes, em corpos trabalhados, com expressão corporal e facial. Além disso, eram esguias de figura, tinham o que se chama ainda hoje “bom cabide”, ou seja, pescoço alto formando com os ombros perfeita linha recta. Estou a falar do tipo clássico. As bailarinas do moderno/contemporâneo nem sempre correspondem integralmente a este padrão de elegãncia.

Estava-se no auge da divulgação democrática do teatro e, na dança, vivia-se uma revolução espiralada.

Condé não queria as vulgares modelos de pintores ou bailarinas de vaudeville, quer umas quer outras conotadas com vida vazia de interesses e cheiíssima de amores: queria mulheres de pensamento forte e decidido, que inspirassem as americanas a correr para o futuro. Com ousadia. Por outras palavras, queria mulheres que escolhessem os amantes e não que fossem apaticamente escolhidas ou moldadas.





Foi assim que Irene Castle, bailarina ligada à escola russa



fundou a primeira agência de modelos e inventou uma forma de andar própria na passerelle, muito diferente da desmanchada, equídea e tão artificial que conhecemos hoje.

À Vogue juntou-se Harper´s Bazar. Os directores, todos nacionalistas e gente ligada por afeição à dança e aos novos movimentos da arte em geral, aproveitavam as cada vez maiores tiragens, para, com proveito mútuo, publicitar e vender novos produtos e conceitos.

Muitos foram os fotógrafos europeus que correram para Nova Iorque para transformar a aparente futilidade da roupa em obra de arte. Nascia a fotografia de moda, com leis e técnicas próprias.

Anos trinta fora, Martha Graham, Doris Humphrey, Agnes de Mille foram-se tornando modelos e heroínas nacionais, apesar da crescente concorrência das actrizes e actores de cinema.



Nos anos quarenta, apesar dos esforços de Balanchine e das exuberâncias milionárias de Dior, as revistas e os fotógrafos preferiam mulheres de aparência comum. Onde é que já se viu extraordinário glamour com toda a destruição e sofrimento da guerra como fundo?

Nos anos cinquenta exaltou-se à caricatura a anatomia feminina. Queriam-se as mulheres produtoras de grandes famílias.

Nos sessenta e setenta cultivou-se o ar marcadamente urbano, noctívago, proletário, anoréctico e decadente.
Anos oitenta: mistura.

Anos noventa: ele há gente para tudo.

Entretanto na Europa a presença da dança era muito menor. Preferiam-se as modelos profissionais, as damas da aristocracia e alta burguesia.

À excepção de Espanha (ainda hoje, que eu saiba, o país que mais utiliza gente ligada à dança como modelo de moda e, ou, publicidade ), onde as carismáticas e sensuais bailaoras de flamenco abriram as portas a outros tipos de dança e, todas, foram imagem de diversos protótipos de mulheres consoante o tipo de sociedade e gosto pretendidos.






A moda nunca foi nem donzela virgem nem vazia de estratégias.

E, até hoje, sempre se foram fazendo passagens coreografadas, interpretadas e transformadas em álbuns de arte fotográfica, algumas com temática de arrepiar os cabelos a qualquer inquisitorial bispo,



a fazer estremecer qualquer patriarcal modelo de família




ou envergonhar o garbo de qualquer másculo toureiro.



Já nos fins dos anos 80 e durante os 90 começou a ser implementada uma corrente de opinião, envolvendo gente de todos os ramos incluindo escritores, estilistas, fotógrafos, bailarinos, coreógrafos e também Almodôvar e Carmen Maura, por ex. defendendo a liberdade de cada um ser como é e vestir, sem ditaduras, o que a sua própria pele, ou identificação com o seu grupo, lhe pedir. Apesar de feios, estrábicos, magros, gordos, altos, baixos, velhos ou imberbes, todos têm direito a andar vestidos. E dentro do possível, a serem felizes com o que lhes coube na genética.



(Quem coreografou, ensaiou, desenhou , fotografou e produziu não esquece a gratificação da experiência da passagem da teoria à práctica.)

Abandonou-se o autoritário termo Moda e passou-se ao mais aberto Tendência.


Porque, afinal, neste mundo, o que interessa um bom corpo, uma boa cara, um bom trapinho sem o recheio de uma grande alma lá dentro?


terça-feira, 17 de junho de 2008

Viagem ao interior de um silêncio esquecido




É de pleno direito que escapemos, nós os urbanos, nem que seja por dias ou horas, às obrigações rotineiras, que é também uma forma de sairmos das marcações cadenciadas a que a vida, com ou sem consentimento, nos obriga.

E ali, na esquina fronteiriça da urbe Lisboa, pomos o dedo em frente aos lábios, e sacudimos a algazarra que já se nos colou aos tímpanos. Perante aquele silêncio tentamos varrer fantasmas e medos: Madrid, dizem-me, vive racionamentos e gritos e pancadas mais do que ao nosso conhecimento mediático chega e Lisboa, mais tímida na revolta, começa a secar a endógena placidez.

Via Azambuja, entra-se pelos mouchões do Tejo. Um labirinto de ilhas com aspecto de donzelas virgens, orgulhosas de uma majestade antiga,






onde, disse-nos um senhor abastado de carnes e barbas e destro no manejar do garfo, espécie de detestado aristocrata em cenário neo realista, Damião de Góis, passeava os olhos verdes e os clandestinos amores, no intervalo das diplomacias, artes e novas ideias europeias.

Era também por ali que se fazia transporte de Lisboa até Constância, terra do seu amigo Camões.

Mais tarde Dona Maria I mandou construir o Palácio das Obras Novas, ou Palácio da Rainha, junto a um porto fluvial, protegido por árvores vindas de várias e longínquas terras.






Se a vegetação é teimosa na vida, o palácio parece um cadáver envergonhado,





a esconder o corpo decrépito atrás da alameda de palmeiras plantadas a régua e esquadro. Já espanhóis e outros estrangeiros o quiseram ressuscitar para a cultura e logo os descendentes dos que odiavam o Erasmo do Damião mantêm a agonia conservada em papéis sem fim na demora dos gabinetes. Além de orgulhosamente sós, também orgulhosamente apodrecidos.

Não posso deixar de me lembrar das monumentais metáforas pictóricas de Kiefer.






A arte tem este dom de não ter geografia ou tempo que a fixe.

Também correm os rumores que em sítios onde agora são criados dignos cavalos lusitanos e árabes, livres na correria e atentos às objectivas, serão preparados campos de golfe.





Ao longo dos dias vamo-nos apercebendo dos dotes da luz: dama sedutora, volúvel, consoante a inclinação do sol. Pela tradução dela na pele, ora ficamos com a idade certa, ora camuflada: se os raios durante o pleno dia são crus, tornam-se paliativos, velados e doces quando abandonam ou recebem a noite.






O tempo da alma também vai flutuando.
Prazer simples de brincar com a memória que a vida nos acumulou.

De passagem, uma comediante espanhola recita com exuberância uma lenga-lenga rimada que conta a história satírica do langor de uma dama oitocentista, pecadora no seu recato, à espera de um marido velho e novo rico em haveres, chegado da pesquisa do ouro transatlântico.

Não podemos rir muito alto, que os peixes, furiosos, já pulam mais alto.

Nós, os outros, donos de pernas que com ou sem comédia escravizámos, aproveitamos a carícia fria anti inflamatória da correnteza feita massagem,




enquanto ouvimos aquele murmúrio da água no empecilho dos ramos e das pedras.

O mar, quando era criança, devia ter aquela voz.

Numa cabeça começa o esboço da escrita daquele som baixinho em movimento. É o vício de um corpo inquieto. Contagioso. A lembrar a outra cabeça uma peça de Bach, transcrita para piano por Busoni. Lenta. Dolente.
Uma amostra de paz.
Simples.

As grandes músicas têm o dom de se moldar, eternamente, ao que delas se espera.

E, como o tempo não pára, despedimo-nos da brancura ibérica das sestas





e damos mais um passeio, invertendo a marcha antes da curva, que depois dela, já se avista o prefácio de Lisboa.





É mais fácil, assim manter a ilusão da distãncia do amanhã já é sábado, e depois domingo, do tem que ser, que tudo o que é sempre também se torna demais.

No caminho para o aeroporto, já circulam muitos camiões. Da auto estrada e olhando para trás, vemos as manchas que sabemos serem filigranas quase secretas de paraíso.

Em Nova Iorque, um público de olhos curiosos e especializados que os espera, não suspeita que há um refúgio maior, mais livre, mais sereno e de cheiro mais limpo para o repouso dos dias sempre urgentes que Central Park, onde tanto se mendiga verde e sol.




Um mundo onde sem aviso, seres alados, sem obrigações programadas, fazem o favor de dar lições à liberdade.




Com licença, que estou mais uma vez atrasada...
já vou... já faço... já penso... já respiro...


boa tarde!

terça-feira, 3 de junho de 2008

A plateia dos olhos intemporais





Chego onde agora estou e vejo alguns pares de olhos, mais do que os habituais, espantados e, sejamos crus, deliciados, com a longa lista de vídeos profissionais e amadores, da decadência de Amy Whinehouse no festival de rock. E morreu Yves Saint Laurent, o tal que se fazia acompanhar do fantasma das máximas de Proust, e castigou, de forma discreta aos olhares do comum do mundo, o corpo e a alma, durante setenta e um anos. Duas criaturas no palco da voracidade da desgraça.


























E lembro-me que ao longo do tempo sempre a humanidade se maravilhou com o extraordinário da deficiência física ou com a queda dos considerados prodígios, com o pêndulo sempre a oscilar entre o fascínio e a repulsa, a santidade e o diabólico.

Não sei qual a causa de tal bulimia mas os mitos formam-se quase sempre pelo que sai, negativamente, da massa moldada no comum: ver os outros a arder nas fogueiras das suas existências públicas ou privadas, é capaz de nos fazer sentir melhor a nossa frescura. De nos eliminar os defeitos.






Talvez seja a vingança de quem entra e sai desta vida sem ter o rosto retratado no presente e no futuro. Nomes sem enredo perdidos na história. Não sei!








No séc. XVIII, uma bailarina, La Camargo, tornou-se célebre por ter iniciado a altitude na dança, o começo dos “voos”, la dance haute. Se no auge enchia, no ocaso transbordava teatros, quando as pernas já não lhe davam aquele particular toque etéreo e virtuoso. O público ria-se quando a via sujeita à força do tempo e da gravidade.

Mais se entretinha com os folhetins da sua rivalidade com outra grande dama, Marie Sallé, a primeira a dançar com a cara descoberta e sem o empoeiramento da peruca. Voltaire, em função de cronista social, foi alimentando e divulgando a chama do conflito. O desaforo e o ridiculo, reais ou inventados, sempre se venderam bem.







Alguma fotografia dos fins de XIX e princípios do XX, divulgou de forma autêntica ou já manipulada, toda a espécie de horrores. Em Nova Iorque, Londres ou Berlim comercializavam-se aos milhares. Talvez os mesmos números que enchiam o Largo de S. Domingos em Lisboa, churrasqueira aberta para os gourmets da Inquisição . (Não boto aqui nenhuma, porque não me apetece ficar arrepiada, e não é correcto gritar no sítio onde me encontro.)

A estrela mais inspiradora para futuras obras, e até para Almodovar através da personagem Agrado, foi Joseph Merrick, mais conhecido pelo Homem Elefante, aqui na versão original:





Continuando com os exemplos, nos anos sessenta da nossa era, uma outra bailarina, americana, foi moldada pelos tempos e deu, sabe-se lá se voluntariamente, pasmados espectáculos até à prematura morte, de dança “hiper realista” coreografada pelo LSD, heroína, barbitúricos e álcool. Aplaudia-se de pé a genuína tontura dos tempos. Foi uma espécie de lãmina no laboratório sagrado da liberdade.





Quem já esteve, ou está no palco ou bastidores, sente essa fatia perversa: os que salivam o falhanço. São uma espécie de brisa negra, indefinida mas com presença pesada e incidiosa.

Existiam até três gulosas criaturas, assíduas em espectáculos fixos ou em digressão. Dois cavalheiros e uma dama, a quem se chamavam nomes impróprios para usar na via pública. Provou-se, mais tarde, que a intuição tem razões que a racionalidade desconhece. E que a caridade dos ramos de flores aos lesionados ou aflitos, estava próxima (como quase toda a hipocrisia ligada a ela), da mais pura prepotência.





Para não alongar a dissertação meramente empírica, e já na portagem da globalização, ou seja aquela coisa de em segundos termos todos os espectáculos do mundo à porta do olhar, lembro-me dos novos profetas literários que, baseados na história e na observação do que se passava no chamado topo do mundo civilizado,




previram, no início dos anos oitenta, o vampirismo progressivo das hostes, cada vez mais alargadas. Assim de repente vêm à memória Breat Easton Ellis, Douglas Coupland, Elizabeth Wurtzel, Brian D´Amato.

Sem ordem cronológica e cada um à sua maneira, lá descreveram e descrevem em romances, o desfilar e repetir de imagens chocantes em lençóis de telejornais, com ingredientes de espectativa do horror; os reality shows à vontade de cada apetite; o sonho suicida, alimentado pelo sonho dos pais, de que cada filha há-de ser top model seja qual fôr o preço






e os rapazes donos do mundo com portão em Wall Street ou estádio; as operações plásticas que transformam mulheres em raridades nas mediáticas feiras;




as companhias de dança que despedem bailarinos aos vinte cinco anos rindo-se dos de trinta, enterrando os de quarenta e mais tanta gente que de herói vira vilão e de vilão a herói ao toque de uma tecla ou de um botão.





Mas enfim, suponho que com ou sem dissecadores olhares, Yves Saint- Laurent nesta altura já estará a perfumar a eternidade com Opium e a sugerir que já é tempo de as santas usarem cómodas calças compradas no pronto-a-vestir para se dirigirem para os seus afazeres diários e Amy Whinehouse, enquanto parece comprar o bilhete para lhe fazer companhia, lembra que nas melhores filhas e alunas pode cair a nódoa.





Bato-lhes palmas ao talento antes de vestir o casaco com bolsos que dão tanto jeito para guardar as chaves do carro, enquanto penso nas imagens deles. Que também vi. E comentei. Com a atenuante de ser esta a segunda vez.