quarta-feira, 21 de setembro de 2011



Reflexões de uma pá com pretensões extra sensoriais


Perdoem-me Vossas Senhorias o descaro de me pôr para aqui a diminuir o Vosso tempo, eu que sou sempre tão calada e que os únicos sons repentinos, como golpes ácidos, que emito são os de entrar nas várias terras e os ais estridentes a que ninguém liga quando nela encontro as pedras que me mutilam.




Dos expedientes que Vossas Senhorias dispõem para receber e comunicar com o mundo, não tenho quase nenhum: faltam-me os olhos de ver, mãos de tocar, por exemplo.


Mas, através da ordem desconhecida das Coisas Inanimadas, como nos chamariam Vossas Senhorias do alto das vossas células, tudo vejo e sinto não me faltando até a capacidade de amar, de chorar na mais profunda secura, de rir na mais estridente gargalhada, como tantas vezes ri quando estas mãos lisas, hidratadas com cremes suaves e braços frouxos que agora me encontraram, procuram a melhor feição de me pegar sem que os rostos se contorçam e as costas se curvem em dores e movimentos que nunca conheceram.


Depois percebem que só nos filmes é que fraquinhos abrem covas em menos de um minuto e em meia dúzia de fotogramas. Pois.
Vissem Vossas Senhorias, o tempo que demoraram estas criaturas para plantar uma pernada de chorão roubada ao Tejo e que, aqui, irá sombrear os estios.




Mas uma diferença entre mim e Vós vos escapa a não ser quando se vos puxa a glória das aparências: enquanto Vossas Senhorias dependem do oxigénio e da água para manter a vida e o fulgor, a mim chama-os a Morte, lenta, arrastada, com face agreste, rugosa, áspera, baça a que Vossas Senhorias chamam com desprezo ferrugem.



Não me lembro do meu nascimento nem quando comecei a andar com pequenos pedaços de terra ao colo mas sei que sou ainda da época a.a., ou seja, da era Antes de AKI, quando ainda o termo bricolage não tinha sido inventado para as pessoas terem a ilusão de continuar as aulas de trabalhos manuais da infãncia e mexerem em mais coisas que não sejam papéis repetidos e infelizes sem surpresas nem espantos que alegrem os dias.




Ainda sou do tempo em se aceitava a minha velhice e a velhice de todas as Vossas Senhorias e a velhice de todas as coisas a Vós ligadas. Até de Deus e do Diabo.



Agora, andam Vossas Senhorias a inventar alquimias que vos estiquem pele e alma para além ainda da fronteira do futuro e as novas da minha espécie são de aço inoxidável, reluzentes e eternas mesmo que um dia a Terra seja engolida para um buraco negro e Deus, com um ataque de tosse, apague a chama da vela do sol.


Lembro-me de ter vindo para aqui acompanhada de uma enxada e de uma picareta de grande nariz para a frente e para trás sem esquecer aquela eterna criança que é o ancinho.


Nenhuma de nós é dada a grandes sonhos. A terra que fica no chão, talvez por não ter tanta imaginação como a água e o ar, ralha-nos ao mais pequeno delírio. Tão severa, nem sequer nos deixa cair para cima e para longe, como os pássaros.


Prende-nos a ela e amarra-nos abraçando-nos no nosso peso.




Mas, apesar de tudo, quando éramos novas, ainda tínhamos a fantasia de nos libertarmos das mãos que nos seguravam e cavarmos tão fundo que iríamos ao outro lado contrário do mundo ver se sempre é verdade, lá, que as pessoas andam de cabeça para baixo e a água do mar se entorna para o espaço molhando a Lua quando esta foge toda para lá.

Mas, como com Vossas Senhorias também acontecerá, a pouco e pouco ou de repente, a esperança é uma forma de luto pelo que nunca se viu acontecer.


Bom, da minha história pouco tenho a contar. Vivi muitos anos iguais. Uns após outros,


com umas mãos e uns braços a sucederem-se sem que os calos muito mudassem de forma.





Aqui, a que fala português, diz que talvez eu tenha sido arma de assassínio entre irmãos por causa de uma questão de partilhas, que talvez tenha cavado na areia para enterrar o amante imaginário da noiva, marinheiro loiro da tatuagem, um tesouro e outras coisas que vão por aí fora na complicação humana.




Vossas Senhorias que me desculpem, mas talvez só conte os meus segredos quando, no ano 251 da era d.w. (depois da Web), uns senhores me desenterrarem, me levarem para um laboratório e me estudem, intrigados com a minha utilidade no passado. Talvez me chamem artefacto para a eficiente mortalidade de portugueses, entretanto espécie já extinta. Logo verei.



Tenho uma ideia do imenso pomar que havia por aqui.


Chorei quando a terra se fez rabugenta pelas raízes dos eucaliptos, que já nem sei se europeus ou portugueses mandaram plantar, mas terão sido os mesmos que pagaram para arrancar o pomar. De economia não sei nada. Contas? Só de somar e diminuir.



Fiz buracos,carreguei terra leve, para plantar as couves e as batatas que acompanhavam o peixe que vinha do mar, ali mesmo ao alcance dum passo de pessoa pequena.




Depois as primeiras pessoas filhas das primeiríssimas morreram como tudo morre e os filhos dessas foram morar para longe e passaram a comprar as couves, ao domingo à tarde, no Colombo, lá onde não se ouve o embalo do Oceano mas toda a gente se porta como um cardume com a ilusão de pertencer a um coral.






Fiquei aqui abandonada neste barracão. Ao monte. No meio das outras coisas tristes.





De vivo, só um ou outro gato, que entrava sorrateiro pela fenda da porta.


Até que esta gente teve autorização para nele entrar.


Fizeram rebuliço, levantaram pó que parecia neve astral a dançar à luz.


O gato roçou-se-lhes pelas pernas, de dorso acomodado em curva. A que fala português chamou-lhe Tonho.





E começou a trautear aquela canção de aviso e temor não vás ao mar Tonho que agora, sei-o embora tanto tempo encerrada para o mundo, foi substituída pela coscuvilheira Mas quem será?, Mas quem será o pai da criança?


Ali fora tudo mudou. Praticamente as pessoas só falam estrangeiro. Apesar de a praia continuar quase deserta.






Talvez os portugueses daqui tivessem mudado o Colombo para o Algarve.
Perdoem-me Vossas Senhorias mas arrepia-se-me o cabo quando sinto tantos Akis, tantos Mestres Makros.


Mas quem por aqui anda, dá grandes passeios, fica parado com os pensamentos flutuantes muito para além do horizonte, tão para lá que até acaba por os perder.




E todos dizem que gostariam de ficar aqui, no ofício gratuito da calma. A todos já cansa as correrias e incertezas do mundo.




Comparam o que existe com o que sempre existiu sem deixar de ser criado e recriado.







Recolhem coisas que o mar oferece ou devolve.


Para aqui, trouxeram um búzio.






A que fala português, diz que quando ele era gente, era muito feio e torto e mal jeitoso e gostava muito da princesa a quem servia e que era bela e nova e ruiva porque era escocesa e que quando o pai mau dela a mandou para uma terra sem água, ela se tornou triste e sem sorriso.
Então, o serviçal desapareceu sem que nem a princesa nem ninguém lhe notasse sequer a falta.
Nunca ninguém suspeitou, nem ela, que se tinha feito concha, com o mar dentro, para lhe sussurrar longes ao ouvido. A princesa sorria quando o escutava e, enquanto viveu, nunca deixou de trazer o búzio ao peito, junto ao pulsar do coração.


De resto o mar continua, como sempre, a rugir como um Deus líquido e as gaivotas continuam a parecer, com as suas vozes de sopranos e contraltos, um coro de anjos de alerta.


Agora estou aqui outra vez, arrumada. Pendurada na parede caiada de fresco.
O gato estará melhor, lá para onde o levaram. Muito se deve roçar, se já aqui gostava tanto de colo, o traidor.


Prometeram-me que me vão usar para plantar um limoeiro. A roseira brava já está.
Daqui a pouco tempo, aquele que para quem espera, tem a onda da eternidade.

Hei-de sentir o ronco contente daquela aventesma vaidosa de personalidade tão contrária à minha quando para aqui parte.


Tenham então Vossas Senhorias uns muitos bons dias que eu cá fico na conversa com o meu melhor amigo, o carrinho de mão.


A desfiar memórias e segredos que este silêncio há-de guardar.