sábado, 19 de abril de 2014



Da papoila que supostamente envelheceu, chamou por mim... e me fez sorrir como se o tempo andasse ao contrário.




Ou é da distância a que o tempo fica ou me parece que naquela época era tudo mais fácil.

Entravámos na livraria madrilena do costume e comprávamos os  livros que nos chamavam como se as personagens que os habitavam fossem génios invisíveis com vozes de som virado directamente para a sedução da alma.


Naqueles anos quase todos os produtos culturais eram baratos em relação ao rendimento do comum das pessoas.

 O ministro, ou a ministra, já não me lembro, disse que um país sem cultura acessível a todos não tinha futuro.

Nas livrarias, e nos hipermercados logo à entrada na passagem para a mercearia e outros consumos, amontoavam-se livros, discos, filmes.


Clássicos. Contemporâneos.

Até a Hola trazia como presente as obras de Shakespeare ou Cervantes presas à revista por plástico adesivo não fossem as criações fugir dos dramas inventados e mundanos dos famosos de briga pronta ou amor revelado na esquina de qualquer festa.


Em ediciones de bolsillo que não faz mal nenhum copiar a ideia dos judeus alemães no séc.XIX. Aqueles da filosofia pocket, levada para os Estados Unidos e para Inglaterra: palavras vivas em formato pequeno, papel barato e capa flexível.

(Por aqui, tenho saudades dos pequeninos Livros do Brasil que andavam lá por casa e agora guardo, se bem se recordam nestes tempos de invasão de literatura a metro de teclado.)



Já não me lembro que livro desses, de Gabriel García Márquez, me chamou pela primeira vez. Talvez fosse Los Funerales de La Mama Grande.

Sei que estava muito calor e o comecei a ler, no ritual da caña e dos boquerones avinagrados servidos por Don Argimiro a quem já dediquei prosa.
 Formas de inventar a frescura quando o final da tarde parece resumir todo o sol agreste do dia.

Lembro-me do  começo do encantamento. Todos os dias comprávamos mais um. Todos os dias acrescentávamos mundos ao chão que nos prendia.


E víamos como, através da fantasia e do espanto se despem as várias naturezas humanas até ficarem escandalosamente nuas sem o paternalismo da complacência mas embaladas pela extraordinária musicalidade da língua castelhana.

Não desfazendo, é língua desbragada, profana  com Deus dentro. Pouco envergonhada, de rédea solta sem aparas domésticas e muito menos domesticadas.
De qualquer forma, em todas as línguas, existem sempre maestros capazes de lhes salientar a beleza das notas dando-lhes o andamento certo. Às vezes com a ajuda preciosa, ou nem por isso, dos instrumentistas tradutores.


Numa dessas descobertas, com as pernas confortavelmente submersas em água quente e sal, comovi-me com a dignidade da mulher que vai no comboio com a filha pequena que leva um ramo de flores, contrariar a sesta do padre e pedir a chave do cemitério para visitar a campa do filho ladrão de quem naquela aldeia estranha ninguém sabia o nome e muito menos que era boxeur já sem dentes.*


E talvez tenhamos compreendido melhor, por reconhecimento,  a imigrante colombiana  atarracada universal como se saída das mãos da Paula Rego,


  que parava de limpar o chão ou de comer a banha de porco à colher, assim de repente, para queimar alecrim com fúria, vete hijaputa, ou não lhe tivesse aterrado o espírito da defunta sogra, sem passaporte ou visto turístico, ali em pleno solo emprestado de Madrid.

Nem o mau humor maricón do director nem a asma da carismática  pan con pan (lésbica) da vice directora, puñeteros patrones hijos de los cuernos del Diablo, lhe aplacavam aquela sede de vingança pela falecida porque uma pena de pombo untada em azeite nos respectivos cacifos era perna partida pela certa .




E uma das costureiras, curvada sobre tecidos de amargura e que andava há vinte anos e mais os dias que iam passando à espera da carta de um amado, marido precoce e com curto prazo de validade, desaparecido e arrastado para outras terras por uma matrafona aerodinâmica, puta em estágio, parideira para homem roubado e virada à aventura.


Tão esquecida e patética como  o Coronel que não tinha quem lhe escrevesse uma linha que fosse.**


Mais o outro que já nem sei se nos fazia lembrar filho do Garcia Marquez ou do Vargas Llosa ou de outro qualquer que escrevesse caricaturas mais autênticas que o original. Não interessa.


Só sei que o meu lado britânico me lembrou, hoje, que cada vez que morre alguém que deixa rasto pelo tempo fora, seja Nobel ou viva na luz invisível, nasce ou renasce uma papoila nos campos.

Consta que é  flor que, entre muitas outras habilidades até Pascais, transporta a cor do sangue guerreiro da imaginação.


* La siesta de martes
**El Coronel no tiene quien le escriba
                                                          nos seus títulos originais. 

quinta-feira, 10 de abril de 2014




Do dispendioso sorteio do paraíso à orientação moral de Usertzu III (1440-1412 a.C)


 Não, Senhores, sou tão anormalmente apátrida nas crenças redentoras que não me vai cair em posse um carro Audi no magnífico sorteio promovido pelas Finanças.

  Não sou diligente polícia fiscal.
 Não peço facturas  pelas insignificâncias ou relevâncias  que consumo.



Deus me livre de entrar na imoralidade de devassar o meu número de contribuinte fiscal a cada comerciante com que me cruzo ...haja recato, que tenho direito a ele e o Estado, entidade que estou longe de desejar ausente ou omnipotente, só me pode exigir na medida em que me der retorno.

 Agora e quando for velha e produtivamente inútil.



Um Senhor televisivo, afirmou que é uma questão de moral ajudar o fisco nas suas cobranças.

 Esta é uma maneira de motivar. A motivação é uma palavra feita espada ou flor que está na moda.

 A moral, ai a  moral, nunca nasceu de geração espontânea nem se aplicou sem recompensa ou castigo. No presente ou no futuro. Em vivo ou em morto.

A moral fabrica-se e vai-se construindo consoante as circunstâncias.

 Sem falar na moralidade da escravatura, da matança de velhos, de crianças à nascença, quando a população crescia mais que os recursos, lembro-me duma curiosa imoralidade/pecado inventada por Elizabeth I: comer carne à sexta-feira. Dava-lhe jeito ao desenvolvimento da economia das pescas e à recruta de futuros "fuzileiros" comer peixe.

Continuando, hoje, já com tanta História, e se calhar tanto tempo de inteligências e estupidezes, riquezas e misérias a formar, por comparação, a sensibilidade, cada um já deveria ter a sua. Talvez a isso se chame liberdade.

A não ser, claro, que  se compre em pacote. Em kit  de pensamento já pronto a usar.

É mais fácil , cómodo e talvez seguro, utilizar os pensamentos dos outros que pôr  em prática os próprios.



 Talvez por isso um dedicado soldado nazi tenha exclamado em festa e regozijo que "Nós Alemães somos tão felizes. Estamos livres da liberdade".

 Dizia que  moral também se vai construindo.

Pela propaganda.  Tanta e de tanta maneira.



" As pessoas querem é um emprego mas não querem trabalhar"
" Viveram como ricos e agora..."

   Pelas artes.





(Só pelas morais do corpo em relação à Dança poderia escrever 365 posts. Desde, e volto à desaforada Elizabeth I de Inglaterra, que permitiu que se vissem os artelhos das damas em galhardas voadoras, aos postulados nazis e soviéticos, passando pelos quase dogmáticos nus e despidos do pós modernismo dos anos 60. Do séc.XX.)

Pelas formas de terrorismo religioso ou partidário porque nem só de bombas em comboios, edifícios ou outros apetrechos se moldam comportamentos.



Depois de morto há o paraíso e o inferno. E os assim-assim para o purgatório. Sujeitos a tentações moderadas compensadas pela militância nas virtudes.


Em tempos mais místicos, situavam-se no Além. Agora também na superfície da terra.


Para os pobrezinhos católicos do Sul e respectivos apêndices além mar, desde que não hereges, bruxos, doentes mentais virados à  desobediência, o Céu esteve sempre garantido. Quanto mais se sofre nesta vida mais compensado se será na outra.
 As "virtudes da escravatura" de que falava Nietzsche.



Senhores, penemos agora que daqui a 250 anos constaremos da lista da Forbes. Comeremos bifes todos os dias, adoeceremos para afastar o tédio, nasceremos doutorados, aconselharemos os caridosos a ocupar o tempo deixado livre pela desnecessária e quantas vezes egocêntrica piedade.


Para os protestantes do Norte é o oposto. A famosa "ética do trabalho" de Weber.
Só se chega lá, ao Céu, quanto mais se trabalhar, quanto menos alguém se entregar à folia, quanto mais riqueza se juntar. A abnegação. A austeridade.

Hoje em dia estes vistos para a entrada no Paraíso talvez andem com os carimbos trocados ou com fiscais de fronteira emprestados.

Ouvindo pessoas piedosas, credenciadas em moral  e membros de administrações pátrias, uma pessoa fica na dúvida em relação à geografia de Deus: entraremos como desgraçadinhos ou mesmo desempregados temos que trabalhar e enriquecer?



Para os outros, que não têm Paraíso nem Inferno para além da vida, esta culpa de existir com dúvidas ou discordâncias, redime-se nos campos de concentração, nas prisões ou no exílio. A moral que leva à salvação, ao futuro glorioso  está em seguir o líder. Mesmo que já oriente em forma de estátua, cartaz ou t shirt.



Sem mácula nem vício, nem fraqueza nem vaidade simulada. É essa a natureza do mito. Mesmo sendo humano, ser capaz de soprar o vazio do Universo.



"Nunca sejas o primeiro a parar de aplaudir numa ovação de pé"


Seja lá a moral qual for, a submissão de todos a um, é o que mais se parece à igualdade. À harmonia.

Sem líder ou bandeira, como disse um filósofo de que não me lembro o nome e citado por um director do Bolshoi, "uma multidão sem líder é como um rebanho sem pastor".


Outras formas de incutir morais são os castigos evidentes por comportamentos menos dignos.


Madre Teresa de Calcutá demonstrou que a SIDA é castigo justo para o retorno de Somorra. Uma forma de extinguir os gays, especialmente os gays, que uma sociedade sem valores morais permitiu que andassem à solta a espalhar perversões como seres infectos da família pai-homem,mãe-mulher, que são.


Outra forma é condenar quem foge à ideia certa ao ostracismo.


 Significa ser excluído do grupo. De uma forma ou de outra, toda a gente se identifica num ou noutro aspecto com um grupo. Talvez seja uma forma de a pessoa se situar. Ser excluído pode ser perder o rumo. Ser varrido na sua história. Ser remetido a uma solidão calada. Envergonhada.


É aí que entra o "politicamente correcto". É mais fácil dizer o que se espera que se diga do que o que se pensa. Ou o que se deseja.

Deixo-vos agora uma citação do faraó Usertzu III que uma professora de dança colou numa parede e distribuiu pelos membros da companhia, quando algumas cabeças consideraram imoral que o coreógrafo e bailarino Bill T. Jones,



 nascido negro e homossexual e, por acidente génio e corajoso, apresentasse os seus dotes  num teatro norte americano. No sul.


Serviu de inspiração ao longo da História. Foi plagiada por ditadores de direita e esquerda no século XX. Utilizando os termos segundo os fins em vista.
E parece que continua, neste XXI nos sistemas onde a Dignidade arde em lume brando. Como se também do fogo lento não nascesse a cinza. E a forma mais silenciosa do nada.

A minha palavra é lei. Eu ataco quem me atacar. Quem bater em retirada é um vil cobarde. Homem derrotado na sua própria terra não é homem nenhum. Assim é o negro, quando o atacam ele foge. Os negros não têm coragem. São fracos e tímidos. Eu capturei-lhes as mulheres. Apoderei-me dos seus bens. Qualquer filho meu que permita a passagem desta barreira deixa de ser meu filho, nunca o engendrei. Erigi uma estátua em minha efígie não só para a contemplarem mas também para lutarem por ela...