segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Lamento da Virgem do Canário


Ai, Tony, que pasmo monótono é o desta missão…!

Foi-me pedido o milagre de evitar que aquela ali, ainda terrena e, com certeza, nunca futura hóspede do Paraíso, escreva mais uma torrente de disparates e incongruências. Como lhe é próprio.


O ano passado, por esta altura, antes de ir de férias, a que alguns chamam de período asteriscal, soltou-se-lhe prosa de pitonisa astrológica sobre o ano agora em fase de mudança no número da contagem.


Debruçada sobre o negro teclado cujas letras brancas lhe procuram os dedos, tal é a falta de destreza sobretudo quando em estado de interrompida, previu que aquele país rectangular, aquele ali, naquela ponta ao pé do mar, ia ser grande por mor de

dar novos Universos ao Universo,


da exportação para eles de pequeno computador disléxico mas com grande nome,
que Manuel Aristóteles ou António Platão, já não me lembro, ia ser eleito,
que haveria mais empregos que empregados,
que haveriam os meninos de saber, pelo menos, o nome do primeiro rei do território, que o último, ficará para mestrado à bolonhesa, sem bater nos professores com as armas que os pais lhes dão


e sobretudo, que os mortais deixariam de mandar garrafas de Água das Pedras, pela janelas dos seus carros.

Ah, Tony, tem tanto jeito para a leitura dos astros, em que não é especialmente crente, apesar de se julgar semi Virgem e semi Balança, como para cozinhar, nem que seja em síntese, um Pudim de Abade de Priscos.
Nem o El Mandarim, Tony…nem o El Mandarim, sejam as instruções em português, em castelhano ou em inglês.

Nada se concretizou!

Mas vê a minha sorte, Tony que tão bem pias, que hoje lhe disse uma entusiasta hiperactiva que sempre anda atrás de Touros e Sagitários, que lhe parecem insonsos Peixes e Caranguejos e de pouca monta Carneiros, que Saturno, o Esperançoso, no próximo ano do calendário terreno, ia apanhar o Comboio da Mudança e tomar como destino o Rectângulo À Beira Mar Plantado. E que ali iria colocar a última peça do Lego do Apeadeiro da Felicidade.

Levou a minha vigiada protegida a sua chávena de chá sem açúcar para o amplo gabinete de trabalho que vários cansaços tornam minúsculo como costuma acontecer a quem ainda vive lá em baixo, vivo e sobre a Terra,


e pensou, com ar céptico e virado à introspecção, em vários relatos de cronistas passados e em acrobacias ilusórias de protagonistas presentes com estátua e nome de avenida desejados no futuro.

Bocejou pela vigésima vez, alisou a franja ridícula, coçou a nuca, girou o pé esquerdo, confirmou que tinha o brinco, palpou o colar, revirou os olhos, franziu o sobrolho, torceu a boca, arrepiou-se, tombou da cadeira e pensou com ponto de exclamação: só um milagre!

Ligou o computador e foi assim que, em vez de Eu continuar a desfrutar as delícias deste nosso jardim com as minhas congéneres,

recebi uma espécie de sms de superior desesperado e atónito, e por iluminação interior, para lhe travar o dislate da tecla, não fosse ela, desta vez, trocar a astrologia pela santidade e começar a espalhar, como pães em regaço

glórias,

Culturas equilibradas


abastanças
amores de qualquer género


e outras grandezas pelos seus pacientes comentadores, leitores anónimos e seguidores.

Tony do canto repenicado e límpido, outro remédio não tive que perder a minha beatitude e sossego de espírito como demonstra o meu sorriso lá em cima e enviar àquele cérebro, ordem para que outros afazeres lhe fizessem esquecer o nome de Santa Lizzie Benemérita e Abrangente com que se preparava para massacrar o teclado.

Logo lhe fiz lembrar que só tem mais dois dias para resolver o que tem a resolver, praticar o que tem que praticar, antes de viagem,


antes que possa melhor interromper-se dos dias comuns do mundo.

Deixemo-la ficar só com a mão ao alto e, virada para o ecrã, desejar boas festas ou asteriscos, e que cada um consiga ser o mais parecido possível com aquilo que para si imaginou.



E que para o ano, quando voltar, espero Eu aqui das alturas, mais fresca e lúcida,

me dê descanso e paz.

Pensa ela e penso Eu, meu pequeno Tony, que sejam quais forem as voltas, sejam quais forem as datas, sejam quais forem as glórias ou as misérias, o mundo nunca parou.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Este, vai mais como fuga ao que devo fazer do que pela vontade de fazê-lo. Que me perdoem porque neste caso “quem fala verdade não merece castigo"

Cinquenta cêntimos pelos arredores do destino


Hoje estou interrompida! É um direito que toda a gente deveria ter: interromper-se!
E talvez um pouco rabugenta com as palavras.
A bem dizer, com tudo o que implique a mais leve obrigação.
Estou mais virada para a telepatia.
Se acreditasse nela.
Sou feita de material de poucas crenças.

Nem acreditei na cigana que, na segunda feira, entre churros, me leu a sina e disse que, livrasse-me eu das invejas, hija mia, e ainda ia casar, depois de muito lutar bravamente por mim,

com um homem muito rico, cariño, alto e bonito com barba de rei, corazón, ia ser muito feliz e viver até, exactamente, aos cem anos, guapa.
Tal originalidade na profecia custou-me apenas cinquenta cêntimos e poupou-me o trabalho minimal repetitivo da recusa.

Pela minha simpatia ainda tive direito a um bónus de futuro já sem linhas da mão à vista : hei-de morrer com pele como veludo e olhos tão limpos como água da fonte.

Não há nada como ter um destino abastado, virado para a cosmética e para a oftalmologia.


Hoje apetecia-me, bulimicamente falando, estar em casa.
Queria, em dia útil, com vagar e sem pressas, acender a lareira como se praticasse um ritual antigo.

Como se fosse da idade de todas as mulheres.

Infelizmente, não tenho outro remédio senão resumir-me à minha.
Ficam-me as artes para que elas me contem os seus segredos.

Porque depois de acesso o lume, me podia recostar, a ler um dos livros que trouxe.
Literatura feminina agora publicada.

(Como terá visto a freira, viajante com vocação hospitalar, os desconchavos da Espanha de Fernando VII?
E qual será a história da pianista inglesa que conversava com Bach, para o reinventar, fora dos etiquetados salões vitorianos?)

Não me pode faltar um bule de chá english breakfast, umas torradas de pão autentico, bem doseado de crateras no seu interior. Um maço de tabaco encorpado. E um xaile ou casaco inglês para o cenário ficar coerente e completo.

Ou então, podia ir para o jardim. Tenho a sorte rara de ter um jardim.

Campo aberto mas protegido entre muralhas. Como as solenes Virgens medievas mas com o meu gorro preto de deliquente ou terrorista.

Podia-me deitar na cama de rede, em intervalo de árvores nuas, e ficar à espera que as nuvens abandonem o céu e o deixem sózinho. Só com o sol preparatório para o inverno.
Suave como um amor meigo.

E, virada para o infinito, podia imaginar um canto solista para os pés faladores do N.

A visão é um dom aleatório e caprichoso e na segunda feira os olhos fugiram-me mais para os pés ensaiantes que para a exuberância atlética do corpo.

Há bailarinas e bailarinos com pés que pingam uma linguagem autónoma que foge à quase obrigatória disciplina do corpo.

Como as mãos. Quantas vezes não se lavam elas das exigências das personagens? São resquícios voluntariosos do que não abdica de si.

Elas lá saberão e não sou pessoa, como não são outras que conheço, para ter a pretensão de mandar nas emoções das minhas.


Claro que o mais natural é que adormeça. Com embalo. Naturalmente e sem programação.

E passe a hora correcta para o almoço e para as notícias.
Não me apetecem nem as portuguesas nem as espanholas nem as outras.

Não me apetecem espécies de discos de vinil riscados e ronfenhos de incompetência e trafulhice. Vendas da alma a baixo custo.

Não me apetecem olhares resignados ou aflitos, desamparados ou à espera.


Não me apetece uma juventude submersa, sem a altivez e a pujança que lhe são próprias. Não me apetecem vontades quebradas e gastas antes do tempo.

Não me apetecem vidas inertes cheias de astenia.


Também não me apetece ver Camões, Eça, Cervantes ou Calderón de la Barca mandados para o caixote de um tempo demasiado antigo para ser considerado politicamente moderno. Não me apetece desprezo histérico pela História.


Depois hei-de acordar, bocejar e espreguiçar, actos corporais de que muito gosto e de que tiro prazer concentrado.

Adoro a má educação da preguiça e despertares lentos, livres de “objectivos”, palavra tão obsessivamente contemporânea, contagiosa até para as formigas que se instalaram no canteiro da buganvília, sobretudo para as que transportam em curva e contra curva de equilíbrio, carga que as excede em tamanho.

Enfim, depois sou capaz de me desinterromper. Ou manter ainda a folga.

Não sei. Logo vejo.

Até aos cem anos, livrando-me da inveja, amor mio, aplicando creme hidratante, joya, fazendo uns ovos com espargos com um cheirinho de rum ou conhaque, bonita, ainda tenho muito tempo para viver, coño.


E, assim sendo, que nunca nos faltem cinquenta cêntimos para guardar no mealheiro da contínua descoberta.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

E este segue em forma de pagamento de promessa à minha jacartiniana sobrinha e pode conter, para as mentes mais resguardadas ou sensíveis às reais situações do mundo ou ainda alérgicas a lamas policiais, palavras ou situações chocantes. Vou tentar ser breve que, a bem dizer, tudo isto dá infindável prosa.

Da mulher que, inventando-se, se esqueceu de morrer.


À laia de preâmbulo e como toda a gente sabe, a Monroe não nasceu Marilyn, nem loira, nem rica, nem famosa, nem ajuizada, nem de pai absolutamente certo.

A sua mãe, chamada Gladys, que lhe sobreviveu muitos anos, alguns dos quais internada em hospital psiquiátrico, já tinha herdado da sua própria geradora uma esquizofrenia exuberante, pelo menos segundo as classificações da época.

Embora por outros motivos aparentes na superfície, Marilyn também passou por internamentos vários.

Gladys mostrou uma fotografia do suposto pai a Norma Jeane (ou Jean) Monroe Mortensen que haveria de ter consequências funestas no futuro. Por parecença no fenótipo de homem, Marilyn veio a convencer-se ser filha de Clark Gable, afirmando tal coisa a quem a quisesse ouvir, para grande espanto do actor. Foi uma das suas primeiras invenções.
Segundo testemunhos de várias famílias de acolhimento, já em criança, Norma vagueava entre a tristeza, a confusão e a fantasia desafiadora.
Por estas e por outras nunca ninguém soube quando Marilyn falava verdade ou mentira, quando inventava calculadamente tragédias e infelicidades para cativar e comover o sexo oposto ou quando acreditava piamente nas vidas que de si construía.

As únicas declarações que manteve estanques em toda a curta vida foram o desejo de ser fada do lar, submissa ao ser superior que é um marido e Chefe de Família. Era feroz adepta do tão publicitado modelo de família dos anos cinquenta.


Fez diversas e detalhadas descrições, de uma suposta violação em criança, para justificar a sua muito precoce voracidade por homens.

Casou aos dezasseis anos e contam terceiros e também ela (chegou a auto classificar-se publicamente como rainha dos felatio), que enquanto o marido estava na guerra, não houve mancebo, de preferência fotógrafo, que lhe escapasse.


Cedo começou a tomar analgésicos para paliar as dores fruto dos problemas ginecológicos resultantes de inúmeros abortos feitos em sítios pouco habilitados para o efeito. Mais tarde, teve-os naturais. Nunca chegou a conseguir o que mais queria: um filho. Tal impossibilidade fê-la cair em actos do maior delírio.
Ao longo da instável existência, a discrição acerca da sua vida, da dos outros, e sobretudo da sua com a dos outros, nunca foi propriamente virtuosa.


Tal falta de contenção face a segredos e o hábito de seduzir e partilhar qualquer leito com qualquer homem que lhe aparecesse à frente, pode ter levado ao seu assassínio embora para o grande público se lamentasse o suicídio.

Marilyn foi construída e construiu-se como o protótipo de mulher famosa, bonita, frágil, traída nos amores. Uma espécie de aristocrata da infelicidade com brasão desenhado nas chagas da desventura.

Durante a sua vida e após a sua morte foram vendidos, em todo o mundo, milhões de romances de cordel sobre a deusa com penas mortais.

De facto, Marilyn sempre viveu dependente de várias drogas. Para além das analgésicas, recorria excessivamente a comprimidos para dormir (sofria de insónias crónicas) e para matar a ansiedade. Misturava-as com álcool e por diversas vezes entrou em coma.
Eram desesperantes, para colegas e realizadores, os seus atrasos (chegava a ser maquilhada enquanto ainda estava a dormir), e as omissões de memória.

Um exemplo da decadência global do seu estado, foi na festa de anos de J. F Kennedy, quando cantou o famoso “Happy birthday, Mr. President.”


E começa aqui o enredo policial.

Já era dado adquirido no meio, que Marilyn era amante simultãnea de John Kennedy e do seu irmão Robert. E de Frank Sinatra, com ligações ao sucessor em poder de Al Capone, Giancana. E deste a quem era favorável a extrema direita.
(Segundo alguns investigadores a figura central desta renda era a voz de oiro, angariador do vasto rol de mulheres que os presidenciáveis irmãos partilhavam e mestre de cerimónias nas festas de famosos com orgias de poder a todos os níveis.)

A meio de uma das festas, dada em casa de um cunhado dos Kennedy, Marilyn foi para casa. A meio da noite foi encontrada bastante morta e em rigor mortis na cama, agarrada ao objecto de que era dependente: o telefone. Telefonava a quem quer que fosse a qualquer hora.



A polícia fotografou o quarto. De forma exaustiva. Foi feita autópsia com o veredicto de suicídio (suponho que por negligência de vida )dadas as doses de álcool e barbitúricos concentradas no fígado.
Mas, um professor da especialidade inglês, em honra da veracidade anatomo-patologista-forence levantou o pó da certeza.
O estômago de Marilyn estava limpíssimo. Nem comida nem resquícios de comprimidos ou cor dos mesmos no dito órgão. Parece que, com tal dose capaz de matar, o coração pára antes que todas as pílulas se desfaçam. Mesmo quando passados em almofariz e diluídos em líquido, deixam rasto por onde vão passando.

Não haviam sinais de injecção intramuscular ou endovenosa.

Perguntou o Douto Professor Inglês, onde estava a análise toxicológica ao cólon. Não existia porque o autopsiante se limitou a olhar o e a verificar que Marilyn tinha o órgão massacrado por obsessivos clisteres , como era prática corrente nas actrizes e modelos como forma de perder peso.



Indignou-se o inglês com tal negligência já que eram muitos os assassínios discretos praticados dissolvendo as mortais drogas na água utilizada para a prática.

E se o autopsiador fez longo relato dos pêlos públicos da famosa defunta, não lhe examinou o canal vaginal.

Por não ser sítio muito exposto ao comum dos olhares, também era forma corrente de, através de injecção, administrar o mortal princípio activo, levando-o a espalhar-se sangue fora.

Mais tarde, juntando todos os elementos, muitos se viraram para o assassinato por um destes dois últimos meios.



Por outro lado, ouvindo quem estava na festa, comparando horas, chegou-se à conclusão mais apurada, dado o estado de rigor mortis, que Marilyn por lá andou, de copo na mão e passeando-se, já finada.


E nas fotografias do quarto não se vê nem copo nem garrafa de líquido por onde Marilyn tivesse empurrado para dentro de si os comprimidos.
E mais muitas coisas que agora não me ocorrem.

O processo foi fechado e reaberto várias vezes e, parece que só em 2025, poderão ser de acesso à investigação publica documentos reveladores. Alguns dizem que a História vai trocar anjos e demónios.



Talvez tudo seja tão irónico como o corpo esventrado de Marilyn dias a fio na morgue, sem que, no meio de tanta fama e utilização, alguém o reclamasse para lhe dar definitivo descanso. A família desprezou-o, os famosos ignoraram-no.

Como muitas outras vezes em que o Ícon era massa disforme, o seu controverso ex-marido, Joe Dimaggio, encarregou-se de a chorar e lhe fazer o funeral. Toda a vida, apesar da violência gerada nos ciúmes doentios, lhe tinha chorado o lado mais recôndito dos desaires.



Tinha visto mais da mortal Norma Jean que do ambíguo produto Marilyn.

De qualquer forma, talvez ainda se continue a ouvir em todos os plateaus, teatros e famas em qualquer parte, o que tantas vezes ela disse:

“Em Hollywood, pagam-te mil dólares por um beijo e cinquenta cêntimos pela tua alma”



A preços da época, claro!