sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A cobertura


A insónia roubou-me a adolescência da noite. A lua entrava, descarada, pela janela a derramar luz pelos lençóis. Deve ter sido prolongamento de sonho mistico mas tive necessidade de ir ver aquela ementa de beleza que é o catálogo do Museu do Prado. Só para ver este refúgio de calma e entendimento que é a Aparição de Cristo a S. Bernardo. Em boa hora Francisco Ribalta o pintou. Muitas vezes o fui ver, lá, em silêncio, com pena de não sentir a cobertura de Deus. Mas acho que Deus foi morto, ou se suicidou num jogo de xadrez que ele próprio criou. O seu forte nunca foi a estratégia. Foi o culto do medo. A justificação da morte. Sem ofensa, não vá ele estar em coma e acordar.

Depois apeteceu-me com urgência ouvir o Sanctus da missa de Machaut. Vozes solenes. Deu-me a nostalgia da Catedral de Boston em luz tardia.


Do dia em lá entrámos e um coro vestido de branco com capuz na sombra da face, entoava aquele salmo. E o som ia até ao cimo, reflectia nas paredes e voltava, com atraso, para trás. Era o eco. E o eco é sempre comovente. É uma prova de distãncia, é o som vagueante na vastidão ligada ao infinito. Simbolo da nossa pequenez. E lembro-me do arrepio que me percorreu o corpo. Da paz que o rodeou. Mais mais uma vez com pena de não ter cobertura. Como a não tinha a judia que orientava o coro. Uns dias mais tarde vim a conhece-la, quando ela disse, horrorizada pela falta de respeito ao tempo, que tal música vinda dos confins da santidade, não se dançava. Deus é estático. E tal música só admite o poder da voz humana. Os instrumentos são invenções dos homens. Ofendeu-se-me o violoncelo. E todos os outros de som expressivo. Nesta noite até o repuxo de cascata do meu aquário se ofendeu. Até me pareceu que as cascatas são águas que soltam os cabelos. Porque me lembrei dum cabelo solto a dançar as vozes furtadas a Deus.

E depois deste percurso fui- me recostar outra vez na cama, a beber uma chávena de chá quente que me inundou. Olhei para a pergunta


mas mais uma vez não tive resposta. Não fui feita para pensar. Fui para sentir. E se calhar foi um deus novo, cheio de energia e vontade, que me esbateu o cérebro e me passou as mãos pelas palpebras e as fechou. Porque só me lembro da suave vertigem de adormecer.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Nothing




Telefona-me e conta-me como foi. Muita, muita gente e uma senhora esgrouviada no meio. Muito magra, de olhar errante sem poisar em sítio fixo porque o mundo lhe é grande. Mundo duplicado, triplicado, multiplicado em que cada coisa tem mil histórias por abrir. Achou-a simpática até no gesto de juntar as mãos no peito como quem guarda o que nunca se inventou. Achou-a deliciosamente infantil nas gargalhadas inesperadas. No falar aos arranques,às vezes sem sentido nem travão. Uma Peter Pan que recusa o morrer do dia a dia utilizando como influências gente que no dia a dia olhou a morte de frente e, ou, a cultivou: Goya, Rivera, Velazquez, Balthus, começando pelos caricaturistas alemães, esses bobos do traço, e por outro, por quem temos ternura comum, o niño Miró.

E eu sei que o atelier em Londres é um quarto de brinquedos, cheio de risos travestidos de tragédia. E sei que tem paixão pelos folhos dos trajes de flamenco, outro envólucro de dramas. E tantos objectos anónimos que lhe expandem a imaginação delirante. São os adereços de quem sente a vida por dentro. Qualidade rara. Olha de olhos imensos as perversões, as perdas,humilhações,solidão. Ela sabe que o sofrimento torna as mulheres e os homens amargos, com traços duros, longe da placidez das suavidades gregas. A geometria da vida não tem as curvas e as arestas limadas. A vida é esquinada.

Enquanto tratou do marido, vítima de morte lenta, fez colagens metafóricas. Não tinha tempo para pintar. Eram seres que vomitavam mais depressa do que engoliam. Perversos e alarves como um deus autista a olhar a criação.

Nasceu em Portugal, Portugal deitou-a fora (tem essa especialidade) e por amor fez-se inglesa e é Espanha que plenamente a celebra na Madrid que ela tanto gosta. Durante todo o dia foram dando na televisão, lá, imagens dela, dos quadros. Explicações. Foi dizendo que gosta de Portugal, que trabalha a ouvir fado.

Chego a casa, aqui em Portugal, vejo, enquanto janto, o telejornal e nem uma imagem da festa. Algures ouvi uma srª ministra dizer que já se mostrou em Serralves alguma coisa, que não é preciso mais.



Não é preciso mais que a irreverência, o continuar a criar, a brincar, a existir. O gostar ou não da obra é uma questão particular. Mas o mérito fica lá. No riso teimoso

de uma aventura ainda por acabar. Com muita história por descobrir.

Era uma vez um corvo que seduziu uma menina que morava num andaime e tinha um pai coxo com crista de galo e mãos de peluche com o nariz ao contrário...

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Senta-te aqui, Passarinho...



se ainda não partiste.

Estamos noutro país, sentadas numa sala onde moram muitos livros, muitos quadros, muitas fotografias, pois, sou eu mas mais nova, com um terraço cheio de plantas. Lá fora ouve-se a rua em som difuso de vozes, carros.
Estamos aqui os quatro, tu senta-te onde quiseres, não faças cerimónia. És a mais nova, graças a Deus.

Aqui podemos falar o que para os outros calamos. Começo por dizer que quando vinha para aqui me entrou aquela dor indefinida, sabes qual é? aquela mal educada que não pede licença para entrar. Começa no tornozelo e vai pé abaixo e só não continua porque os dedos lhe são precipício. Então trepa pela perna, brinca com o joelho e vai-se esprair na anca. Tem mais espaço. Já me habituei a não lhe dar importância. Mas sinto-a a rir-se. E no braço tenho tatuagem de trabalho, aquele que partiu da Martha. Costumam-lhe chamar cicatriz.

Mi J. é homem portentoso, tem tronco de fazer face ao vento, pescoço largo e fibroso, parece torre em ameia. E eu passo-lhe a mão pela nuca e lá está ela, aquela corda que se cansou e de ser nervo e virou aço. Mi J. solta um lamento a rir-se. É criatura que não verga. Mas conheço-lhe a ruga aflita, ali, no canto da boca. Choque eléctrico que lhe lembra o tempo em que nós éramos penas que ele levantava para vermos melhor o mundo.

Mi Mar ainda vai tendo ganas de flamenco. Mas os osteofitos parecem-lhe pregos nos calcanhares. É o prazer que lhe vinga a dor. É o taconeo que lhe calca os azares, os movimentos repetidos anos e anos a fio. E quando lhe dão las ganas sabemos que naquele corpo há uma guerra, um duelo entre a vontade e a esperança dela. Mantém a garra na beleza tão doce.

Mi C. um dia, num grand plié paralizou, deitou-se para o chão e lá veio o homem da bata branca esticar-lhe as pernas. Tinha-se soltado um fio no joelho e outro na anca. E eu lembro-me de a ver fetalizada, lembro-me da testa gelada, do olhar quase vítreo pousado num sítio de que ela não se lembra. Andou a aperfeiçoar demasiado tempo uma contracção dramática, uma daquelas muito contemporãneas em que o corpo grita o que a boca é obrigada a calar. Aperta a mão no meu ombro e não se desperdiçam palavras.

Claro que aqui podes esticar as pernas, olha pôe os pés encima desse banquinho. Está melhor assim? Recosta-te antes de embarcares nas viagens para rumos de que se não conhece o público.. E ele é tão diferente, tão anónimo nos olhos e nos calores. Sente-se com a alma, não é? Às vezes é quase um inimigo calado: tantos olhos e tão silenciosos e tão cegos e tão atentos. Outras vezes manda-nos sopros de ternura. Quase que nos hidrata os sentidos e os esforços . Mas sempre quer nomes, ilusões, equilibrios e máscaras
de todas as cores. Sorrisos de todas as alegrias. Choros de todas as tristezas. E tudo isto lhes é dado até a corda se partir. Até o corpo entrar em revolução. Golpe de estado que numa América Latina dum corpo sem fim.

Ficamo-nos com os aplausos . E perdoamos. E sentamo-nos numa sala como esta ou outra qualquer, com estes nomes ou outros quaisquer. E adormecemos com vida para contar. Senta-te também,Nnanna, ainda bem que vieste, que horas são? o almoço está quase pronto, ali, ao virar da esquina, num bailarino perto de ti.

The show must go on! Ponto de exclamação, imperativo em qualquer língua

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

"Silencio, no hay banda."


" O silencio não tem limites, os limites são impostos pela palavra."
Não gosto de elogios fúnebres. São, às vezes, a ante-cãmara para o esquecimento, outras vezes servem para lavar as consciências do que se foi esquecendo.
Mas ele era a Arte do corpo, mimo e pantomimo, criou Bip, a figura que passeava o cão imaginário na rua, a que oferecia flores a uma Columbina altiva e, por vezes condescendente na tristeza dos amores. Pelos seus gestos adivinhava-se o dispor da dama, num palco forrado de preto. Arlequin adorador de fantasmas.

Uma das Artes da minha paixão. Que nasceu na Ásia e só no sec.XVI, em Itália, tomou o nome da comedia dell´arte: Pierrot, Columbina e Arlequin, máscaras de silêncio. Em Inglaterra desenvolveu-se esta forma "simples" de representar o mundo, diz-se hoje que é uma forma de teatro visual. Pantomima. Falar do mundo com gestos, movimentos,expressões.

Ele, Marcel Marceau, vivia fascinado pelo vagabundo Charlot. Pelo triste e expressivo Buster Keaton, pelo cinema mudo. Aquele em que cada fibra do corpo conta uma história, em que cada músculo da cara denuncia um sentimento. A face é uma tela em que cada espectador vê os deus desaires, amores, alegrias com muita...surpresa. Falam as sobrancelhas, essa parte tão esquecida. A testa deixa de ser a janela métrica da inteligência, passa a ser uma janela de emoções. Ele assim foi descobrindo, lá na escola de Sarah Bernard. Desde pequeno que, com gestos, imitava pássaros, árvores, ondas e tudo o que do movimento faz vida. Dentro e fora do corpo. Como disse um dia num workshop em Madrid, é preciso levar a Arte ao essencial. E os bailarinos, primos muito estreitos dos mimos, têm que escolher: ou a palavra ou a exclusividade do corpo. Diz-me a evolução que pode não ser bem assim, mas era a opinião dele. O primado do corpo e os seus segredos.

Mas, durante dois dias, aprendemos a olhar melhor, observando-lhe o corpo magro sem as máscaras brancas. Aprendemos-lhe a dificuldade dos gestos aparentemente simples. As mãos, o poder das mãos em que cada dedo é personagem autónoma na liça. A capacidade de desarticular o corpo parado projectando a ilusão do movimento.

E é preciso orientar o rosto para os segredos da alma.

E era rigoroso a aspirar o que sentia do mundo. E era leve mesmo no transpirar da tragédia. A que pela vida lhe foi passando, como a todos os palaços tristes.


Agora parece dizer, olhem acabou...já não tenho corpo

porque se gastou como já estava gasto, deformado mas tão talentoso, em Madrid, há quatro anos. Parecia um corpo arrependido.

Foi, não sei para onde, com olhos de todas as idades pôr um dedo em frente à boca, levantar as sobrancelhas desenhadas na testa e com o corpo tombado para a frente mimar a vida, em silêncio, face ao sorriso dos deuses intemporais.

Pardon, Madames et Monsieurs je ne suis qu´un pauvre clown. Au revoir.


Os meus cumprimentos à sua amiga Edith Piaf. Bravo,bravo...

e já agora, quem lhe quiser ver os filhos em Lisboa, pode passar pela Rua Augusta. De vez enquando poisam por lá, de cesto para moedas, ao fundo do corpo. Em eterno ensaio.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

21 de Setembro


Começa hoje o Outono. Uma estação que não se senta. Anda de um lado para o outro entre a dor e o prazer, entre o nascimento e a morte, entre a luz enternecedora dos dias e a precoce escuridão das noites.

O outono deu-me corpo e veste-me a alma. Embala-a em colcha de feltro da cor pastel que veste a natureza deste lado norte do mundo. Identifica-se com a temperatura recolhida mandada pelo tombar do sol. O silêncio torna-se mais aveludado na germinação daquilo que vou tentando criar baseada no que já fui e que a memória não deixa arrefecer. Foi sempre no Outono que a vida me instalou em trampolim para o que não esperava.





Para outras almas o Outono vem acompanhado duma solidão mais exposta. No recolher dos dias as esperas e os súplicios tornam a dor mais aguda. As luzes na janela do vizinho da frente têm sempre mais companhia. Pensa-se neles com tendo a alma mais amparada. Às vezes é mentira. Mas é fácil invejar o que se imagina.

No Outono o corpo torna-se mais intimo, mais protegido, mais aberto à ternura com amplas doses até de inocência. Tem mais aconchego nas palavras sussurradas debaixo de cobertores cúmplices. As mãos ficam mais sedentas de afagos sem haver justificação necessária para um amor sabido. Cobrem-se os ombros de mantas aos primeiros sinais de frio.

Para outros corpos é tempo de gritar ausências, pele exposta ao vazio e à solidão. É uma urgência indefinida que os massacra, uma saudade engolida, uma fome que tortura. Tanto gritam que atingem patamares em que já não ouvem o próprio grito. Vão para a cama com a pressa que se faça dia. O dia que há-de pôr todas as máscaras.Que escondem corpos não complementados.



Quanto a mim, sinto, confesso, nostalgia na memória dos olhos. Nostalgia de parques imensos carregados de cores quentes. Os avermelhados e ocres das folhas caídas e do imenso som do pisar nelas. As luzes, aos milhares, em arranha-céus, reflectida nos lagos. Dos casacões quase uterinos. De chegar à janela e a ver sublinhada com os primeiros flocos de neve. Nem sequer me apetece lembrar dos lados feios, porcos e maus.Só dos bons, aqueles que inflamam e enchem de mil tonalidades a forma do coração.



E é assim que mais um outono começa. Fruto maduro e vadio que vai andando pelo tempo. O que dele ficar será breve, Passará. Como passaram outros outonos escondidos entre lágrimas e risos, entre amores e desamores, dores e prazeres, repousos e cansaços. Até que um último suspiro lhe leve a vida para o mar.


quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Old Cousin Alice

Não tenho fotografia dela aqui mas poderia ser esta:






Se fosse viva faria hoje anos. Assim faz na mesma. Nasceu em Londres filha de pai português diplomata e mãe inglesa. Nas imagens desbotadas que vi o pai era parecido com Bismarck e a mãe era desmaianda iminente ( não sei se com i ou com e). De tal senhora teve duas filhas mas como era propenso à viuvez de posteriores casamentos teve mais uma filha de mãe espanhola, outra de mãe suiça e um filho de mãe portuguesa, pelo menos que se saiba. Também houve francesas lá para os lados do Moulin Rouge. Dado o óbito maternal veio viver para Lisboa com a irmã inglesa. Disso não me lembro porque nem os meus pais sonhavam nascer.

Era monárquica convicta, daquelas que achavam que os reis têm mais deveres que privilégios. Na Segunda Guerra Mundial partiu para Londres como enfermeira de destroços humanos. Ficou viciada neles, sobretudo nos bombardeamentos que afligem as almas. Voltou para Lisboa e instalou-se no prédio atrás da praça de touros que agora tem um hotel árabe ao lado. Último andar. Foi importando os irmãos à medida que iam caindo mortes e divórcios.

Um dia, dona de um segredo não revelado, foi para Toronto. Voltou anos mais tarde e sem aviso. E foi com espanto de esfregar olhos que se depararam com uma mulher pequena de pele branca de leite e olhos azuis desta vez com cabelo cortado à garçonne, fato de calças e casaco cinzento,sapatos de atacadores e eterno cigarro na boca. Dizem que envelhecida. Nunca mais largou tal corte nem vestimenta. Consta que todos os dias esperava o correio com ansiedade e todos os dias chorava para dentro dos olhos a sua ausência.

Agora a minha memória já começa a acordar. A casa era enorme, com corredor imenso. Alice deixáva-nos andar de triciclo nele e não raras vezes repreendia os pais que punham os filhos de castigo na cozinha. Estão na idade de brincar. Era em privado mas nenhuma das crianças era surda. Servia também de mediadora de paz entre os irmãos. Desculpava a irmã inglesa que vivia em surdina envenenada pelo seu próprio silêncio; justificava os ataques de paixão semanais da irmã espanhola por tudo quanto era toureiro e forcado; protegia a irmã suiça da sua mania de lavar as mãos quinze vezes regando-as com alcool a seguir e finalmente chamava o irmão ao escritório, supôe-se que para repreenção, porque o dito à medida que envelhecia cada vez tornava pública a paixão por mulheres sucessivamente mais novas. Se fosse vivo arrisco a dizer que a última seria em forma de embrião.

Toda a gente gostava dela. Toda a gente lhe fazia confidências. De toda a gente guardava os segredos. Dizia que, fossem ricos ou pobres, empregados ou patrões, literatos ou analfabetos, todos os segredos tinham o mesmo valor. Eram secretos. Também guardou alguns meus e de mão no ombro me deu conselhos, nomeadamente o de partir em direcção à distãncia.

E quando parti toda aquela gente era muito, muito velha. Soube depois que um dia ela recebeu uma carta do Canada. Fechou-se com ela no escritório. Durante um dia inteiro. Na manhã seguinte pegou-lhe fogo no fogão e pela primeira vez chorou em frente de terceiros. Sentou-se à janela grande de olhos ao longe e gato ao colo. Só a minha mãe e uma prima lhe conseguiam dar de comer. E assim morreu aos noventa e sete anos. No funeral estiveram presentes centenas de pessoas que ninguém conhecia, de todas as classes sociais. Acompanharam a pé, da Praça de Londres ao Alto de S.João uma caixa selada de segredos e alívios.

Carríssima Emma Larbos, nós que gostamos de segredos e das causas deles, não lhe parece que seria qualquer coisa deste género? Cheia de espinhos?


É que ninguém sabe.

Parabéns à sua memória, mesmo que reduzida ao pó que faz a terra.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

o silêncio dos segredos



Não sei se o mar a ofereceu se se esqueceu dela quando entornou as vagas para o outro lado do mundo. Mas ficou ali à minha frente, junto aos pés, deitada, enorme e solta na areia , acompanhada de outras reminescências de um mar selvagem.

Peguei-lhe ontem já noite escura, enquanto bebia o chá de jasmim e ouvia o Bernardo Sassetti, que tem piano de notas doces como gotas de água em chão de astro lacrimoso. Peguei-lhe de mansinho, tomei-lhe a forma perfeita na palma, transferia-a de uma mão para a outra, passei a ponta dos dedos pelas estrias, vi-lhe o vazio na transparência. Tive o impulso de a abrir com o canivete. Mas não cometi tal indiscrição. Lembrei-me da lenda escocesa, da velha bruxa ruiva que tinha uma caixa fechada. Quem a violasse soltaria os segredos e começaria a guerra entre os clãs; lembrei-me do conto infantil judaico que ensina os meninos a guardarem os segredos alheios como pérolas de valor sem fim, numa caixa, dentro do coração; lembrei-me da old cousin Alice - de que um dia hei-de falar - que me disse do alto da sua experiência e sabedoria que uma pessoa é tanto mais rica quanto maior forem os segredos sem julgamento nem extravio que guardar dentro do peito, e, finalmente lembrei-me da caixa de Pandora. Se a abrisse sei lá quantas maldades se espalhariam pelo mundo, podia-lhe até fugir o fundo da esperança. Sei lá...

Por isso limitei-me a colocá-la num suporte sem a ferir. Uma questão de respeito pela memória dela e da água, fonte de silêncios preciosos.


Transportei-a para a beira da cama, deitei-me, agora já ao som da lavagem da terra

Ou é impressão minha ou me segredou nos sonhos rosas e histórias de encantar. Lá dos confins dos imensos segredos por revelar.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

duende ao virar da esquina


Pertence ao reino da noite. É cafe-cantante. Fica na volta da esquina. Começa a encher por volta das vinte e três.

Entramos e a dona, Consuelo, abre os braços . Gába-nos o aspecto bronzeado. Porque agora não estamos amarillo-pollo del hiper, (amarelo-frango do hipermercado). Sim, porque ela diz que os frangos lá da terra dela, Jaen, mesmo mortos e depenados têm algum viço. Consuelo é toda ela roliça, cabelo apanhado, rosa no decote profundo e justo.Da simbologia das cores e flores falarei noutra altura. No meio do peito luzem três medalhas com três santinhas diferentes. Cada uma com a sua especialidade. Mas santo é santo, todos eles abarcam a vida terrestre. Diz ela que é uma mulher previdente. Se alguma delas estiver distraída a protecções e pedidos, pois que lá estão as outras duas. Alguma delas há-de ouvir.

O fumo começa a nublar o ambiente. Consuelo diz que a inspira e que não há puñetero gobierno que impeça o fumo de frequentar o seu espaço. Os espanhóis são naturalmente desobedientes.

Senta-se à mesa a Mercedes, amiga da Mar. Diz que estava em casa e lhe deram ganas. É professora de história e está a fazer especialidade na Baixa Idade Média - onde é que eu já ouvi isto?- e é bailaora de flamenco quando lhe apetece. Quando o sangue lhe aquece os instintos. Em Lisboa gosta da Bica. É uma paixão. E foi de lá que apanhou um cachorrinho rafeiro sem dono. Chama-se Poeta, porque é melancólico e uiva como se cantasse fado. Falo-lhe no miúdo da Bica, o Fernando Farinha. Curiosa personagem.

E tudo se começa a animar. Sobem para o palco pequeno guitarristas reunidos pelas ganas.
Lentamente os que irão bailar mudam a expressão. Parecem bichos selvagens ansiosos pela abertura da jaula. E chega a vez da Mercedes. Muito direita a três-quartos, estende o braço e dedica o baile à portuguesa de Lisboa. Eu digo que parece o Mao Tze Tung e levo, por baixo da mesa, um pontapé histórico. E começa, animal ferido no meio da selva de amores traídos. Castiga o corpo quase demente.





Começa o jaleo, traduzindo, palmas e exclamações .

Depois regressa à mesa. Suada, com sensualidade felina. Bebe de uma vez só um copo de sangria. E bate com ele no tampo da mesa. O sangue demora a esfriar. Para acalmar uma senhora de provecta idade canta a palo seco, à capella. Segue-se intervalo para o gazpacho com gelo em tijelas de barro, como Dios manda e umas tapas. Nem as ventoínhas coloniais de tecto arrefecem o calor.Um americano pede à Mercedes que case com ela. Faz o relatório das posses no Texas. Ela diz-lhe que por el..........., a la ............madre e por fim a.........( aprendi esta forma com Mi C. lá no comentário). Ele não percebe mas sorri na ingenuidade da bebedeira.Sim que ali não é nenhum putíclub.

O duende, sentimento indefinido, contagioso e mágico com origem, pensa-se nos rituais a Dionísio, já está instalado. E lá sobe outro bailaor, Lozano, violinista numa orquestra que anteriormente já me tinha explicado o sistema de afinação da guitarra flamenca, sistema árabe, coisa que não fixei a não ser que é parecido com o alaúde. Toda aquela loucura espontãnea adormece a aprendizagem. Fico-me pelo sentido e imediato.


Dedica o baile a alguem doente e, do alto dos tacões, transpira a dor de uma perda, de um amigo, sangrento como ele, que partiu para terras distantes:

El barco se hace pequeño quando se va en el mar...../ a la hora de partir me duele el alma....quando un amigo se va....

chora com o torcer do corpo, calca a tristeza, mais uma sensualidade desbragada sem tento nos nervos e

já são seis da manhã. A adrenalina colectiva esgotada pede um chocolate quente com uma rosquilla no café ao lado. Despedimo-nos. Até Lisboa , ali para os lados da Bica com o Tejo ao fundo.

Vejo no duche que tenho uma marca vermelha na perna. É para aprender. Válha-me Santa Guadalupe ou outra qualquer que esteja desperta áquela hora.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

"Mirthless Martha"




Viveu a vida segundo um lema contido numa canção dos índios Navajo:

"A beleza está à minha frente, a beleza está à minha direita, a beleza está à minha esquerda.Eu ando dentro da beleza. Eu sou a beleza."

Inspirou-se aliás em ritos e dizeres tribais, aqueles em que o corpo e a alma estavam ligados a impulsos da natureza. Sem passar pela excessiva intelectualização. Acreditava, como os mitos islandeses, na força do destino trágico dos criadores: é preciso ter dúvidas, ansiedades, solidão e vulnerabilidade para que a obra de Arte nasça. Charlie Chaplin definiu-a como corpo de tragédia. E a tragédia, aliada à mitologia grega, foi-lhe chão de voo. Utilizava amiúde a palavra penitência.

Teve tudo isso. É considerada o Picasso da dança.

Não vou falar dos aspectos técnicos, inovadores. Vou só dizer que pensava que em arte nada se ensina, muito menos na dança. Não. O que é preciso é que cada um descubra em si a sua própria linguagem olhando para o seu mais profundo interior. Desafiando-se. Sem medo do que vai encontrar. Parindo, como disse um crítico, cubos. Sem o conforto das arestas suavizadas. Até aos limites. Quem por ela passou, nem que fosse por pouco tempo, sabe que neste rasgar se abriam portas, janelas, universos. A liberdade de ser. Gostava de bailarinos com o seu quê de animal revolto. Aqui, Meu Anjo Nnanna, estão duas das tuas bailarinas, a exorcisarem as feridas que tinham dentro:

"O movimento nunca mente", disse o pai. Ela repetiu-o até à exaustão. Podem-se fingir sorrisos e lágrimas. Mas o gesto e os movimentos de cada um denunciam a mentira. E mais dizia que já se nascia bailarino. Recusou alunos ricos que dançavam mas não sabiam falar com o corpo.

Não se lhe podia ignorar a força. Era teatral. Não me batam muito se disser que fazia lembrar a Gloria Swanson do "Crepusculos dos Deuses". Mas intimidadava. Com o ar distante de deus sentenciador de futuros. Tinha um mau génio célebre. Adorava brigas. Gostava de se gabar disso. Aliás, era estado permanente e agudo quando criava. Ela própria reconhecia que era mal-educada, desagradável. Pendurava um roupão vermelho à porta do estúdio para evitar espionagens e interrupções. Era ela e a Arte. Em Roma deu um grande espectáculo de fúria. Nunca se esqueceu dos apupos. Mas dançou. E venceu.


Nunca gostou de mulheres. Dizia que se sentia bem no mundo dos homens. Que os homens a adoravam. Homens com aquilo a que se costuma chamar "muito homem". Em corpo e atitude. Teve, aliás, desprezos de estimação: Georgia O´Keeffe, por lhe ter recusado um quadro como cenário, Greta Garbo, por ter propensões lésbicas e sobretudo, convelhamos, por ser diva misteriosa. Não gostava da concorrência. Só houve uma por quem chamou até morrer: Lizzie, a ama irlandesa que lhe incutiu o espectáculo nas veias. Brincavam aos teatros improvisados. Outras houve que a tentaram ajudar na época do ocaso, quando a falência económica, a depressão, a artrite e o alcool a transformaram num trapo autoritário: Elizabeth Taylor, Liza Minelli, Betty Ford e Madona, uma das suas alunas preferidas. Muitas personalidades lhe deram a mão ao longo da vida. A algumas fez o favor de morder. Sejamos justos.

Dizia que era devota do sexo. Diz-se até (não estava lá para ver) que mandava subir ao quarto empregados nos hóteis por onde ia passando. Casou com um bailarino. Erik Hawkins. Recusou ter filhos. Dizia que a dança e a maternidade eram incompatíveis. Adorou quando chamáram à sua escola em Nova Iorque " the house of pelvic truth". Com determinismo dizia, que as bailarinas só eram grandes quando os movimentos partiam da vagina. Ignorou algumas cuja dança partia de outros sítios.

Por ironia do destino no fim da vida ligou-se a Ron Protas, 50 anos mais novo. Homossexual. A senhora braço-direito, como diria Andy Warhol. Fê-lo herdeiro e director da companhia. Desastre total. Foi preciso que Jackie Onassis, Vanessa Redgrave, Gregory Peck (também ex aluno) e muitos outros viessem em defesa. Nureyev, Fonteyn e Barishikov dançaram com a companhia para lhe salvar a honra. Seguiram-se processos judiciais sem fim. Lavou-se roupa suja e por sujar na imprensa. Mas ela morreu ou de glória desfeita ou de passaporte para a divindade. No meio é que não. "Antes raínha por um dia do que duquesa toda a vida", lá disse a outra, a Luísa de Gusmão.


E com isto tudo vou ganhar o guiness do resumo. Falta falar da inovação nos cenários, do primado do movimento sobre a música, da ligação da literatura, das artes plásticas e da antropologia à dança. Tal mundo nunca mais foi o mesmo. Por o que me sugere é sempre:



extenso e sem fim. Lá, onde andará a revolucionar o sistema convicto dos santos incautos.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Ensaio Geral



Esta que tenho aqui à minha frente, com cruxificada cara de segunda feira, resolveu, assim, matar saudades de mim. E ainda há tão pouco tempo a ia visitar entre arrozais, marés e areias.


Disse-me que se lembrou do "Sr. do telejornal" da Carríssima Emma, que imaginou um Anjo Nnanniano sorridente em insurrecta Vespa encosta acima encosta abaixo, que sentiu com força o fatalismo negro do relógio da Passarinho de horas ao contrário como ela, lá do café silencioso no Frémitos, da investigadora de maneiras de aliviar sofrimentos que foi posta na rua e interrompe 4 anos de trabalhos sem horas, da professora que é amiga dela e ensinava os outros professores a entreter as horas mortas dos meninos, porque livros são viagens que não se cansam, a quem foi comunicado que o Estado não tem dinheiro para leituras, nem para pincéis ,nem para músicas nem para danças, e de mais outras coisas que se esforça por esquecer.

Não admira que acorde assim:




Coitadinha!

Eu olho para eles. Começam a chegar em Junho e vão-se embora em Setembro. Nascem desasados, já pesados e tristes.Cheios de medos, com maus deuses a sussurrarem-lhes ao ouvido ameaças de infernos e outras desditas de carbonizar autónomas vontades. Pelo menos a maior parte. Vivem a vida como um ensaio geral para o grande espectáculo da eternidade. Não vão os sonhos tece-las.

Passam um ano a pensar em mim e na minha morada. Chegam com ar de enfado e enfadados continuam. A fazer contas. Lembro-me daqueles homens que leêm o jornal silenciosos. Dos que seguem a rapariga escultural areal fora.Dá-lhes a fúria da perda abdominal. Outros olham para o longe com olhar perdido. As mulheres dão o yogurt aos filhos, massagam as costas, com saudades da eterna noite de núpcias, aos maridos.

Mas também há as que apanham pedrinhas e outros vestígios de inocência. Riem-se muito, dizem disparates, comem choco frito, bebem vinho branco em tascas de pescadores. Ficam no meu território até o sol adormecer, saboreiam o sal à meia-noite, de corpo nu.



Viram as costas aos deuses que lhes vestiram a roupa. Cada um vive com a pele que nasce. Dizem que assim ampliam os parcos sentidos, entre a liberdade e a escuridão. Depois dão pulos, batem os dentes e riem-se outra vez como se tivessem sido acabadas de nascer do ventre da água. Quase que lhes tenho ternura, pelo peso da gravidade que as condena. Bípedes algemadas à sobrevivência.

Depois partem. Vestem a roupa para entrar em cena. Penduram a leveza em cabides. Despedem-se do mar, de mim. Fazem-se à vida obrigatória. Resistem. Fazem promessas de voltar. Cá as espero, de olhos postos no horizonte alto. Até para o ano, que se faz tarde.


E que a espera não os endoide. Num qualquer dia. Ao nascer do sol.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Mi C.



Todos os dias, na longínqua Boston, ficava a olhar os patos no lago, a dar-lhes migalhas de pão americano.Eram grandes as saudades que tinha do farináceo de Madrid ,terra louca e vadia, onde nasceu filha de mãe catalã e de pai castelhano, figura militar e austera.

Conta a mãe que tinha falta de apetite e só a poder de música engolia as papas que tinham por fim remediar-lhe o corpo pequeno e franzino. Parece que por causa dos gestos melodiosos foi, aos seis anos, depositada numa escola de Ballet. Logo se tornou notada no jeito e aplicação.

Aos dezoito aninhos foi parar a Amesterdão, depois Londres, depois Nova Yorque,depois Boston e finalmente regressou a Madrid.

Tanta andança para ela que tem permanência de árvore sempre a ouvir o que a terra diz, sempre firme a medir os passos,mesmo quando os pés lhe trepam para as alturas de que conheceu o sabor sem a bulimia da glória fácil.




E foi em Boston que conheceu uma portuguesa que remexia pauzinhos em águas paradas.E foi lá que foram escolhidas para integrar uma parte da companhia vocacionada para a dança contemporãnea, às vezes experimental. Eram quase sempre escolhidas para fazer pas-de-deux. Muito sofreu a portuguesa, mais nova, com as exigências perfeccionistas dela. Os ataques espanhóis de mau génio. A portuguesa rendeu-se à evidência quando a viu dançar o Lago dos Cisnes na maior das perfeições, técnica clássica apuradíssima, ela que já era perita na técnica de Graham. Com toda o à vontade foi subtituir uma colega lesionada.

Vem isto a propósito de ser dama de achar que tudo se deve fazer com conhecimento das origens e causas das coisas, com trabalho e investigação. Àrvore com atenção ao estado das raízes. Por isso um dia em Madrid, numa recepção formal, vestido de gala, foi ter com um senhor e disse-lhe: ay dos classes de críticos: los que escriben y los que cagan palabras. Usted recibirá muy pronto el Nobel de la segunda.Buenas noches!

Dizia ela que a criatividade ficava por conta da loucura da portuguesa. Gentileza mentirosa a dela. Mas já em Madrid fizeram-se amigas com muitas viagens e histórias para contar. Um dia a portuguesa caiu e se não fosse o improviso aliado à força cumplice e solidária daquela mão que a agarrou e aos olhos que gritaram, tinha desmaiado logo ali. Mas continuou a dançar. Só desmaiou nos bastidores. Os bailarinos só mostram todas as dores em privado. Para o público reservam a perfeição ilusória.E até hoje,a portuguesa tem a sensação que, em dias azedos, a maldita da espanhola está lá a mostrar-lhe o caminho.Aparece de repente a amparar os cansaços.



E dançou até aos 41 anos cantares de amigo e amor, poetas cheios emoções , músicos de todas as épocas.A cara com que nasceu, carismática com duas características marcantes, permitiu-lhe usar todas as máscaras. Sempre a trabalhar com tanto afinco e ilusíon que não reparou num ser gorducho que, lhe ia mandando setas ao coração. Um dia o Cupido aborreceu-se, virou espanhol e cravou-lhe uma farpa tão grande que ela até hoje não foi capaz de arrancar. Anda com ela pendurada. Ao sabor do vento. É uma farpa de extremidade vagabunda.

Agora tem bailarinos e danças a cargo, decifra mapas de movimentos e amanhã, amanhã dia 7 vai começar uma nova fase da sua vida. O sentido da responsabilidade trá-la nervosa. Como em qualquer estreia que se preze.

À portuguesa, que é babada de orgulho, apetecia-lhe esticar braços e olhos para ir até lá dar-lhe um suave empurrão nas costas para ela entrar mais confiante naquele palco que nunca conheceu. Assim manda-lhe esta flor para que os dias lhe sorriam até às portas do infinito.



Vete a la mierda,cariño!


Hasta luego!

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Um violoncelo chamado Passarinho



Ainda a memória da carícia da água nos forra os dedos quando nos sentamos na sala, Madrid a sussurar o fim da tarde.

Pomos o concerto para violoncelo e orquestra em B menor,adagio ma non troppo, de Dvorak.

A orquestra está sentada ali. Vai falando,entretida.

O violoncelo, tímido, surge na porta. De repente reconheço-o. Gestos tímidos, quase lãnguidos. Corpo trágico e narrativo. Olhar triste como são quase sempre os olhos grandes. Mãos no rosto. Acorda de um pesadelo chamado Inês, conhecido como sonho. Tráz o cabelo solto. Acentua-lhe o movimento e o dramatismo.

Digo-lhe que é a Ana Lacerda feita som.

No evoluir surge uma flauta.É Mi C.,que não será mulher de som agudo mas, com tal versatilidade que sempre teve,terá todo o prazer de apoiar os revezes a que o violoncelo está sujeito.É um som, aqui, cordato.

E, ali no meio da sala, quando toda a orquestra surge com a violência dos metais, o violoncelo justifica-se em pontas, , tronco inclinado para a esquerda, braços ondulantes como ramos de uma árvore que aspiram à fuga. Uma Giselle em súplica.


Depois,mais à frente, senta-se num banco de jardim,mal-me-quer-bem-me -quer. Parece uma criança, um Passarinho a tentar agarrar,ou não deixar fugir,os sonhos arquitectados no amor.

Muito discretos os violinos ,quase nem se dá por eles, apoiam o monólogo do violoncelo em gestos circulares. São os meus braços, ali de cabeça baixa, sentada no sofá cor de pano crú.

O violoncelo dirige-se para o umbral da varanda, jardim suspenso. Até os metais se amainam face áquele som rasgado que vira, a cabeça para trás. A flauta brinca com as folhas da pequena buganvília. E, depois de mais um gesto de lamento, o violoncelo vai pelo chão da varanda, move-se arrastando-se, cabeça ora caída para trás ora para a frente, apoada num clarinete que me parece ser o Mano R.

Parece que desaparece na folhagem. Mas não. Olho para fora e vejo um avião brilhar,muito muito lá no alto, no céu onde o sol se despede quando na terra já o crepusculo se instalou.
É o violoncelo acompanhado de um rasto branco como uma linha. Parece-me a flauta.

Vão juntos porque quer uma quer outra hão-de ser visceralmente bailarinas mesmo para lá da eternidade.

"-En qué direccion se van?"

-pues al futuro..."

-qué tontorrona es mi Élis!"



E faz-se noite em Madrid. E em Lisboa. E em qualquer sítio onde as mãos se abraçam.
Seja qual fôr o nome da dança.
Ou a forma.
Ou o som.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

O cofre





Ligo a ignição e enquanto deixo vida para trás sento-me num quarto de reencontros por guardar.Abro o cofre.Morada de tesouros.


Embrulho aquele olhar para o longe do mar, em veludo para que não se magoe.Junto-lhe a sensação que guardei na mão ao passá-la pela testa ampla no profundo sono da siesta.Sei que é muralha de terreiro onde gaivotas desenham danças.E é profundo o sono:respiração tão pausada é sinal de sono integro e quem não gosta de ver tal sossego próximo, panaceia para os males do mundo.


Guardo também o conforto ortopédico da rebentação das ondas e os carimbos efémeros na areia branca.



E aquele sorriso de flamenco solto da minha "filha".Inverto-lhe os números de 41 para 14.O fim de tarde de sol bocejante tem esse efeito.E o mar bate-lhe palmas.


Não me posso esquecer daquela guerra de nuvens,mau génio em Agosto,com lanças de luz na noite a furar a superfície da água.


Vou buscar rolos e rolos da mais suave seda para envolver os enormes olhos da minha mãe quando lhe dou os parabéns.Não quero que aquele olhar se parta.São já 74 que mais parecem 47.Pele tão lisa e macia.Mas o tempo é isto:agora sou eu que a sento e parto a carne em pedacinhos e a autorizo a comer o semi-frio da sobremesa.Qualquer idade é própria para que uma migalha de amor se transforme num banquete orgíaco de afecto.


Depois tenho que guardar o riso afoito da Bicoca,actriz,que comunica que deu o marido e os filhos para adopção.Come de uma vez um Cadbury´s,dieta abandonada.A loucura do Moncho,o baile visceral da Sara,as histórias delirantes do Manuel,as gargalhadas da Lola,sem esquecer o choco frito,português,no estuário do rio,mar à porta em telhado de colmo,portadas azuis em paredes brancas,vista ferida de beleza simples.


Não quero guardar a ruga recente e triste quando digo"tengo que irme".Prefiro guardar o calor dos abraços, fogo de amores e amizades antigos,já nem sei o que é uma coisa e outra,aqueles que tatuam o coração.O cofre é grande.Nele cabe quem já chegou está e quem há-de vir.



Estou a chegar.Fecho o cofre e guardo a chave ao pescoço não a perca no esquecimento de existir.