quarta-feira, 21 de outubro de 2009

E este vai, de certa forma, em sequência de oposição geográfica ao anterior. Assim segue a prosa

Dos galos residentes na filigrana dos olhos

Aquela era casa de descanso, do corpo e da alma, por um período de três meses, para cada um que nela tivesse entrada.

Saía-se de manhã, com a sensação de mero átomo a circular na capital do mundo, voltava-se à noite, com consciência de elásticos feridos no interior do corpo e com conhecimento da alma própria, cada vez mais escancarada.

Cada arte tem o seu tempero de desmesura na aprendizagem.

Era e continua a ser, uma casa vitoriana, de tijolo vermelho. Cada quarto com duas camas e uma casa de banho acoplada. Nas traseiras, um jardim e uma linha férrea.

Fomos enviados para lá, em meio termo, entre o susto e o fascínio. E com uma certa arrogância de impermeabilidade ao destino que só a juventude dá.

Recebeu-nos uma senhora muito grande e obesa, de apetitosa cor de chocolate.

Com montanha russa na voz: como todas as mulheres do sul, cada sílaba arrastada salta de três em três oitavas sem modulação nem aviso.

Olhou para nós. Éramos três na fornada daquela manhã.

Tinha os olhos enormes. As córneas pareciam jóias em filigrana de vasos sanguíneos.
Pôs as mãos cintura e comentou-nos, maneando a cabeça assente na espécie de bóia que era o duplo queixo.
Pelo aspecto, éramos figuras de que Deus e o Bom Jesus se tinham cansado, deixando-nos à mercê dos vagares do diabo.
Mais tarde desenvolveria as apreciações, entre a fé e a lenda, de que nós e os outros, felizmente, já éramos só figurativo pretexto. Era a dita senhora, embora desbocada nas apreciações, um chocolate ternurento e maternal.

Então ali estávamos:

Uma espanhola com traços de águia, daquelas que, ainda antes do Tempo das Palavras, se tinha instalado nos penhascos, e ainda por lá andavam. Não tínhamos ouvido falar deles?


Aqueles montes de pedras secas que se tinham formado quando a melhor amiga do Diabo, a volúvel Lua, escondendo o sol durante três dias, tinha feito o Mississípi andar ao contrário, empurrando as férteis terras dadas pelo Senhor, para o norte e dando-lhes tal secura que nem as chuvas mandadas por Jesus durante sete dias as amoleceram?

Um cubano da sua cor, mas temperado com leite, com pele preparada pelo Sol, aquele astro que traz a luz forte e quente do amor de Jesus e que mora no Céu que é tão grande como o seu Pai Deus.

Também ele estava seduzido pelo Diabo, assim a rebolar a anca como as mulheres que fugiam da Luz nos bares onde se cantavam amores sem lei nas profundezas das Trevas!


E, finalmente eu, parecida com os gatos, traiçoeiros e fugitivos como filhos do Demónio que são, que andam escondidos pelas noites e sombras dos bosques, como almas sem poiso certo e com olhos de ver à noite. Muitas e tantas, as almas que tomaram corpo felino, depois de Jesus lhes ter descoberto a perfídia e a luxúria.


Porque a noite se fez para os errantes sem rumo nos sentimentos nem terra para sentir o andar. E quem perde o Sol e a Luz da terra viverá cento e vinte dias no meio de almas agrilhoadas num terreiro com fogo escuro, com rios amarelos e fedorentos como o enxofre.

Note-se que, ainda antes do Dilúvio, Deus tinha criado o sono, para evitar que os homens, caíssem nas tentações trazidas por toda a escuridão onde também moram as almas desobedientes das mulheres com ventres esfomeados e vadios.

Em jeito de parêntesis, digo que Mamma Sam´s, alcunha por que era conhecida, botava ciclicamente estes e outros discursos, mais para si do que para mais alguém, depois do jantar, sentada numa cadeira de baloiço enquanto bebia o seu whiskey e fumava os seus mata-ratos, com aquele semblante entre o pragmático e o resignado que é próprio dos que muito sofreram calados e arranjam mil e uma histórias exteriores para desabafarem o que não querem dizer.

Com olhos de hoje, diria que se via bem, que tinha perdido algum pedaço de si, algures, na viagem do seu Sul para o Norte.


Mamma Sam´s, ali, naquela imensa cidade de todas as cores, era aquilo que os negros radicais do Black Power chamavam depreciativamente de Oreo, em honra da bolacha de chocolate com recheio branco.

O tal cubano, por ser não uma, mas um pacote inteiro delas, teve a sina de ver o corpo espancado e a tão alma tão partida, que nem a cola do deus mais luminoso e ilustrado de qualquer fé, conseguiu tornar inteira.



Mamma tinha atitudes resolutas de espantosa universalidade..
Fiquem sabendo que o refeitório, além de um mapa do mundo terrestre, tinha uma parede cheia de relógios, onde se marcavam as horas das capitais de muitos países. Depois de lhe ter explicado, lembro-me, de manhã, onde ficava Portugal na vastidão do tal mapa, à noite do mesmo dia, com surpresa, inaugurei um novo relógio, tipo padrão nos descobrimentos, por baixo de uma placa onde se lia


Lisbon


Portugal

Tanto quanto sei, ainda funciona.

Mas, mais ou menos, findo este parêntesis, Mamma instalou-me num quarto já ocupado por uma alemã com aspecto larvar de inverno, a fazer lembrar as almas das senhoras brancas que, assassinadas por paixões inesperadas e ilícitas, se elevavam, em forma de vapor, nos pântanos, ao anoitecer.
Quanto a mim, quando a conheci, pareceu-me já a ter visto em qualquer lado:



Tal alemã cumpria aniversário no mesmo dia que eu e no mesmo dia fomos acordadas pelas cinco e meia da manhã.

Luzes acesas, com olhos encadeados e mente confusa, vimos a robusta Mamma à porta:

que dia era aquele? Que levantássemos os nossos “rabos escanzelados da cama”, que o Galo, que é a voz que Jesus encontrou na terra para anunciar a Graça da claridade, já tinha cantado, lá fora no jardim.
Seguimo-la, obedientes, para a tal sala-refeitório e talvez pelo sono e através do seu modo de andar, comprovei que a força gravitacional da terra existia.

Tínhamos à espera uma travessa de frango frito com maçaroca frita de milho, mais tomate verde frito, e para finalizar, rodelas de maça frita com mel.

Porque, primeiro, no dia de qualquer aniversário, qualquer cristão, judeu, muçulmano, hindu e as demais versões de Good Lord que existirem, deve logo cedo festejar a luz do dia, que é prova provada da existência e celebração da vida. Quem arrastar a noite pela manhã dentro, correrá o risco de povoar a alma de escuridão.



Depois, tínhamos tido a infelicidade de nascer com aroma de Outono, a estação de todas as mortes e maus hálitos da terra, ou seja, quando o Diabo se prepara para sair dos confins, como tinha feito quando o Mississípi tinha engolido gentes e árvores criando os pântanos cheios de animais com almas de gente perversa dentro.


Comêssemos o frango e ele nos cantaria no sangue, dando-nos força na vontade.

E o tomate, que é veneno doseado, mataria os males da inveja, da cobiça e dos arredores de todos os maus sentimentos.
Com o milho, nunca levantaríamos os pés da sabedoria do chão.

Com o mel agarrado à maçã, seríamos doces e fonte do desejo do nosso homem além de tão trabalhadoras como as abelhas.



Quando me despedi e ela me deu um abraço, ficou-me na memória do corpo, o contacto com um suave e acolhedor colchão de simples bondade.

E a vaga certeza que nem a Lua nem o Sol, nem Deus nem o Diabo, são criaturas de enredo certo.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

E tal como prometido no anterior, segue a

História de uma belíssima Senhora lunar chamada Outono.

Havia e ainda existe uma casa cheia de muitos corpos e falas que se ajeitavam para se compreenderem umas às outras, já que músculos, ossos, nervos e ouvidos não precisavam de palavras para se entenderem.

Neste remoinho de mundo há casas com arquitecturas assim.

Nessa casa havia o hábito de, ao fim do dia, quando os corpos suados partiam para outras casas de linguagem mais fixa, se anunciar quem fazia anos de nascido no dia seguinte.

Era uma forma de afastar a solidão, chamada Longe, que cada um trazia sentada no colo.

Nesse dia seguinte, estando todos avisados, cantavam-se e davam-se parabéns em festa a fingir de espontânea.

Quando chegou o meu dia, um rapaz muito alto, de longo cabelo negro, olhos escuros como um segredo e mãos tão calmas quanto grandes, não usou palavras mas, muito sério e de boca de desenho hermético, pegou-me ao colo, veio à longa varanda envidraçada e, poderoso, elevou-me pelas alturas no ar fresco da manhã.

Ninguém se riu porque nos mundos de muitas falas é sempre prudente e respeitoso não se rir dos sagrados pensamentos dos outros. Os deuses não têm hierarquia.

Mais tarde, sentado de pernas cruzadas, num parque onde as cores das folhas, morrendo, se tornavam mais vivas e deslumbrantes,



o rapaz contou-me que eu, ao nascer naquele dia que os meus deuses através do embaixador Papa Gregório, chamavam de 21 de Setembro, início de Outono, era filha da Lua, a senhora astral com uma majestade que ultrapassa em muito o estatuto serviçal de mero satélite e que em Janeiro, casa, dançando, com um Corvo e com um Lobo, tendo como madrinhas as rãs, as cigarras e como padrinhos os Ursos.


Note-se que os deuses da terra do rapaz moram à vista de toda a gente no Universo e na Terra e comportam-se como pessoas. Têm defeitos e qualidades e não são considerados inimputáveis nos seus actos.

Assim, o Sol é um senhor que, além de ter desavenças e intrigas com a Lua, se enfurece no verão e manda raios que castigam a Mãe Terra e os seus filhos.

Torna-se canibal e com a sua boca de fogo seca as pastagens, diminui rios e riachos, aliando-se à esterilidade das pedras. É criatura instável que oscila entre a generosidade e o mau génio.

Já agora convém ainda dizer que este sol forte e musculado, e desde o início do Tempo, não gosta das criaturas terrestres bípedes ou quadrúpedes porque não o olham nos olhos.

E, tem ciúmes da sorridente Lua com quem todos conversam de olhos nos olhos sem pudor algum.

Por alturas do equinócio de Setembro a Lua, já farta do temperamento do Sol, decide transformar o tempo numa Senhora porque são as Senhoras como ela que geram, no conforto interior do ventre liquido, a vida.

A Outono, de nome próprio, e Terra de apelido é um imenso útero onde, de forma silenciosa e escondida, se germinam os frutos que o corpo e a alma hão-de comer.

Os deuses da terra do rapaz não gostam de almas famintas de beleza e por isso consideram a Arte o pão do espírito, ou seja, um bem essencial.

As mulheres, e outros seres femininos nascidos no dia do Seu retorno ao poder sobre todas as coisas, são dela fruto e suas embaixadoras credenciadas.



Se os seus cabelos forem negros, têm paternidade no Corvo.

Se tiverem olhos claros, são filhas do rei da noite, o Lobo.
Hão-de gastar a vida em criações nocturnas. Hão-de ser vagabundas sem luz descarada.



Hão-de adormecer pela manhã. Hão-de acordar os sentidos quando a Mãe as chama.

Como os Lobos, hão-de contar os segredos dos sonhos dos que dormem.


A Lua, no equinócio setembrino, senta-se a fumar cachimbo na beira dos rios.

Do fumo que sai da sua boca, formam-se as nuvens.
A Lua pega nas rãs e manda-as para o firmamento para que tenham como repasto pedaços de Sol.
Este, triste e vencido pela invasão, vai-se tombando, pouca força tendo para se elevar até ao centro do céu. Dormirá, então, mais, enquanto regenera a sua luz. Voltará em Março, aproveitando a necessidade de descanso da Lua.


Mas neste início de falência os seus gritos solares e aflitos têm o som de trovões.
As lascas por ele perdidas, vemo-las em forma de relâmpagos.
A chuva não é mais que sumo de nuvem espremido pelos saltos brincalhões das tais rãs bulimicas.
E este sumo é o sémen da Terra que é irmã das mãos e dos pés de todos os animais.



No equinócio os homens pintam a cara de vermelho em reverência à cor do sangue mensal que escorre do centro criativo das mulheres.

As mulheres oferecem-lhes pequenos pedaços de tecido manchado com esse sangue que eles pendurarão ao peito, junto ao coração, quando forem para a guerra.
Qualquer guerra, com qualquer arma.

E cavam buracos nos terrenos que são as vulvas da Terra.



Neles deitam as folhas e os animais mortos. A Senhora Outono transformará o húmus, a morte, em vida. Aqueles deuses não gostam de desperdiçar e, para eles, a morte e a vida andam de mão dadas. Não existe uma sem a naturalidade da outra. A morte é um estado e não uma perda vestida de dor. Cada planta que nasça, tem em si um bocadinho da alma do corpo que a terra comeu. Chamam a tudo Existência.



Até ao nosso 7 de Outubro, pinta-se, improvisam-se poemas, contam-se histórias e sobretudo dança-se, dança-se muito em volta das tais aberturas feitas na terra. Há quem seja Lua, outros Lobo, outros Corvo ou Urso ou Coiote ou Bufalo.
Celebra-se a imortalidade circular dos ciclos.

Depois são as mulheres que trabalharão a terra fertilizada pela masculina água.


Que tecem os tecidos com mãos térreas. Que com o suco das ervas mortas, depois do labor do almofariz, pintam madeiras e vasos.
São elas que, no Outono, conhecem as vísceras da maternidade de todos os ramos.

O rapaz contou mais histórias da Senhora Outono, dos seus prodígios e parentescos, das suas covas e vidas de mundo escondido, ilustrando-as com gestos lentos através das suas mãos em que cada dedo parecia uma personagem de narração.



Encontrei-o anos mais tarde e ele lembrou-se de me chamar Moon Lady.

Tal como eu não me esqueci que nós, naquelas terras caladas e como a Senhora Outono, somos senhoras sábias do princípio e do fim de todos os deuses.