sexta-feira, 21 de maio de 2010

Este surge porque já estou farta do anterior, porque me apetece novamente intervalo no que tenho que fazer e me está a dar sono, porque ontem à noite, depois do segundo duche regulamentar do dia, enverguei vestimenta antiga de finíssima flanela branca que me cobre até aos pés,

própria para andar a cirandar entre casa e jardim, e pelo que mais há-de vir, aqui segue

Histórias à volta da cor sempre grávida

Diz-se que o branco, não sendo cor alguma, está grávido de todas elas.
Espantaram-se pintores antigos, intrigaram-se sábios e alquimistas, como um raio de luz branca, casando e perfurando cristais ou nuvens, paria as sete cores do arco-íris.
Também é cor de personalidade influenciável: é a que mais reflecte as que lhe estão ao pé e a circundam. Consta, por isso que é impossível vê-la absolutamente nua.

Que é a cor do frio (frigorífico e arcas congeladoras),
e da higiene bactericida, ao contrário do mal amado amarelo,( máquinas de lavar, roupa interior vulgar e sem segundas intenções, pastas de dentes, banheiras,

comprimidos, batas e hospitais sem dedo de arquitecto pós moderno),
da pureza, da castidade ( eclesiásticos, noivas e crianças baptizandas só com o pecado original), já toda a gente está farta de saber.

E, já agora, é dado estatístico, que os carros brancos sofrem e são sofridos de menos acidentes, embora não esteja provada a imunidade a multas, sobretudo em tempos de crise financeira dos países.

E é também a cor da aristocracia, pelo menos até ao séc. XIX. Aqui e a partir daqui, o colarinho branco, por exemplo, ficou mais ligado, nos países industrializados, à burguesia. Em Inglaterra e derivados, teve até nomenclatura para crime, opondo-se à delinquência azul, própria das gangas obreiras.

Em termos de cor de pele, e olhando para a história de Arte, a brancura é sempre sinal de elevação, quer social quer espiritual. E, a alvura do branco seio, sempre foi mote de suspiros vários.
Porque as pedras branquíssimas são de grande raridade, em alguns sítios de Inglaterra, é uso, sobretudo na aristocracia ou classes a ela aparentadas, colocar uma junto a quem nasce.

Deverá ela acompanhar quem se der ao trabalho de ir sempre vivendo e aproveitando o melhor que a vida dá.
É, tal talismã, símbolo da simplicidade, da contínua aprendizagem com humildade, da sabedoria, como o são os cabelos brancos dos velhos, ou …dos precoces.

Se em Portugal alguém bem sucedido, nasceu com o rabinho voltado para a Lua, nas terras Elizabethinianas sugere-se que a sorte ou o mérito, se deram a se ter nascido já com uma pedra branca na mão.
Diz a lenda que Elizabeth I se vestiu de branco quando tomou as rédeas do reino, inaugurando uma tradição em actos solenes,

e que, em manifestação de amor escondido, ofereceu a John Drake a pedra branca que o pirata sempre guardou junto ao coração.
Consta que a Rainha Victoria guardava junto à sua, a do seu muito amado Albert.

Saltando para o séc. XX, Coco Chanel sempre ligou simplicidade, no trajar, à mais requintada elegância e ainda hoje com um vestido preto e um colar de pérolas, qualquer dama não se sentirá deslocada no mais selecto evento.

Para os cavalheiros, funciona o fato preto, com ou sem asas de grilo e sobretudo a camisa branca, símbolo de idoneidade. De facto, quase não há político que vá a entrevista televisiva, com camisa de outra cor.
E será abençoada a paixão de corpo e alma, quando diante dos amantes, passar uma borboleta em tons de branco.

Encomende-se o próprio caixão, se, por entre as árvores, pastar um cavalo branco.


Por outro lado, também é cor da loucura mas… sábia.

É frequente verem-se errando pelos bosques, ou mesmo nas vielas britânicas e com longas vestes brancas, os loucos que, falando metáforas hiperbólicas sem fim, desvendam os segredos do outro lado, irracional, mas certo, do mundo.
É a cor da inquietação lúcida, seja ela ou não de filosofia credenciada.
Às vezes, estes seres transformam-se em gatos brancos. Gatos que riem com os seus olhos de desvendar a escuridão.

São eles a voz do que não se quer ouvir, os olhos do que se quer esconder.

(Quem andar por terras britãnicas, pode encontrar imagens destas à porta das casas mais antigas. Ou nos cemitérios. Ou nos muros. Ou junto aos rios. Também as acharão em alguns lugares dos EUA., em forma imitada)

Podem fazer-se acompanhar de fantasmas e donzelas todos trajados em imaculada brancura. Porque tanto uns como outros têm a leveza da irrealidade. Não estão sujeitos à força da gravidade das outras cores do Mundo.


( Não é por acaso que os Pré Rafaelitas, tão ingleses de medula e revoltados com as modernices racionais da Revolução Industrial, vestiam, com frequência, os seus lânguidos, angustiados e melancólicos modelos, de branco).


Surgem-nos estas brancas criaturas para nos levar para o seu reino, para nos segredar cuidados que não temos, fortunas que precisamos. Como os brancos anjos mono ou politeístas, sagrados ou profanos.

Dormirá com paz e em paz, morrerá sem culpas que atormentem, quem viver em Inglaterra e, ao por do sol, vir voar no céu um pássaro branco.

Tem a pessoa a alma liberta, sem lama no coração.

Como irei, brevemente, ao Massachussetts, trago os pensamentos já em viagem como as gaivotas, e comecei a ler este fantástico livro em versão fac-simile (que aliás, convenhamos, combina com o cenário e com a tal veste que ontem me cobria),
tenho-me lembrado de um índio que conheci, parecido com este senhor em expressão,


embora mais velho e de geometria ainda mais quadrilátera no contorno da face e olhos tão mais pequenos que pareciam emprestados de um qualquer animal subterrâneo que deles não precisasse.

Embora fizesse parte de comitiva, recusava-se a dormir dentro de abrigos chamados casas ou hotéis. Soltava o cabelo, enrolava-se numa manta e deitava-se em alpendres ou de outra qualquer cobertura. Como qualquer escocês em mito selvagem.
E dormia com um pano branco, que tratava com mãos grandes transformadas em delicado apetrecho de seda, sob a cabeça.

Usava-o, como todos os da sua tribo do Norte, para recolher os sonhos. E caçar os segredos que as portas fechadas da vigília não revelam. Todos os sonhos. Todos os segredos.
Ainda o dia mal tinha nascido, levantava-se, dobrava o pano num ritual de calma beleza e guardava-o numa bolsa pendurada num fio, ao pescoço.
Disse um dia, que os sonhos são demasiados preciosos para serem deitados fora, desperdiçados.

Soubemos que seria enterrado, como os seus, debaixo de uma árvore, numa floresta, com o pano sobre o rosto. Assim viveria, então, todos os sonhos bons que não teria vivido e viajaria por todos os segredos revelados. Naquele branco, estaria o tesouro da sua mais completa liberdade.

Talvez não seja só aqui, no Ocidente, que o branco, em rivalidade com o azul, seja a cor onde se depositam quase todas as ideias e criações.
Talvez, em todo o lado, seja a cor de todos os inícios.

...

Adenda :

espantam-se-me sempre os olhos com o poder que o branco tem nas mãos dos pintores.Apenas três exemplos soltos, que estas visões pela História não são de ter fim:

com umas sábias pinceladas de branco

se cria a água silenciosa e dorida nos olhos;

se sugerem transparências, texturas, movimentos apesar de o vento estar em sossego...

ou se pulveriza na tela (com pó branco de Tempo em cima do vermelho, com o motor que se supôe ter tido um brilho encadeante, com giz numa ardósia, com um papel abandonado) um suspiro de nostalgia.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Por uma questão de justiça, impõe-se que fale da que muito importante foi e se viu remetida, com os seus feitos curiosos que ainda hoje têm rasto, ao esquecimento mediático da História.


Da seda que inventava a luz

Loie Fuller, que nasceu Marie Louise e viveu entre 1862 e 1928, teve vida de que nunca deixou perceber completamente os labirintos. Ainda hoje, biografos, historiadores e pensadores da dança e do espectáculo, andam neles às voltas.
Uns procuram verdades, outros definições. Haja quem com tais coisas muito se entretenha.

Sabe-se que foi filha de uma espécie de saltimbanco, homem que andava com a família às costas, Estados Unidos da América fora, em busca de negócio que lhe rendesse fortuna e assento definitivo. Sem ser trapaceiro, por azar, não conseguiu nem uma coisa nem outra.

No entanto, Loie não escapou de se sentar nos bancos da escola. Já naquela época, o pai ansiava fazê-la instruída e eventualmente doutora na cidade onde as mulheres já tinham cátedra: Boston.

Loie aborrecia-se porque aprendia em cinco minutos o que os outros demoravam dois dias a aprender.
Preferia ir para os palcos, exibir os dotes, naqueles concursos tão americanos para crianças. Aos cinco anos, já recitava de fio a pavio complicadíssimos poemas. E cantava. E dançava. E tocava banjo. E escrevia textos.
E com apenas doze anos, organizou uma série de espectáculos para angariar fundos para subsidiar desempregados vitimas da recente industrialização.


Mais tarde, já em Paris, após a Guerra 14-18, aproveitou a influência que tinha para abrir os cordões à bolsa dos milionários americanos de forma a que o dinheiro voasse em direcção aos europeus mais vitimados pelo conflito.


Aliás, embora pessoalmente pelintra e sem as malas culturais de Isadora Duncan, nunca lhe faltou empreendimento para fundar museus, escolas e outras vias de ensino e divulgação. Empenhou-se em divulgar a cultura americana na Europa, coisa que europeus pensavam, e pensam, ser inexistente ou menor.
E lá arranjou dinheiro para lares de terceira idade, mães solteiras, mulheres maltratadas.

Ainda adolescente, fez parte da Companhia itinerante de Buffalo Bill.


E, subindo árduos e persistentes degraus, chegou a contracenar com grandes figuras miticas, clássicas e sérias da época, como Lillian Russell.



À excepção das danças com os panos, representava maioritariamente papéis de rapazinho.

Abreviando, emperrou no rigor da crítica selecta de Boston e Nova Iorque:
a criatura podia ser boa bailarina se tivesse tido formação, não fosse tão atarracada e redonda.
( na altura era moda nascer-se com rosto ovalado, olhar etéreo, corpo fino, aparência geral esquálida).

Loie Podia ser boa actriz ou cantora de ópera se trabalhasse a linda voz de soprano e dominasse a expressão facial e corporal.

A critica deu-lhe elogio para o vaudeville, burlesco, mas não para o requinte do Boston Theater.
(Comparando seria como botar a grande Ivone Silva no teatro de pesquisa da Cornucópia. Faz de conta.)

Se, se, se…deu-lhe a veneta de ir para a fogosa e vanguardista Paris.

Aí, Sarah Bernhart introduziu-a no meio e foi sucesso imediato: as classes mais cultas tanto frequentavam e valorizavam os grandes teatros clássicos como o Folies Bergères.



Sem os fundamentos filosóficos de Isadora Duncan em relação ao corpo, Loie dançava em aparente improviso, envolta em longos panos de seda. Pauzinhos de bambu prolongavam-lhe os braços, andas davam-lhe uma altura de espectáculo.


A seda pura, criava reflexos de luz como se fosse a própria luz a dançar.
Loie era apenas a agente de uma dança COM EFEITOS VISUAIS E ILUSÓRIOS. O corpo era secundário.

Através de um matemático jogo de espelhos, Loie engendrou maneira de a luz ser enviada e reenviada de um sítio para o outro no palco. No meio de tantas idas e vindas de feixes de cor, a seda criava uma série de efeitos especiais que levavam à completa irrealidade. Também desenvolveu luzes fabricadas por produtos químicos.
E valorizou a sombra como elemento dramático no palco,

coisa que viria a influenciar o cinema, sobretudo o expressionista.


Pode dizer-se que foi pioneira na extraordinária arte que é o desenho de luz.


Desenhou figurinos que aos seus propósitos de irrealidade se ajustassem.
Os figurinos eram os sublinhados dos movimentos. Quase deles protagonistas.

Martha Graham, bem falou da importância histórica de Loie na questão, mas poucos a ouviram.



Loie, criou aquela falácia que ainda hoje se usa abertamente em televisão e, enfim…às vezes em teatros, seja qual for a arte:

contratam-se uns conhecidos a jeito ou mercenários para que, no meio ou no fim, batam palmas desenfreadas, gritem em êxtase Bravo, aplaudam de pé e etc, espalhados e na primeira fila. Tem o efeito de onda e quem não percebeu a récita, acha-se estúpido por não ter gostado. Às vezes…não sei se já repararam, quanto pior é o espectáculo mais estardalhaço eles fazem.

Tornou-se a Musa Inspiradora do Simbolismo e da Art Nouveau, cujo símbolo máximo, a libelinha de Lalique, é o seu retrato.


Era divina para Toulouse-Lautrec,

Yeats venerava-a, Rodin tentava capta-la. Está na arte de todos eles. Nem escapou aos irmãos Lumière, com direito, hoje, a uns segundos no youtube.

O casal Curie, de quem era amiga próxima, pasmava-se com a sua inteligência e conhecimentos científicos. Fico-me por aqui nos exemplos.

Mas Loie não era, no todo, feliz.



Apesar de ser empresária e agente, como o foi de artistas japoneses na Europa, lidar com enormes fundos, por um conjunto de circunstâncias, tinha os bolsos rotos.

E uma dessas circunstâncias foi o apoio na longa doença da mãe. Foi à completa falência para lhe proporcionar bem-estar.

Mas, como qualquer digna snob, no sentido inglês da palavra, ostentava um tipo de vida luxuoso carimbado em cadastro de dívidas.
Afectada, altiva e ofendida, era expulsa dos hotéis por falta de pagamento.

Preferia morrer a deixar de beber champanhe, nas mais luxuosas suites, na companhia da sua dúzia de raparigas bailarinas discípulas e membros da sua companhia. Isadora lançou,voraz de protagonismo exclusivo, competitiva e cínica, o veneno da maledicência.


Foi vítima de várias traições.
Descobriu que algumas das suas dedicadas bailarinas a utilizavam como trampolim para voos, casamentos e sucessos na alta sociedade como, ao fim de três anos de casamento, soube ser a terceira esposa em simultâneo com outras duas mulheres, do único marido e homem com quem teve intimidades.

Teve relação tempestuosa com Isadora Duncan, que aliás lançou na Europa, até esta ter fugido em paixão súbita com a sua mais talentosa bailarina principal. Cancelados os espectáculos em Berlim, teve que pagar uma fortuna de indeminizações.

Mais calmo, cooperante e longo foi, em muitos aspectos, culturais e filantrópicos áquem e além mar, o amor recíproco com a Rainha Marie da Roménia, neta da Rainha Vitória de Inglaterra.

Como era discreta quanto à sua vida pessoal, pouco se sabe da mulher subterrânea mas estrutural , Gabrielle, com quem viveu longos anos até ao fim dos seus dias.

Loie afastou-se dos palcos a tempo de o público se lembrar dela sem ser figura obesa e quase cega, por via das experiências com a luz, além de as dores na coluna e a bronquite crónica, de que sempre sofreu, já não permitirem o disfarce em que era mestre quando dançava.

Além disto, como se sabe, o público tem tendência a só amar uma estrela de cada vez e Loie foi substituída nos encantos por Josephine Baker.



E, em termos de História, Isadora voltou a vencer.

Neste momento, no cemitério Père-Lachaise, as suas cinzas têm como vizinhas as de Maria Callas e as de Oscar Wilde.
Como sempre se declarou cem por cento americana, existe uma contenda acerca do poiso eterno. Paris ou Boston ou Chicago?

Parece-me que se é fácil imaginá-la a entreter os anjos no palco luminoso do céu, é mais difícil ouvir a sua voz de soprano a segredar o sossego ou a viagem.

Talvez lhe seja indiferente desde que... façam o favor de não a esquecer sem, pelo menos, lhe explicarem porquê.