sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010


... intervalo...


...Bach...

...e bom fim de semana...





terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Prosa pouco virgulada acerca do inevitável casulo fugitivo.

É capaz de ser da chuva.


Do ruído dos aviões espalhado pela água.

Faz de conta que são navios a navegar num mar colocado ao contrário. Que se entorna em gotas.
A imaginação permite paisagens absurdas.

Porque é que as nuvens não hão-de ser um mar aéreo? Suspenso e nómada.


Ou talvez tenha sido por ter estado naquela casa de chá. E de chocolate quente. Rosquillas , panecillos, scones, torradas com manteiga magra de cabra. Compota de frutos silvestres.

E o inglês a dizer que lhe apetecia viver ou antes ou depois do tempo em que lhe cabe a existência.

Não lhe apetece História rápida. Mal pensada. Repetida e sem memória. Tempos mais quantitativos que qualitativos. Aborrecem-no as ideias gestoras sem rosto nem corpo. Mas talvez com mestrado e doutoramento. Devidamente credenciadas na contabilidade estratégica dos cifrões. E do medo.

Revoltam-no as escolas de impune crueldade.


Em que se vence só porque os outros foram mais vencidos.
A sublime glória do esmagamento.
Nem que seja debaixo da luz de concurso televisivo.
Suam derrotas nos olhos.

Há quem lhes chame lágrimas. Penso que são mais desilusões derretidas. Tanto faz.

Despeço-me. Tantos anos. Cumprimentos lá em Inglaterra. Descansa. Trata do jardim.
-God save the Queen.
- God Save the Queen.

Ou talvez seja por ter passado meia hora de auscultador telefónico no ouvido.
O benefício da linha verde.
Vivaldi sacrificado. Distorcido. Interrompido.
Se deseja esperar prima a tecla um. Se de deseja ser contactado prima a tecla dois.
Vivaldi.
A sua chamada é muito importante para nós.
Vivaldi.
Se deseja esperar prima a tecla um. De deseja ser contactado prima a tecla dois.
Vivaldi.
Boa tarde, em que posso ser útil?
Voz pastosa. Aposto que tem sugus de limão na boca.
Só um momento, não desligue.
Glenn Miller.


Ou talvez seja dos livros que comprei. Muitos. A um. A dois. A três euros.
Fui aspirada pelo hálito vagamente bagaceiro do gerente da livraria. Bom homem. Um eterno príncipe preso num corpo de sapo. Coitado.
Apresenta-me preciosidades libertas da escuridão do armazém. Deve ser triste para um livro não ser lido. Um mundo amordaçado.

Há de tudo. Espanhóis, americanos, ingleses, alemães, italianos.
Amor de Perdicíon de Camilo Castelo Branco.
- Simau.
- SimÃO.
- Simau.
-Coño, Si-m ÃO ÃO ÃO.
Metamorfosis de Jorge de Sena.
Bernardim Ribeiro. 15x11cm. Ilustrado. Ternurento.
Levem estes, que já li em português.


Ou talvez seja do cartaz na sala de espera do veterinário:senhora deitada a ler. Num sofá branco. Com manta igual à minha. Uma Madona com camisola de pescador. Tranquila. Sem pulgas nem carraças. Nem piolhos. Nem mosquitas.
Luz interior à Woody Allen. Lareira com luz barroca. Cão e gato aos pés. Cheios de sonhos errantes. Provavelmente.

Talvez por tudo isto, e mais que não digo em palavras mas em imagens,


faça grande esforço para sair de casa.


Apetece-me casulo.
Casular.


Devorar todos os pontos de interrogação paridos pelos livros.
E nos livros.
Ou nas superfícies brancas onde, geralmente, todos os traços futuros começam. Em cores. Ou movimentos. Ou encenações. Qualquer coisa.
Como um ovo incubado no mais benigno dos silêncios.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Tive esta conversa, porque me deu para aí e porque gosto de disfarçar a necessária autoridade às vezes delegada e requerida, com uma certa dose de ternura, como é próprio de quem já se sente avó, credo, de umas crianças de vinte e tal anos. Em consequência, não me custou nada imaginar uma sala pausada, com lareira em vez de tapas, vinho moderado, vozes altas e demais circunstâncias castelhanas, alheias ao som intimodo meu instrumento preferido: o violoncelo.

A sonata do carpinteiro

O destino de Pablo Casals, ou Pau Casals como gostava de ser conhecido, sempre esteve ligado a metáforas de carpinteiros e marceneiros, profissões também da minha devoção e esporádica prática, por cheirarem a produto arbóreo e estarem ligadas a muitas lendas britânicas e nórdicas de encantar.

O pai de Pablo era organista e maestro de coro de igreja. Conta-se que, como muitos outros e dadas as condições da época, era dado a crises existenciais: para que serve a música? Como é que as notas modificam comportamentos ou matam misérias?


Queria, então, que o filho fosse carpinteiro.

A exemplo da música, tal ocupação tinha um carácter de ofício intemporal e abrangente, no sentido mais antigo do termo: começa-se como humilde aprendiz, trabalhar-se para chegar a artífice, acabar como um digno mestre, dono de (quase) todos os segredos.

Para além disto, a profissão de carpinteiro tem uma aureola santificada, como todos sabem.


A mãe de Pablo, senhora ligada às artes, e com intuição de mãe, sempre defendeu, para o filho, a música.

Tinha a senhora razão óbvia: o petiz, já aos quatro anos tocava piano e aos onze, imediatamente depois de assistir a um quarteto de câmara, e em apresentação de dotes em festa na freguesia, lembrou-se de colocar o violino, que também tocava, entre os joelhos, tocando-o na vertical.

Se alguns se riram, outros chegaram à comoção com a força que jorrava da sua alma.

Conseguiu o seu primeiro violoncelo, em vigésima quarta mão, e um professor disse-lhe a frase que nunca haveria de esquecer: um violoncelista deve tratar o seu violoncelo com o rigor com que um carpinteiro cuida os seus martelos.


Mais tarde, um outro mestre, dando-lhe um instrumento novo e pago pela Rainha Maria Cristina, haveria de lhe explicar que a madeira do violoncelo é como a de uma porta ou um móvel:

só com o tempo adquire a forma certa de ser o que definitivamente será.

No caso daquele são as vibrações contínuas que ajeitam a madeira ao som, até lhe definir a personalidade própria. Nenhum instrumento nasce adulto.

Encurtando mais ou menos a prosa, vamos ao centro da conversa, ou melhor, a uma certa moral da história, se me permitem tal presunção.

Um dia Pablo, numa loja, encontrou num canto recôndito, as pautas das Seis Suites para Violoncelo de Bach.


Tais pautas eram consideradas, na altura, uns meros exercícios tão importantes como os rabiscos que hoje fazemos enquanto falamos ao telefone. Por exemplo.

Como era muito crente, achou que tinha sido Deus que lhe tinha guiado o olhar e induzido o fascínio imediato por aquela música tão simples: escalas baseadas em tempos e modos de danças.
O logista ofereceu-lhas e Pablo levou o seu pedaço de madeira mais precioso.

Viria a descobrir que aquele pedaço de arbusto abandonado continha em si a essência de todas as árvores.

À medida que ia estudando as suites, ia vendo a complexidade misteriosa, a que sempre chamou divina, dos veios.

Como um carpinteiro ou marceneiro, sabia que um corte, a aplicação de um prego, a geometria de um golpe de formão ou a subtileza curva de uma goiva, a pressão numa plaina ou num guilherme, dependiam deles.

Passou dias à volta das notas, como general em pensamento estratégico sobre um mapa.

E confirmou o que já sabia, remotamente, desde o tempo de aprendiz:

a mão esquerda, a que toca as cordas, é mera técnica.


É na direita, a que maneja o arco, que está a Arte. A interpretação pessoal está na forma como as notas são ou não prolongadas, aliviadas ou pressionadas. É no arco que está a entoação da voz. O trabalho do veio.

Descobriu que o germânico Bach, naquelas suites, não era só matemática conceptual, ao alcance de qualquer aprendiz.

Aspirou ser mestre para saber dar expressão àquela série de notas ascendentes e descendentes, para lhes encontrar a dinâmica e para lhes dar expressão. Com suavidade, flexibilidade e rigor.

Ao contrário dos seus mestres, Pablo rejeitava a rigidez interpretativa tão em moda nos finais do séc. XIX. Gostava de se considerar um clássico. Mas com modernidade nas mãos.

E tinha aprendido o valor da comunicação versátil do violoncelo, quando acompanhou, em emprego precário, os filmes mudos, num cinema de Barcelona:
notas agudas para os gritos das donzelas vitimas e desmaiadas. Notas graves, em longo vibrato, para cenas de suspense.


Diz-se, talvez seja lenda, que a infeliz rainha Vitória Eugénia,


consorte de Afonso XIII de Espanha, mitigava as saudades da sua, enfim…pouco barulhenta Inglaterra, ao ouvi-lo interpretar adágios de Saint-Saens, Respigli e Tchaikovky .

E que a atmosfera do violoncelo trabalhado de Pablo, lhe fazia lembrar a calma das oficinas dos marceneiros, que costumava visitar, na sua infância.

Imaginava o som de martelos e maços em cadências de metrónomos.

Pablo já artífice para uns, mestre e mestríssimo para outros, criou uma rotina diária como pessoa metódica que sempre foi: passeava de manhã, admirava a manifestação do seu Deus no mar e nas árvores, ia para casa, tocava piano, e a seguir rezava com as suites de Bach, filho maior da divindade.


Deus, a natureza e a música, foram sempre a sua Santíssima Trindade.

Considerou-se aprendiz intensivo das Suites durante doze anos. Só ao fim desse tempo, as tocou em público.

E só depois de sentir o seu trabalho assim exposto, quase como se fosse uma devassidão ao seu interior mais profundo, concordou em gravar delas um disco. Em 1940.



Tocou Bach, todos os dias. Mesmo só para si, como em intimidade mais recatada ou oração, quase até ao fim da vida. Em 1973. Longe de Espanha.


longe de qualquer espécie de ditadura.

As suites, foram-lhe consolo para os desgostos.



Ilustraram-lhe as alegrias.



E mostraram-lhe, sobretudo, que se pode encher uma vida, com o labor de um artífice, mesmo quando não se tem a certeza se algum dia se chegou, ou chegará, à plenipotência e à sabedoria completa de um Mestre.


Há sempre segredos que qualquer madeira tem o direito de guardar para si.