quarta-feira, 20 de junho de 2012

Da difícil e disparatada arte de disciplinar Tupperwares



Senhores, não sei o que tem o rolar dos pneus no asfalto que me põe ainda mais disparate nos pensamentos.

Vinha eu destes dias sem obrigações rotineiras, burocráticas, enfadonhas e absurdas  a soldo, quando me lembrei que para além de estar mais velha, ao contrário do que fantasiei no anterior, deveria a espécie humana e quiçá outras, ter uma espécie de Tupperware no frigorífico da memória, pronto a ser aberto sempre que desse a fome de sentido, prazer, calma ou outros ingredientes de reconciliação com o acto de ter que se estar onde não se deseja nem a natureza de cada um pede.

Seria mais uma espécie de teletransporte para o gosto mais do que uma mera e difusa lembrança.
Volta e meia também se poderia, qual dona de casa amestrada e avessa ao desleixo,


 deitar fora algumas caixas. Umas cheias de desperdício, outras infectadas pelo que não se escolheu ver.


Assim , agora, poderia eu  sentir, mais que lembrar, a areia fresca nos pés, o vento a contar viagens na cara numa paisagem que, ficando em Portugal, bem podia conter nos nevoeiros, no chumbo indeciso das nuvens, as lendas escocesas.

Neste Junho bem popular e entrado embora falho de sardinha a preço módico e sem pretensões a iguaria, nas tascas honestas e de muito asseio que deixaram de existir de um imposto para o outro.

Poderia entrar em conversas vadias sem problemáticas de futebol nem réplicas ao domicílio de jogadores decorados com popa modulada a gel , brinco de pechisbeque na orelha, camisola ou camisa a realçar o grande peitoral, que o diamante milionário e a ampla musculatura ibérica com progenitura insular se reservam para o original.

Poderia deitar fora, a propósito, a caixa pouco hermética e imune a germes que contém aquela lembrança de menina em diante que me tornou alérgica ao desporto rei:

corriam domingos pelas ruas de Lisboa e homens sem fim e com fato composto, de calça vincada, sapato de verniz, meia alva ( indumentária resultante do casamento de Santo António da prima, obviamente) deixa o apartamento J. Pimenta e que

 para além de guerras mansas ou cheias de amor de mãe no braço, das clausuras de corpo e espírito,



 dos estrangeiros, entre outras coisas, Senhores,  a drogarem-se com água suja da Coca-Cola e das modernices e poucas vergonhas inerentes, lá tão longe,


 encosta o radinho de pilhas, modesto mas honrado, ao ouvido e vibra, e sofre e rejubila com a voz competente e descritiva de Artur Agostinho na Emissora Nacional enquanto o filho devora o Pastel de Belém


e a mulher faz naperón para adornar a televisão, possível desde que o marido subiu pela Lei de Peter a chefe da estação dos Correios.


E também me podia ver livre da caixa  com a tampa aberta, cheia de risos, desprezos e outras fealdades onde, encolhidos de medo e vergonha estão o alfaiate conhecido por Maria Maluca.


 Ai Senhores, sabia-se lá se teria pegado o vício mariconço ao cão Bobby.

 Mais a enfermeira Olinda, espécie de mulher muito solteira, sempre de calças, cigarro na boca, cabelo curto, tanto que só lhe faltava fazer a barba com Gillette de lamina dupla e gritar pelo Benfica.

Mas pronto, poderia voltar a aprender, na semana passada, com o muito velho senhor cientista holandês que na esplanada do mercado do peixe, sozinho e de bebedeira permanente, estável e lúcida nos ensina em inglês arranhado e às vezes num espanhol incompreensível que o cérebro humano se encarrega fisiologicamente de paliar as dores da perda, diminuindo-as para um quarto da intensidade inicial.

Tanta racionalidade mas sinto-lhe um olhar involuntário para uma palavra escrita para cá da linha do mar numa língua que, ali, tirando eu, ninguém conhece: saudade.


Treme-lhe o corpo, todos os seus já foram menos ele, comentamos entre nós, sabemos lá,  um braço partido cura-se com gesso, uma indigestão com água das pedras mas a alma abandonada talvez só com lágrimas, mesmo quando remetidas à secura.

Talvez a ciência se engane e  peça mais um whisky duplo e sem gelo.

Que ganas tengo yo de pan e lá se segue noite bem alta o ritual antigo do amassar.

Ficam as mãos urbanas sem idade, ou melhor, sem tempo e muita história.

Na tribo donde elas vieram só se faz o pão à noite, não venha o sol roubá-lo e também aqui, a lenha que acendo no forno

 quebra a brancura da lua como o crepitar se junta à voz de um canto sefardita, descoberto por um monge de Poblet de olhos míopes, em paz, com silhueta discreta, debruçada na luz da janela da sala.



Jordi Savall espalhou-o pelo mundo, mantém a caixa aberta aos cantos remotos numa glória maior que qualquer golo ou campeonato. Tanto amor e morte, tanta voz a circular no sangue de quem a arrasta pelo chão do palco.


Bem tento abrir a caixa quando, agora, me levanto, pouco depois de na semana passada ser hora de me deitar, corpo lasso e adormecer sem me aperceber que estive acordada. Levava-me o vento a consciência.


E levanto-me quase sem me aperceber que estive a dormir.

Acidente sobre a ponte do Rio Trancão, trânsito lento, uma bandeira na janela do carro da frente, orgulho e vingança nacionais.

S. Cristóvão em zinco no tablier.

Finalmente a União Europeia ou lá que estratega de tal xadrez,

consegue que a Espanha tenha uma dívida maior do que aquilo que deve,

penalti,

mais austeridade ainda,

golo,

qual será o próximo a entrar no jogo, a aquecer no banco dos suplentes


e a nuvem solitária sobre o aeroporto da Portela faz-me lembrar a lenda índia, ou inglesa, já não sei em que tupperware está, do pássaro que de tão ambicioso no voo, tanto subiu que espetou o bico no céu e ali ficou cheio de altitude inútil.



Ouço então Alfonso Ferrabosco o Velho,


 associo o veludo macio e triste das cordas às árvores de Giotto.


 Nem reparo que abri um novotupperware. E se para a semana,  eu …imaginar que a árvore de Giotto dança quando se ouvirem as notas?


Parece, Senhores que, como nos frigoríficos de toda a gente, as minhas caixas se reproduzem e que sem espelho, escondido num canto, o electrodoméstico não tem outro remédio senão crescer.


sexta-feira, 1 de junho de 2012



Breve, ou nem por isso, crónica das andanças pela elasticidade do Tempo.

Andava eu, Senhoras e Senhores, às voltas e voltas sobre Lisboa, especulativa e fixando-me na suspeita que tal impossibilidade de aterrar se devia, talvez, mais ao congestionamento logístico provocado pela chegada de certo e mediático jogador de futebol do que ao facto inesperado de o aeroporto ter mudado, através de portaria ou decreto com efeitos retroactivos, de sítio, quando me ocorreu por necessidade de alguma fantasia, a sabedoria de Einstein.



Dizia a abrangente criatura, como toda a gente sabe, que o Tempo é relativo e que , por isso e como exemplo da questão, se uma criança desse a volta ao mundo à velocidade da luz, quando chegasse ao ponto de partida, todos os seus colegas de escola já estariam provavelmente mortos de velhos, a paisagem transformada e mais tudo o resto que a passagem do tempo implica.



Se Einstein não se importar, diria eu em jeito de moral da prosa, que quem pára envelhece mais do que quem se move.



Mas voltando à fantasia, foi ela potenciada por ter estado num país em que nas imagens da televisão pátria, (porque daquela língua em que os fonemas tanto parecem enrolar-se na boca como pão seco em pessoa falha de apetite como, de repente, parecem rajadas de metralhadora desgovernada e enferrujada, não percebo patavina) Portugal não aparece nem em forma de Galo de Barcelos quanto mais em postal da Torre de Belém , Terreiro do Paço ou Palácio de S.Bento com o respectivo recheio.



Fiquei-me pelas ruínas das glória pretéritas de Atenas


e sobretudo pela Porta de Alcalá e outros sítios que me são costumeiros em Madrid.

Imaginei então que enquanto andei de viagem, o tempo tinha tido tal desenvoltura por cá que ficaria eu paralisada de espanto com a evolução.

Tinham desaparecido as longas filas de pessoas de vida olheirenta e enrugada à espera de comprimidos fabricados em coragens e desesperos passados de quem aspergiu ocidentes e civilizações pelos cantos mais escondidos do mundo.



As pessoas sairiam mais cedo do trabalho que quase toda a gente teria, porque em vez de se tratarem por engenheiros, doutores e afins desde que nasciam,  orgulho digno e instruído nas profissões que exerceriam.





As notícias seriam verdadeiras porque os políticos seriam mais sábios que actores de argumentos alheios, tão alheios que dos autores apenas se suspeitava a identidade pelas habituais figuras de estilo utilizadas.
Teriam sido instruídos na hermenêutica do pudor. Por exemplo.


Os velhos não andariam, em segredo, a pedir esmolas à Morte

 e as crianças saberiam que a sua vontade voluntariosa cresceria a um ritmo mais lento que o desenvolvimento do seu corpo.


A Justiça tinha-se tornado mais esclarecida que cega e finalmente tinha saído da porta da vizinha quadrilheira, intriguista e cheia da mais velha profissão do mundo, para levar a balança, que não precisava de ser a mais digital do mundo, a arranjar porque, coitada, andava com a mola do fiel num desleixo partido.


Seria um alívio ver que a população se tinha curado do vírus chamado Guinness Book inoculado nela, como sempre acontece, quando a miséria debilita a imunidade. De facto, por estranho que pareça, já ninguém corria maratonas colectivas com a bandeira da caridade na mão.


Também não veria animais maltratados ou abandonados ou as duas coisa juntas , na estrada.


Nem o camião TIR estacionado à entrada da minha morada só porque o camionista com a sede da cerveja em tertúlia viril, fica cego quanto a edifícios e alheias propriedades e trânsitos.



Nenhuma das minhas árvores ou plantas inocentes sofreria a inquisição de um foguete clandestino no festejo nem por causa dele os meus cães acordariam os medos face aos ruidosos engenhos humanos.


Para não alongar a lista, ficar-me-ia pelo espírito investigador de me dirigir à biblioteca mais próxima, para saber como tinha acabado a III Guerra Mundial , a que sem armas mas com muitas baixas, estava em curso quando levantei voo destas terras.

Mas logo que aterrei, vi que tinha envelhecido tanto como os que parados, esperaram.



Logo me surgiu outra compreensível fantasia, também impulsionada pela urgência.


Na impossibilidade de me tornar projéctil, senão em forma pelo menos em conteúdo, fico-me pela insolência de ir uns dias de férias, pelo menos enquanto tal instituição existe, começando esta ilusão de largueza na amplitude da alma no ultimo feriado do Corpo de Deus deste milénio.

Se a imponderabilidade do destino expresso nos vários SEs me permitir ,



 vou encostar a cabeça no ombro da noite, ouvir a música das ondas até que o embalo a transforme em silêncio.

Sentir no corpo o fio ténue do abandono, na sonolência. Ter dias lentos, passear devagarinho pelas horas.



 Ter tempo para carpinteirar a cadeira adiada: uma forma de respeitar uma árvore que se soltou da terra, sei lá se por loucura ou intempérie.

Ligar o canto do Oceano a vozes emprestadas a um trecho polifónico, lá das bandas da Renascença, que desde que o ouvi me soa a viagem para além de qualquer terra conhecida.


Talvez, no espaço para onde vou, tenha sossego e silêncio suficientes para ouvir este diálogo e supor-lhe os mistérios que inventarei.


Talvez me ria do que adiei rir. Talvez não precise de calibrar burocraticamente as palavras.



Senhoras e Senhores, talvez esta pequena parança que já me apetecia quase definitiva, me torne cada vez mais nova.




E que o Einstein me perdoe se desta forma lhe contrariar a lucidez da Física.