quinta-feira, 30 de julho de 2009

Vai este em intenção explicativa e apressada dos métodos de Merce Cunningham, para quem eventualmente tenha curiosidade em saber da pujança de tal nome, que me soa, logo verão porquê ao

Exuberante pincel do caos.




Talvez por andar a competir com os relógios e em imaginação visual rodoviária, ocorre-me que a dança americana, no séc. XX, desenha duas grandes, entre outras, auto-estradas das quais derivam estradas, estradinhas e os chamados caminhos de cabras, todas vias destinadas a povoar o mapa do mundo.

Uma, mais antiga, chama-se Martha Graham, a outra partiu desta e chama-se Merce Cunningham.


Merce começou por ter aulas de piano e dança no ensino secundário com uma senhora simultaneamente professora e performer de vaudeville.

Foi correndo vida e estudos até que Martha Graham o viu e, deslumbrada, o levou para a sua Companhia.

Viviam-se os finais dos anos trinta e, sobretudo nos EUA, andavam os espíritos inquietos na busca de novas formas de modificar o baile ( e outras artes) que tinham recebido das épocas passadas.

Abreviando, começou a construir coreografias ainda sob o tecto de Martha Graham e por ela influenciado, embora já entrasse em dissidência com a portentosa mestre. Esta punha todos os acentos na transmissão das turbulências da alma e


Merce já tinha tomado contacto com a pessoa que mais o haveria de influenciar ao longo dos próximos cinquenta anos: o músico John Cage , avesso a promiscuidades entre sentimentos e artes. Cage era um experimentalista em busca da essência da arte pura.


Martha sugeriu-lhe que fosse estudar para a School of American Ballet cuja orientação estava sob o jugo de Ballanchine, o tal que não gostava muito de ver emoções próprias, subjectivas e individuais na expressão dos bailarinos. Preferia corpos que falassem técnicas sem sentir para além delas. As suas faces seriam, idealmente, de traços congelados. E assim se viriam a caracterizar os bailarinos de Merce.

Dado a observações um tudo nada obsessivas com o corpo, reparou que os bailarinos Clássicos tinham as pernas mais fortes que o tronco, considerado rígido e sem flexibilidade, e os da Dança Moderna, muito entroncados, ostentavam perninhas sem vigor.

Durante toda a vida, desenvolveu exercícios para que se fortalecessem de igual modo as duas metades. Sempre trabalhou para ter à frente torsos flexíveis em cima de pernas potentes. Foi uma das suas particulares peocupações e características.

Ou nem tanto, mas mandam os mitos que se esqueçam os outros interessados na matéria.

Agora vem a parte mais interessante.

Chegamos aos anos cinquenta, altura em que fundou a sua própria Companhia. Dizem as más línguas, que com uma forte componente autoritária. Dizia que aceitava a entrada de qualquer bailarino, mas os escolhidos só saíriam quando ele quisesse.


Merce, conjuntamente com outros artistas, John Cage como guru, e baseado no famoso dito de Albert Einstein, que ambos veneravam, de que “não há pontos fixos no espaço”, virou-se para a teoria oriental do caos:
desordem aleatória que move toda a natureza. Sem pensamento. Sem racionalidade. Sem cálculo. Sem sentimento ou emoção.

Uma espécie de sljysurgtqwrjhg~qpo8835t83, aqui no teclado.

Merce começou a aplicar em dança o que Jackson Pollock, também fã do caos, fazia nas telas: o dripping, ou seja, aquela coisa de espalhar ao acaso tintas, cores, cinza, cigarros, liquor e o que mais lá pousasse (na realidade uma falácia, porque não era o acaso que lhe guiava a mão, mas pronto).




Ora em termos de dança, chamemos-lhe, sei lá, convencional, as coreografias são movimentos sujeitos a uma ordem de espaço e tempo.

Os bailarinos movem-se e estão sujeitos a esses parâmetros pensados pelos coreógrafos consoante as finalidades e os efeitos desejadas para a obra.

Está-se no ponto A, vai-se para o B, depois pára-se no C e etc.

Quem costuma ver dança, mesmo que raramente, sabe o efeito "dramático" que estas deslocações e paragens têm.

Merce lembrou-se de transformar os bailarinos em trinchas de Pollock.

Nos ensaios, ou antes de se levantar o pano, já com público sentadinho, mandava moedas, papéis e que mais fosse para o chão. Eram as marcações aleatórias de espaço. O poder criativo do acaso. Ultimamente mandava o computador decidir as variáveis.



Para os movimentos adaptou as teorias do ying and yang. Coisa complicadíssima e demasiado técnica. Não vos vou maçar com linhas continuas, quebradas e quejandas. Credo!

Por tudo isto, ficará para a história como o criador da Chance Coreography.

O que interessa é que na natureza, o caos faz com que nada seja igual ao que já foi e que o agora seja completamente diferente do que será.

Daí que Merce transportando tal ideia para a dança e convencido por Cage, rejeitasse os espectáculos iguais (que por acaso em artes de palco nunca são, mas está bem…).

Ora os bailarinos-pincéis, nunca sabiam o que lhes ia calhar na rifa antes de subir ao palco. Tinham que saber, os da companhia dele, “ler” a tal complicação do acaso segundo a caligrafia de Merce.
Para os que não estavam habituados a tais azares, a coisa tornava-se ainda mais esquizofrénica.

Mais ou menos como aterrar uma pessoa num sítio ermo da China e seguir a sinalética chinesa para chegar a Pequim.


E vem daí a falta de expressão facial e o aspecto, perdoem-me, de máquinas de movimento dos seus bailarinos: era necessária tanta, mas tanta concentração, que não restava ruga ou esgar para mais coisissíma nenhuma.

Mas a tal loucura aleatória abriu a estrada para os futuros happenings ou events, tão celebrados e quase artisticamente obrigatórios no posmodernismo.

Nos anos sessenta, Merce embora continuando com o caos, , mais uma vez influenciado por Cage, rendeu-se ao ressuscitar actualizado das teorias Dadaístas, mais conhecida por Pop Art.


O músico começou a introduzir sons do quotidiano nas composições. Merce fez a tentativa de prescindir de bailarinos profissionais e das salas de espectáculos, e pôr pessoas sem formação bailarina a dançar-lhe os tais acasos.

Como é fácil de perceber, dada a dificuldade, é como exigir que uma pessoa com a instrução primária se ponha, de repente, a escrever uma tese de doutoramento sobre o Ulisses do James Joyce.

Não resultou, mas mais uma vez abriu os caminhos para as experiências posmodernas, que ainda hoje se podem ver por aí. Como herança.

Por essa altura, elegeu Rauschenberg, artista plástico sempre fascinado pela dança, como colaborador. Foi época de produção mútua de obras primas.




Mas, ao contrário da mestre Martha Graham, Merce não convidava músicos, pintores, figurinistas, cenógrafos, costureiros, designers, arquitectos, para misturar a dança com as outras artes segundo o conceito de arte total e misturada de Wagner. Achava que se conspurcavam. Perdiam a pureza própria.


Temos assim e portanto, em palco: dança,
uma exposição de varias artes visuais ,
de conceitos de vestimenta,
de experimentações arquitectónicas
e um concerto de música,

não tendo nenhuma delas a ver com as outras.

Não?



Merce e Cage, detestavam o conceito “burguês” de harmonia, do equilíbrio, da estética clássica.

Ora, misturando a apetência pelos valores orientais, a contestação filosófica e política aos tais valores burgueses herdados, nomeadamente a uma certa racionalidade e arrumação de ideias, Merce foi transformado e publicitado como demiurgo do futuro por uma determinada intelectualidade, perdoem-me outra vez, ferida de um certo snobismo, nos anos sessenta/setenta.

Foram-lhe atribuídas ideologias que não teve, feitos que não praticou, esquecidos pormenores incómodos, como o seu respeito pela técnica formativa do Ballet Clássico, sempre presente, até pelo gosto do desafio às forças da gravidade terreste.



Mas não será esta a condenação dos mitos?
O de serem inventados aquém e além do que foram?

Ele lá saberá...





sexta-feira, 24 de julho de 2009


Merce Cunningham

16 de Abril de 1919

27-7-2009

the only way to do it, is to do it

Para nosotros, um professor em que se assiste, com fascínio, só aos primeiros dez minutos de aula.

Depois, a vontade irrequieta de sair. Para ser livre e pensar, no corpo, através do corpo, todas as cores dos sentidos. Todas as tonalidades da História. Sem espartilhos que calem os gritos. Ou os risos.

Porque as almas não são, grande Mestre do séc XX, um mero exercício de chuva aleatória.

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Aviso: este post não deve ser lido por pessoas supersticiosas e/0u daltónicas

e vem a propósito de me terem feito queixa, em tom de desabafo, que três pessoas não querem vestir verde no palco e eu ter concordado, e vem a talhe de foice do fosforescente Alien, do desejo de Julho Verde da Frioleiras, extra terreste e pessoa que estimo, e de mais algumas coisas como a camisola verde alface que me ofereceram.

Como vou ter que explicar, que aqui onde me lêem sou democrata, as razões da concordância negativa, aproveito esta prosa para actualizar argumentos sobre

o ambivalente destino da cor indecisa


Se todas as cores têm as suas mitologias dependendo da geografia dos olhos que as vêem, o verde, esse coitado, anda, há séculos numa instabilidade emocional capaz de arrepiar qualquer prático experimentado, ainda são de espírito, de psiquiatria.

Tanto é a cor da esperança, do florescimento, como da desgraça e da malvadez. Poucos países têm o verde na bandeira. Portugal é uma dessas excepções. Sabe-se lá porquê...

Começou por ser, lá para as bandas da Idade Média, a cor do Diabo.



Mau sinal que, onde ele entra, já se sabe, não pode sair coisa boa, nem aqui na terra, nem lá no além. Por definição, penso eu, que tanto o Maligno como a sua morada, são sinónimo de dor, infelicidade, perversão, traição.


Coitados dos gatos e das pessoas que têm olhos verdes, que toda a vida, mesmo que conscientemente nunca tenham prejudicado ninguém, têm que levar com a nota da desconfiança quando não com letras parvas de fados que dizem que são traição e cruéis como punhais. Também já chega! Que falta de racionalidade! Viva a Ava Gardner que os tinha e bem famosos!





(fim deste meu ataque de mau génio)

E isto não só na Europa. Em algumas tribos índias norte americanas, as almas pérfidas, quando abandonam o corpo morto, são verdes, da cor das águas paradas e pantanosas onde mora a morte.

Como o Diabo, entretanto, mudou de cor, para vermelho, salvo erro, que nunca o vi genuíno e sem disfarce, o verde passou a ser associado ao Destino, entidade difusa que pode ser boa ou má, com variações no
cá vamos andando ou assim-assim, mais ou menos.

Não é pois, por acaso, que as mesas de jogo são verdes, donde nunca se sabe se se sai rico ou pobre;

não é por acaso que, pelo menos em Inglaterra, para duelos e outros confrontos, se escolhia o prado de verde mais viçoso,

não é por acaso que em certa zonas de Espanha, as comadronas (parteiras que andavam de casa em casa) tinham uma roupagem verde: tanto traziam as vidas para o mundo, como com elas acabavam em sistema de aborto forçado ou morte mais natural.

E durante muito tempo, nos EUA, a mesa dos presidentes e de outros decisores dos destinos alheios, era pintada de verde.
Se olharmos para a saúde, também o verde precisa de alguma terapia que lhe dê paz. Na generalidade é a cor das coisas saudáveis.

A cruz das farmácias é verde porque verdes eram as ervas com que os físicos faziam as poções para tratar os doentes.

Mas verde era também a cor dos venenos. No séc. XVI, havia um muito célebre que actuava por infiltração cutânea e se botava na roupa do assassinando imediatamente antes de ser vestida e dava uma morte lenta e horrorosa. Não me lembro do nome nem da alquimia da composição. Não é, de todo, a minha especialidade.

E se a ordem de andar é dada pelo verde nos semáforos, em evocação da largura das paisagens e da liberdade, também é certo que raramente as marcas de carros os pintam de verde. Pode sempre trazer acidentes, quando o diabo se atravessa à frente.



E mais?

Também é a cor do desconhecido, do estranho, do que nunca se sabe o que sairá dali. Os aliens marcianos são verdes, alguns seres habitantes das florestas do norte, espécie de duendes com poderes insólitos, também são esverdeados,



como verde era a caraça doida e imprevisivel de Jim Carrey no filme a Máscara. Aliás, agora que me lembrei do dito, tem, de facto muitas cenas onde anda por ali, a toda a mitologia ocidental do verde.




Mas adiante.

Também é a cor dos maus sentimentos. Fica-se verde de inveja ou quando se tem maus fígados (a vesícula, que anda lá nas redondezas, tem um suco esverdeado com enjoos de amarelo).

E é a cor simbólica de tudo quanto é transitório e instável: a juventude, o amor, a esperança e o, sejamos práticos, o dólar, que é verdinho.

Na língua inglesa e em gíria, chamam-se verdes às pessoas que não crescem, às que vagueiam de paixão em paixão conforme a direcção do vento, aos adúlteros, mais por vício que por acidente, aos irresponsaveis. Green gallant, é uma pessoa que não passa sem a prática da sedução.

Ainda em inglês também existe a expressão green finger, aplicada às pessoas que, por exemplo, plantam limoeiros que logo crescem e dão muitos limões, ou seja, jeito para plantas.

Agora, passando para o palco, sítio em que o destino e o acaso são reis, onde entrando, nunca se sabe em que minuto estará a eventual glória ou o temido falhanço, é de evitar o verde.
Para além de uma bailarina russa ter, um dia, quebrado a regra e ter vestido um tutu verde e em consequência disso ter aterrado na plateia com fracturas múltiplas e equimoses na, dizem, bonita face, o verde enquanto cor, ou luz, solista, agride. Há quem diga que, ao fim de algum tempo os espectadores se agitam de incómodo. Ao contrário do manso azul, gera ansiedade.



E se reflectir para a cara dos actuantes, dá-lhes um ar espectral de seres do outro mundo. Acentua-lhes os defeitos.

Por isso alguns figurinistas lá põem verde aceso nas personagens que se querem perversas, más.


A menos, claro, que sejam crianças. Aí, o subconsciente colectivo faz logo a ligação com a tal vida aberta cheia de esperança.

Em termos de moda, os estilistas, com algumas excepções, evitam o verde. Raras são as pessoas a quem favorece. É preciso ter uma tez especial para não se ficar com cor de tísico, ressaca ou noite mal dormida.



Já agora, admitem-se fatos verdes escuros nos homens, porque além de ser uma cor definida como masculina ( as garrafas de vinho são verdes e só eles é que bebem e alguns tabacos



eram dirigidos aos homens que as senhoras de bem não têm esse nem outros vícios) faz lembrar os uniformes militares. Segundo a crença geral, as mulheres gostam de fardados, sobretudo quando são símbolos de acção e poder.



O verde claro é cor feminina, ligada à maça. Já dizia Victor Hugo numa das suas tiradas: Dieu s´ést fait homme. Le diable s´ést fait femme. Esta até fixei!

A tinturaria do verde, para ser estável e não desbotar facilmente, sempre foi difícil, logo cara. Só em época relativamente recente se ajustou a química à economia pobre e remediada.

Em termos de pigmentos, conseguir um bom verde era obra de mestria, assim com ligar tal agressiva a outras, de modo a que o resultado tivesse a expressão pretendida.

Trabalharam-no os antigos



voltaram à dança primária e dura os Fauves

que o diabo não é dono do mundo.

E, agora assim de repente não me lembro de mais nada (patine, bolor-penicilina), a não ser que em vez de estar aqui sentada neste momento de destino, à secretária castanha, não se me daria nada estar num campo fresco e verde, à sombra de uma árvore frondosa, donde se ouvisse o canto da cor verde e instável do mar.

Talvez amanhã, depois de almoço…

O destino o dirá!

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Quis a hora que o sol , entrasse pela porta, acompanhado da dança das folhas de um limoeiro, e fosse bater num livro esquecido, na estante, mostrando-o ao meu olhar sonolento, logo acordado como a um chamamento.

Estava ali, aquela capa dura e antiga, com duas vidas, enfim, amarrotadas, em diálogo, lá dentro, ou, melhor dizendo, mais um exemplo de como um livro pode ser uma espécie de


Balbúrdia dos espelhos cegos


Consta que Lucia Lopresti, italiana nascida nos finais do séc.XIX, era criança burguesa, sorumbática, altiva, snob com laivos de frivolidade à la carte, mas muito dada a leituras e intelectualidades várias.
Abreviando, deitou por terra o nome com que nasceu, e adoptou o de uma amiga de família, senhora de suprema elegância e mistério, chamada Anna Banti. E assim viria a ficar para a história, sobretudo para a das batalhas acesas entre feministas ( a vitima que alerta para os perigos da submissão) e madonas mais defensoras do recato feminino e guardião do lar.

O livro mais importante que escreveu, Artemisa, haveria de a colocar no centro da tal balbúrdia, que neste mundo, olhar para santa ou para demónia depende tão só e apenas das dioptrias que se usam na alma.


A dita Anna, respeite-se a sua vontade, dedicou-se plenamente à escrita, à história de arte e à critica, atingindo alguma respeitabilidade no meio.
Até casar com um seu professor chamado Roberto Longhi. Dizem as más línguas que ela casou com ele mas nunca ele com ela.


E toda a vida se sentiu inferior ao marido, mantendo uma atitude de reverência ao génio. Mas já lá vamos ao desenvolvimento que espero sucinto.

O eminente ditador de opinião e do gosto, apresentou-a a Artemisa Gentileschi, uma pintora barroca da escola de Caravaggio, que teve a ousadia de, sendo mulher, usar pincéis e tintas para evocar temas mitológicos e religiosos, coisa impensável, ao tempo, na generalidade das cortes europeias, à excepção da de Charles I de Inglaterra, por onde Artemisa passou, atrás do homem que lhe haveria de comandar a vida: o pai (considerado, mesmo à luz da época, mais empresário egocêntrico que dedicado e zeloso progenitor).

Resumissem-se, pois, as mulheres a pintar (riscar) flores e líricas naturezas mortas, motivos mais adequados aos seus parcos cérebros derivados de neurónios de costelas.



Aliás, a tal Artemisa foi “esquecida” e abafada pela Igreja durante séculos, atribuindo-se a autoria, e a violência viril dos seus quadros, ao pai Orazio do mesmo apelido. Assim se determinou por invisível decreto.



Anna tornou-se amiga para a vida do fantasma de Artemisa.

Esta encomendou-lhe, do além, uma espécie de testamento teimoso que começa pela frase que haveria de entreter a dita balbúrdia ideológica: non piangere (não chores).

Anna escreveu tal prosa encomendada duas vezes: o primeiro manuscrito ardeu num bombardeamento da 2ª Guerra.

Com alterações, reescreveu toda a prosa que soa a desabafo acomodado, ou a ironia sarcástica (palavras chave na contenda), de auto-retrato. Cada um, ou uma, puxa a interpretação da obra à sua brasa.

Artemisa , teve vida agitada e não feliz. Andou de terra em terra, foi raptada por um mestre perfeito, violada, amante clandestina de um homem para si ideal, andou com a virgindade perdida pelos tribunais e finalmente casou (para lavar a honra do pai) e teve filhos, com quem admirava, agradecida, mas nunca amou.

Apesar disso, conseguiu continuar, até à morte do pai, o seu labor no território masculino, sempre afirmando a sua feminilidade.


Para as mulheres do início do séc. XX, incluindo as suas admiradoras, pela obra, Isadora Duncan e Martha Graham por ex., tornou-se um modelo pioneiro de como todas as actividades artísticas desenvolvidas pelos homens podem ser exercidas pelas mulheres, dependendo tudo, tão só e apenas, de uma questão de localização histórica e não de capacidade criativa.

Mas

Artemisa, de vida localizada no séc.XVII, era humilde.

Sempre referiu, à linguagem falada e escrita da época, a necessidade de qualquer mulher ter um mentor, homem de bem, que de mal também serve, que lhe oriente a vida.
Ninguém sabe se, na tal forma de fantasma, ditou a Anna as virtudes femininas que esta enumera no seu livro: a humildade para servir a carreira do homem (marido, pai, filho, irmão, sobrinho, tio,etc) dignificando-se através do seu sucesso, abnegação de si em prol da imagem social, fragilidade, condenação, pela ordem natural da nascença das coisas, a engolir a seco desgostos e eventuais solidões. Tudo sem qualquer tipo de questões quanto ao rumo. Obviamente. Os efeitos secundários das perguntas são dote masculino.



Artemisa sempre se apresentou como filha de Orazio; Anna, mesmo viúva, nunca deixou de pôr o nome de Roberto como cartão de visita. Orgulho por ter sido escolhida por Roberto. Uma espécie de certificado de garantia passado por Roberto. Uma esmola da clarividência de Roberto.



Quando assumiu direcção da revista cultural Paragone, de que o marido foi fundador, não lhe alterou a linha de pensamento.

Se bem me lembro, lá estão umas sovas opinativas, em escrita pomposa e contorcionista, a algumas mulheres afoitas de corpo inteiro como Pina Bausch ou Trisha Brown, referidas como masculinas na sensibilidade.

E se o seu Artemisa é dedicado a Roberto, bem como o lamento de viuvez que escreveu sob o nome de Un Grido Lacerante, a verdadeira antiga Artemisa dedicou os seus quadros a Orazio, fonte de toda a luz.

E mais: se ao longo de toda a obra de Anna se repetem as palavras desgosto, choro, grito, no trabalho de Artemisa repetem-se cenas metafóricas de vingança, amputação e dor. Para as feministas dos anos vinte e pós modernas dos sessenta, são imagens de verdadeira representação gráfica da justiça desejada.



Susan Sontag, considerou o ditado da fantasma como um extraordinário manifesto feminista de superlativa e subtil qualidade literária.

A representante da espécie de Mães de Bragança italianas, como um manual de bom senso e de como o trabalho, seja ele qual for, deve manter a ancestral, e por divina determinação , virtude da passividade feminina.

Qualquer mulher, feminina, que se preze, deve gritar muda e queda.


Eu, tenho a vaga ideia, de me ter deitado outra vez no sofá, então já a olhar para a dança nocturna e fresca da folhagem do limoeiro.

Se os livros saltaram da estante e se envolveram em brigas, bulhas, gritos, choros, lamentos, confidências, risos, debates, braços de ferro, posses de verdades, telepatias, não dei por isso. Adormeci!
Quando acordei, estavam desarrumados, como sempre, provavelmente em coerência com a balbúrdia dos sentimentos ao longo dos tempos.

Que me lembre, nenhuma sombra me segredou ditados ao ouvido.


E além de dançar folhas, o limoeiro, ou a limoeira, está mais preocupado em dar limões que em reportar guerras folhadas de ideias.
É o que me parece!