quarta-feira, 30 de julho de 2008

e em cumprimento de promessa segue

A conspiração do relógio teimoso



Vou tentar resumo resumido de trabalhos e análises de gente que olha para as mulheres neste nosso ocidental e primeiro mundo, desde sempre até ao tempo presente. E mais digo ser gente espanhola e americana. Existirão outras visões, mas não conheço.





Vou começar pelos anos cinquenta.

Então, dizem unânimes, que nesta época, como noutras que se seguiram a grandes guerras, as mulheres eram vistas em função da sua capacidade reprodutora. Os media publicitavam a família numerosa, harmónica e feliz: mãe fada do lar, pai trabalhador e esforçado. Honestíssimo.
Em Espanha, um Franco, síntese de ditadura e da mais conservadora Igreja, por pouco não legislava pela abolição da alma das mulheres.


Com os anos sessenta e setenta, em vários sítios, nasce o feminismo filho das incubações de Simone de Beauvoir: defende-se o poder (libertação) das mulheres através da cópia dos comportamentos masculinos.

Sectores mais fundamentalistas propõem o fim do aprisionamento das glândulas mamárias mesmo quando pujantes de volume e, em S. Francisco da Califórnia, damas exibem em orgulhosa manifestação poderosos e estalinescos bigodes, a par de densa pilosidade nas pernas. A parte positiva é que

nos anos oitenta as mulheres que já tinham frequentado escolas e universidades em massa, começam a exercer todo o tipo de profissões. Chegam aos quadros das empresas, inundam hospitais, julgam processos, projectam estradas e etc. Quer se queira quer não, o poder económico liberta. E o trabalho não é incompatível com a feminilidade.





Dá-se a liberdade de chorar e ter outros sentimentos fracos aos homens. Reconhecem-se-lhes a capacidade de ter afectos.






Na publicidade eles partilham tarefas domésticas, mudam fraldas; as mulheres conduzem carros e chegam a casa cansadas de reuniões e viagens. Giselle Halimi defende que não importa o tempo que se passa com os filhos mas sim a qualidade de afectos e formação que se transmite.

Avançando

Amos Oz, entre outros com a mesma temática, escreve um romance em que se desenrolam os conflitos, mesmo domésticos, entre a modernidade e séculos de educação patriarcal, e Lúcia Etxebarria no seu Amor, curiosidad, prozac y dudas, pega nos sentimentos e maneiras de estar no tempo de quatro irmãs. Se umas deitaram o peso história fora,






outras, por medo ou carência, preferem o comodismo da vivência com um prolongamento do pai.

A justificação das causas varia, mas nos anos noventa dá-se um golpe contra revolucionário: a ditadura de protótipos de beleza, o restauro dos viris comportamentos, a vergonha acompanhada de solidão da velhice




e o domínio das marcas.

Os media impõem um tipo de mulher ideal: a magra, andrógina, sem as marcas naturais da feminilidade. Em 1994 algumas revistas femininas, simultãneamente, declaram a vergonha da celulite, o horror das rugas. As pivots de televisão de quarenta e tal anos são substituídas por Barbies, que, mesmo lendo o teleponto, se enganam no uso das mais diversas línguas.

Nas (com excepções) revistas de moda, a imagem dos modelos é manipulada até ao impossível. Um grupo de estudiosos americanos reproduz uma dessas imagens em boneca real com estrutura e peso e …a boneca cai. É fisicamente impossível que se mantenha em pé.

Estatisticamente, por maior que seja o feito, poucas mulheres acima dos cinquenta anos aparecem nas reportagens. Mesmo a senhoras que assumem a idade e o corpo sem mágoa ou medo, como Meryl Streep, Kathy Bates ou Carmen Maura, são propostas operações plásticas e outras manipulações de imagem.

Algumas companhias de dança, rejeitam nas audições o talento em favor da beleza e tenra idade.

Reproduzem-se como fungos as clínicas de recauchutagem, e disparam os distúrbios alimentares. Publicitam-se cirurgiões plásticos como se fossem os novos santos milagreiros.
As empresas recrutam mais a imagem que a competência.

Brian d´Amato, historiador de arte, publica um romance, didáctico e denunciador, com desfecho tão aterrador, estética e clinicamente, como as metamorfoses de Mickael Jackson.




As multinacionais da cosmética, inventando máquinas do tempo, facturam milhões.

As revistas masculinas , e a publicidade em geral, reavivam o homem caçador e será de bom mérito apresentar presa nova, bonita, e já agora, com um nível de inteligência e cultura geral que não o envergonhe. É o retorno ao macho dominante e agressivo, bem treinado e estimulado através do conteúdo dos jogos de vídeo e séries como as Tartarugas Ninja. Também a eles lhes é proíbido deixar correr naturalmente o tempo. O Viagra assegura o esplendor dos vinte anos.





Algumas revistas ensinam às adolescentes eternas comportamentos e truques de sedução. Nada como cair nas graças do dominador e ir Nova Iorque, Paris, Roma ou Madrid fora, fazer compras sem qualquer tipo de preocupação ou responsabilidade.
Uma prostituição recíproca dos afectos, como costuma dizer uma amiga minha, directora de uma companhia de dança.

Em algumas séries de televisão e telenovelas, as mulheres autónomas são as más da fita, e as submissas, embora sofram no decorrer do enredo, no fim, são recompensadas com felicidade eterna.





As escritoras light Candace Bushnell, inspiradora do Sex and the City, e Lauren Weisberger descrevem um mundo de avaliações, cálculos e marcas ou não vestisse o diabo Prada.

E, embora isto já sejam nomes a mais para o meu gosto, Elizabeth Wurtzel, cruíssima de texto e linguagem, narra o dia a dia de uma adolescente, mestre em culpar a mãe de quarenta e poucos anos, de se ter divorciado e não saber seduzir homem que as sustente e lhe compre as roupas e acessórios que o subir na vida impõe e obriga. O trabalho e a dignidade não compram Chanel.




Nos EUA e em Espanha, confundindo o trigo com o joio, movimentos ultra conservadores responsabilizam o lado demoníaco e tentador das Evas e a libertinagem gay pela quebra dos valores ancestrais mandados seguir por Deus. E ,como profetas, ouvem a ameaça do Pai castigar com crises económicas, guerras e doenças.

Segue-se a propaganda utilizando o seu maior trunfo: a culpa.




Já desde a Movida em Madrid, que os padres em homilias avisam os rebanhos que o mundo está à beira do Apocalipse. Cabe às mulheres regá-lo com as santas lágrimas da resignação e aos homens liderar as hostes no bom caminho. Aznar chega mesmo a incitar à cruzada, com o grito de crescei e multiplicai-vos no sentido de manter a raça espanhola. Tony Blair exibe em retrato de família o seu filho tardio.

Afinal desde quando é que uma mera costela, tirada de um Adão em repouso, tem mando na vida?


quinta-feira, 24 de julho de 2008

Já que tanto a Vanda como o Alien8 falam de blues, apetece-me contar



a história atrapalhada do homem que mudou a cor no palco
ou seja

Alvin Ailey



Até ele não eram admitidos negros na chamada dança séria e muito menos no ballet. Pelo menos no ocidente vivia-se na alvura total. Para os mais escuros, ficavam os cabarets e outros antros menores como algumas récitas de baixo nível nos arredores da Broadway. E dançavam nos intervalos de outras profissões, preferencialmente as de carteiros, estafetas, empregados domésticos e boxeurs.

Alvin deu a volta ao destino escrito para ele como sendo à partida trágico. Nasceu no Texas em 1931 de uma mãe chamada Lula Elizabeth e de um pai pouco dado à família chamado Alvin. Ainda o júnior não tinha um ano e já o pai partia para destino incerto. Nunca mais apareceu. Como nunca mais apareceram outros pais de outros filhos. Mães solteiras ou casadas abandonadas eram fenómeno endémico. Basta ouvir a vida de qualquer uma.


E este filho que foi único acompanhou a mãe, de terra em terra, na sua luta pela subsistência, trabalhando em fábricas, em casas como criado, em clubes nocturnos e até como espécie de modelo.



Desde sempre teve pendor para as artes. Desde pequeno que desenhava, enquanto ia suspirando com os dotes dançarinos de Gene Kelly e Fred Astaire. E foi por causa deles que, à noite, começou a frequentar aulas de sapateado e ballet (este com um professor particular) , alternando com os estudos de literatura, que rapidamente abandonou. Para todas as cores os dias só têm vinte e quatro horas.



Conheceu e entrou na única escola de dança que admitia negros: a de Lester Horton.

Como não existem duas biografias coincidentes acerca de tal Alvin, daí ter chamado atrapalhada a esta história, vou tentar fazer a média das que li: se Lester o lançou, apoiou e apresentou à sua futura e influente mestra Martha Graham e lhe deixou de herança a companhia após a morte, Alvin foi indo e vindo dela não concordando com as opções estéticas de Lester. Nem com Lester pessoalmente considerado.

Apoiado por capital judeu, acabou por fundar a sua própria só com bailarinos negros, a Alvin Ailey American Dance Theater. Em Nova Iorque, como não podia deixar de ser.
Por esta altura ainda dançava. Mas em meados dos anos sessenta deixou o palco atacado de um incontrolável excesso de peso.

Falou sempre na memória do seu sangue, ou seja, nas vicissitudes positivas e negativas da condição dos afro americanos e resolveu levar para a dança toda a história musical e social dos da sua cor. Foi o primeiro.




Contra os fundamentalistas da cultura negra e contra os defensores da superioridade da cultura branca, misturou os movimentos da dança clássica e moderna com os dos afro americanos.
Coreografou blues, gospel,




canções de trabalho, jazz, passando por, e também, compositores de forte cariz americano como Leonard Bernstein, sem esquecer os adágios (lindíssimos) de Barber. Criou uma escola própria dentro da chamada American Dance.

Nos espectáculos de Revelations, a sua obra mais conhecida, conseguiu electrizar o público, como se de uma cerimónia religiosa se tratasse. As pessoas de todas as cores e feitios, levantavam-se, cantavam, batiam palmas. E continuam a levantar-se, a cantar e a bater palmas. Nem as distantes e frias gentes moscovitas escaparam, em tempo de Guerra Fria, à apoteose do ritmo e do entusiasmo.




E outra peça de referência, Cry, comovente, chamou a atenção para o sofrimento das mulheres em todo o mundo. Até morrer dedicou-a, especialmente, à mãe, como entidade simbólica.




Atitude corajosa sendo aquela cultura marcadamente masculina. Em muitos campos desde a literatura às artes plásticas muitas mulheres negras tomaram balanço e saíram do armário do esquecimento e indiferença, correndo agora pelas auto estradas mediáticas do estrelato.



Quebrou-se, com ele, o preconceito da cor: em várias companhias, até direccionadas para a dança clássica, abriram-se as portas ao talento sem olhar à raça, ao ascendente social, ao país.

Prova foram as visitas a Portugal, a convite da Companhia Nacional de Bailado, do carismático e envolvente cubano Carlos Acosta, considerado um dos melhores bailarinos do mundo. Ei-lo:



também aqui com a morena alva Ana Lacerda no clássico D. Quixote:



Alvin Ailey morreu em 1989 com SIDA. A companhia continua a espalhar história e dança pelo mundo sob a direcção de Judith Jamison, ainda hoje e apesar da idade, gazela de plasticidade indiscritível,




que alargou o elenco a todas as cores mesmo em fotografias a preto e branco:




Mesmo quem não tiver divindade à fé de semear que se esqueça, que se solte e…dance aleluia, ou allelluya, tanto faz que a arte mesmo quando presa é coisa espiralada que não se detêm.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

A caixa






Posso-me sentar?
Ai, obrigada!

Não, não vim com ninguém, ando sempre sozinha. Gosto lá de lhe dar trabalho…ficou em casa a ver um filme. Já trabalha tanto… e agora com aquela dor...


E olhe, habituei-me desde pequena, às vezes até prefiro. Assim posso fazer as coisas mais devagar, andar por aí, e ficar calada, sem ter que perguntar ou responder. Fico cá na minha vida, a imaginar coisas, a sonhar que a minha vida nunca foi esta. Que é outra. Que há-de ser outra.




Desculpe, se calhar está com pressa…

Desde pequena que fui sempre cabeça no ar, distraída. As professoras diziam que não era burra, mas de vez em quando perdia-me a imaginar coisas.

Não gostava de ir para casa. Gostava mais de estar na escola. Fazia-me aflição ver a minha mãe naquele sufoco, sempre à espera que o meu pai chegasse. Bebia muito, sabe? Juntava-se com os outros e já se sabe… Depois era só implicar. Metia a comida na boca, olhava de lado para nós e começava a embirrar com tudo. Chamava-nos aquilo…às três. Putas para aqui, putas para ali.



A minha irmã era mais destemida e foi-se embora mal fez os dezoito anos. Emigrou para a Holanda. Sempre foi um bocadinho fria. Distante.

Eu fiquei. Tive pena de abandonar a minha mãe. Tinha que a proteger. Talvez tenha sido um erro. A minha vida poderia ter sido outra. Sabe-se lá.

Veja lá que queria ser escritora. Achava tão bonitas as fotografias delas. Tão concentradas. A saber tanto das coisas. Com tantas aventuras.




Vivia outras vidas através dos livros. Ia às bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, se calhar já não são do seu tempo. Nem sei se as havia em Lisboa, aquelas carrinhas?

O meu pai foi ficando cada vez pior. Às tantas até com as minhas leituras implicava. O que mais me custou foi ver as outras irem para a Universidade e nós sem dinheiro. A minha mãe não gostava que eu dissesse isso, mas o meu pai só trabalhava quando tinha a corda ao pescoço. Podíamos estar a rir de quem se ria de nós. Mas era a cabeça dele. A minha mãe dizia sempre que no fundo não era mau. Sem a cerveja até parecia outra pessoa. Mas era mau. Egoísta. Talvez pela educação que lhe deram.



Depois casei-me. Não era bem o que eu tinha sonhado, mas deu-me apoio, segurança. Não bebia, não se drogava. Trabalhava todos os dias. Até arranjou mais um emprego para comprar a casa, ali nos Anjos. Deu-me orientação. Queria que eu estudasse. Mas sabe, quando se passa da idade… E vieram filhos. O costume. Tem-se lá disposição…
As pessoas não gostam dele, eu sei que não gostam dele. É aquele feitio autoritário. Sempre com a disciplina. Parece que está sempre a dar ordens. E, por causa daquilo que passou em criança, tanto está bem disposto como não se pode aturar. Assim de um momento para o outro. As pessoas ficam marcadas.




Isso? Não corre mal. Não demora muito tempo. Despacha-se depressa. Depois pergunta-me se eu gostei e eu digo-lhe que sim, que fui até ao fim. E depois adormece.

Sabe? É isso que me cansa. Às vezes ralho com Deus. Nunca fiz mal a ninguém, acho que já merecia um bocado de paz, de carinho. Penso como seria bom deitar a minha cabeça num peito forte e ficar a conversar, adormecer. Que alguém me acariciasse o cabelo. Me desse a mão. Me acariciasse o corpo todo. Me desse beijos sentidos e apaixonados. De repente. Que me fizesse rir.

Mas depois penso que tenho tido tudo; casa; os filhos criados e com emprego, tirando o mais novo, que está no liceu. Também já faz a sua vida. Nunca pára.
Está na idade de sair, já se sabe. Quem me dera ter podido sair. Mas o meu pai não deixava. Dizia logo que queria era cabrice. Andar com uns e com outros. Engravidar com o primeiro que me aparecesse.




Mas vivo neste medo. Com ele doente. E se me falta? Não sei se sou capaz de ficar sozinha. Nestes dias tenho tido este aperto aqui, no coração. Precisa de mim. Não reconhece, mas se não for eu quem lhe acode? Vejo-o a dormir e imagino-o morto.




Tenho que me levantar. Falta-me o ar. Parece que aquela imagem me fica na cabeça.
Onde é que vou arranjar dinheiro para pagar esta casa nova, com a vida como está? E o rapaz ainda a estudar…

Estou tão cansada, sabe, parece que já nasci cansada. E que hei-de morrer cansada.

Eu sei que tudo se resolve. Mas lembro-me sempre duma frase que aquela actriz americana dizia num filme, ai como é que era? Sou demasiado velha para ser nova e demasiado nova para ser velha! Acho que era assim. Se tivesse trinta anos talvez não estivesse assim tão assustada. Tinha mais tempo. Mais esperança.

Mas olhe, agora que desabafei, sinto-me um bocadinho melhor, mais aliviada.

Tomei-lhe muito tempo, não foi? Desculpe lá. Bem diz ele que às vezes não me calo, que aborreço as pessoas. Que só digo disparates.





Muito obrigada por me ter aturado. Desculpe o incómodo.
Boa tarde!

Quer que feche a porta?






( e acrescento mais esta em honra dos meus excelentes comentadores, e, já agora, gracias a vosotros, Carmen y Javier.)


segunda-feira, 14 de julho de 2008



e porque não ficaria de consciência tranquila se não contasse

a história da mulher que se vestiu de sombra




porque me lembro dela sem claridade à volta, nem que fosse verão luminoso, nem que estivesse à janela da marquise a seguir os pombos com os olhos. Hoje acho que os invejava no voo. Mas sei lá, na altura nem eu sabia qual seria a cor das minhas próprias asas quanto mais as dos outros, lá com aquela idade que eu ainda estava longe de entender que existisse.




A Tia Juliana era meia irmã do António Adriano, aquele ali de baixo. Filha da primeira mulher do pai. Ficou órfã cedo, e tomou de encargo os irmãos, especialmente o César, mais fraco. Talvez o considerasse a única ponte para a memória cúmplice da mãe face à autoridade da espanhola que a subtituiu. Não sei. Só sei que cedo conheceu o rosto da morte.





Parece que naquele tempo a infância e adolescência tinham um prazo de validade curto e na Primeira Grande Guerra, já Juliana ajudava a tratar os feridos dela regressados, como cabia, por influência e formação inglesas, às meninas filhas de oficiais de alta patente.

Dizem que se movia melhor entre os feridos de corpo e alma que nos salões onde se valsavam futuros casamentos.
Também dizem que era determinada, de acção sem lamentos, capaz até de conduzir ambulâncias por montes e vales.


Mas o lamento instalou-se quando o irmão morreu da doença dos pulmões, ao tempo eufemismo para a praga da tuberculose pulmonar.

E talvez para mitigar o desgosto e desafiar o destino, juntou-se a dois irmãos e uma irmã e através de Juromenha, logo no início, pôs-se ao serviço das vítimas da Guerra Civil Espanhola.
Enterravam comida e medicamentos e pela calada do crepúsculo ou da aurora passavam-nos aos estremenhos famintos e doentes.




Comoveu-se com as principais sacrificadas da guerra: as crianças órfãs , contrabandeando-as. Umas ficaram cá, sem que disso se lembrem, outras a partir da Ericeira, partiram para as Américas.





E com o Holocausto, servindo-se do gosto e aptidão pela estratégia, transportou para a mesma praia, judeus e outros perseguidos. Há quem diga, que elementos do Estado Novo fechavam os olhos à vista das moedas e bens dos refugiados. Não sei se será verdade. É coisa para a pesquisa dos historiadores credenciados.

Entretanto, já com uma idade considerada escandalosa para o efeito, até poderia já ser avó, apaixonou-se por um proprietário alentejano. Viúvo, com vários filhos. Dono de terras, touros e frequentador assíduo de prostitutas. Mas grande actor na vida solitária e carente.





Contra a vontade dos irmãos e das irmãs, que conheciam já os meandros astutos do mundo, casou. Vá-se lá saber porque é que o coração é tão ditador nos domínios da razão quando o amor torna a vontade cega.
E mudou-se para uma casa que possuía lá para as bandas de Campo de Ourique, mantendo a da Ericeira. Com estadas no Alentejo.

Orgulhosa ou envergonhada, não disse aos irmãos que o álcool, o jogo e as mulheres, levaram o marido a ir vendendo os bens que a comunhão lhe tinha trazido. Não se sabe se chegou a saber dos maus tratos que ele, com outros, infligiam a mulheres, a meninas, a meninos pouco dados à virilidade da mitilogia taurina, entre sobreiros, clubes e vielas.



Certo é que um dia, contava ela à volta de cinquenta e não quarenta como disse lá em baixo, António Adriano e outro, a foram encontrar em choque, sentada no chão da sala vazia, só com alguns caixotes.


Contavam que muito composta e digna, sem palavra nem choro que lhe explodisse em grito.


As casas principal e a de férias tinham sido vendidas, o monte alentejano posto em nome dos enteados e o marido embarcado em fuga para Angola.
Nunca mais falou. Ficou com as palavras secas a meio caminho do desabafo. Da humilhação.

Imagino-a como uma jarra oferecida que não cabe na decoração.
Acabou numa casa enorme onde já estavam outras mulheres e um homem. Tudo família. Acharam que ali tinha companhia e deram-lhe uma espécie de suite que fechava à chave.

Lavava as mãos vezes sem conta e tomava banho por impulso, esfregando-se até ficar à beira do sangue.

Naquela casa, de vez em quando, havia festas e lembro-me dela sentada numa poltrona, num canto escuro, muito direita, vestida de negro, cabelo absolutamente branco, altiva. Umas vezes observadora, outras de olhos postos num tabuleiro de xadrez com adversário imaginado.

Assim morreu sem aviso. Sentada. Sem som que se visse.

No quarto arrombado encontraram livros de gregos e romanos, relatos de batalhas históricas, alternativas estratégicas em desenhos , álbuns de fotografias com pessoas que ninguém conhecia,


imagens do rei D. Carlos, sapatos velhos e gastos de caminhadas, mechas de cabelo do César, aliança atada a uma guita, cadernos escritos com coisas que ninguém entendia, em letra miúda mas forte, recortes de jornais históricamente relevantes e arrumados, inúmeros discos de Beethoven e Mozart. Os despojos de uma vida cheia de interesses, segredos, vocações, sonhos. Com nome publicamente anónimo.

E uma frase repetida vezes sem conta, a vermelho, a confirmar que nunca fora muito intima com Deus :

o mal deste país é ter mais igrejas que escolas!


Assim ficaram os aposentos durante anos, intocáveis, por vontade dos irmãos.

Não fosse eu tão criança e teria escrito na porta

Este é o quarto onde morou o centro do silêncio.








Assim, sem mais, que o barulho pode incomodar o respeito.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Por onde andará o António?


O António nasceu no princípio do século XX, na mulher do meio entre os três casamentos de seu pai, militar de carreira, músico amador e virado à admiração e estudo do Império Romano. Assim baptizou este de António Adriano, outro de Marco António, mais outro de César Augusto e por aí fora nos sete rapazes e nas quatro raparigas todas elas com laivo de imperial nomenclatura.

Esta mãe do meio era espanhola e talvez por isso, conjuntamente com o irmão, meu avô, nasceu trigueiro e precocemente careca assumido, refilando com a progenitura por não lhe ter, a ele, pigmentado os olhos de verde. Toda a vida culpou os desaires amorosos pela falta de tal felina cor.



Casou aos vinte com moça de dezasseis, Milena, logo alcunhada de Senhorinha tal era a pose compenetrada do seu dever. Teve gravidez curta, pois ao fim de cinco meses nasceu varão de nome Cláudio Augusto. António, até morrer, e mesmo depois de a mulher ter mudado de casa, sempre a chamou de Minha Santa.

Abandonou para desgosto do pai, a carreira militar para se dedicar à música. E aos amores. Já eu tinha existência adolescente, quando me presenteou com uma das suas palestras em defesa da beleza de todas as mulheres: por mais feias que fossem havia sempre um sorriso, um olhar, um trejeito, uma voz, uma forma de andar…enfim um esteta já idosíssimo, com torcicolos constantes pela postura das contemplações.




Bom, mas passado pouco tempo depois de ter casado, conheceu uma americana e foi atrás dela para New Orleans




nunca deixando de escrever longas cartas disléxicas à sua Santa e ao filho. Prática que manteve ao longo de toda a sua existência.

Voltou em perseguição de uma mulher escura e bela, com outra das suas grandes paixões: o Jazz.

Depois de ter andado, clandestino, a transportar víveres e medicamentos para as sacrificadas e guerreiras terras de Espanha, trazendo de volta fugitivos para a porta de salvação para o lado de lá chamada Ericeira, dedicou-se a fundar uma orquestra de difusão da nova música.



Também como fugitivo, mas da ira dos pais, meteu-se a ele e à orquestra em cruzeiros de luxo. Giro pelo mundo em bailes marítimos. Voltava, como se tivesse partido no dia anterior. Sempre carregado de exóticos presentes.

Uma das vezes, deslocou-se a Granada, para tocar trompete até à exaustão, à beira da sepultura da mãe. Não sabia chorar as várias ausências de outra maneira.




Foi para o Brasil sem aviso prévio, como sempre fazia. Lá fundou escolas de música algumas delas ainda hoje mantendo o seu nome. Sempre acreditou na língua universal do solfejo. E na mobilidade das paixões. Súbitas como um ataque que lhe paralisasse qualquer razão. Ou qualquer afecto preso no tempo.

Depois voltava, com estadas cada vez mais prolongadas. Do salão da casa perto do Areeiro fez tertúlia. Quase diária. Sentia-se morrer se não tivesse ninguém à volta.

A sua Santa dava-lhe conselhos maternais, mas do exterior da balbúrdia.

Juntou fadistas, gente do Jazz, do flamenco e o que mais aparecesse. E conheceu Carmen Amaya, numa das suas visitas particulares a Lisboa, a tal que, acompanhada da família e dos guitarristas, lhe deu enxurrada de duende e saltou com taconeo selvagem para cima do piano.

António esbugalhou os olhos do coração e apaixonou-se até ao desespero. Ficou o polimento do instrumento riscado como relíquia. Face à indiferença, ficava horas a olhar os riscos. Ameaçou matar-se de amor, mas antes que fosse morto pela honra da dama, apaixonou-se por uma outra: voz de cristal, cheia de pranto, olhos fechados pelo trinado do sentimento.

Saltando uns bons anos, já me lembro dele, de calças sulistas onde caberiam cinco, sempre de instrumento debaixo do braço. Ou no carro. Onde quer que fosse.




Hoje zanguei-me com o clarinete, sabes onde mora aquela senhora de vestido vermelho? fiz as pazes com o saxofone tenor, deve ter uns quarenta anos, tem a beleza da maturidade, finalmente o oboé obedeceu-me, a elegância do virar da cabeça…, não sei o que tem a trompete, digna do altar mais dourado…





Ia trocar notas com o meu pai, músico amador.
A minha mãe desesperava com as pautas espalhadas pelo chão,
eu fugia de tanto si bemol e fá sustenido,
a minha avó, cunhada dele, embora dizendo-se sem vista, clamava: olhem, parecem os ceguinhos da Rua do Alecrim,
a minha tia, mais científica, temos aqui AVC, tais eram os trejeitos à reprodução do Glenn Miller ,
outra tia: graças a Deus que não há baterista.

Saltando mais ainda, estava eu em Madrid, desmaquilhando-me e vieram dizer-me que estava lá fora um velhinho com um ramo de flores. E lá estava aquele ser curvado, pequenino, escondido atrás de um ramo de rosas.

Saiu queixa sobre a traição filial. Podia lá ele estar de bem com o filho quando lhe queria roubar a namorada, rapariga brasileira com porte de gazela, o filho quase com setenta anos e...

ele com oitenta e oito…a merecer respeito.


Parou!

Foi juntar-se ao irmão, esperou pelo sobrinho e aposto que os deuses, ou os demónios, fugiram para outro Universo.

Já a transcendência não pode ouvir o estudo dos acordes de Woody Herman, ao som do riso triste de Louis Armstrong.




Oh when the saints go marching in...