quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014




Do Avô que abria as portas da noite com uma escada nos pensamentos.


Há muitos anos esta reprodução não assinada de fotografia exposta na montra de uma loja de quinquilharias,
daquelas que têm sininhos na porta e velhinhos  sorridentes como os dos contos em que entram fadas e duendes, chamou-me com tal voragem sedutora que não resisti a comprá-la. Esta e mais esta.


Lembro-me então de ter saído com o Miró e o Klee debaixo do braço.
 Via pública fora.
 Orgulhosa, e muito emproada e adulta por ter consumado a paixão com o meu próprio ordenado, na altura quinzenal.

Ainda hoje as duas fotografias moram lado a lado. Mais uma outra, oferecida, de Miró a brincar,  muito respeitoso e em vénia ao barro, calçando umas botas que o resumem. São o centro de outras que lhes fazem companhia na parede.

E, ainda hoje continuo a imaginar, com ternura, que Miró podia ser mais ou menos avô de toda a gente e Klee uma espécie de irmão do mundo inteiro.


Ainda hoje me diziam que Miró não faz falta em Portugal, que não é português. Foi coisa que me fez impressão porque não consigo ver fronteiras administrativas em Artes por mais debruadas a euros, em dólares ou ienes que sejam.

(Nem sei se Miró é espanhol OU catalão. Gosto mais de pensar que é espanhol E catalão.)

É sabido que os artistas, pelo menos alguns que são grandes, criam família na maternidade  da alma, do sonho, da História para além de inventarem e reproduzirem mundos que, infelizmente, poucos se dão ao trabalho de ver.
Ainda menos de pensar. E muito menos de sentir.
 Tudo ingredientes que alimentam a liberdade, aquela coisa que vive mais anafada  na ilusão que no corpo anoréctico e definhado dos dias.


E eu sempre gostei do avô Miró porque, apesar de não ser pessoa espalhafatosa e ter temperamento envolto em timidez, viveu a liberdade da forma mais difícil que se pode viver ou seja, de  dentro para fora.


Por isso sobreviveu quando Picasso (para quem Miró e Matisse foram sempre espinhos cravados na vaidade) e alguns surrealistas lhe simularam o enforcamento. E lhe queimaram obras.

(Na altura era moda praticar rituais de iniciação para pertença a uma espécie de irmandade em forma de sociedade secreta. Como devem pertencer todos os seres destinados a serem superiores ao resto comum da plebe.


André Breton viria a descobrir o ridículo e o fútil de tais brincadeiras quando levou a bofetada do terror nazi. Esvaiu-se-lhe aquela doença incómoda, entre outras, que é o tédio.)

Por outros motivos, outras obras suas teriam o mesmo fim, vida fora. Algumas foram mesmo retalhadas a lâmina, que é uma das armas preferidas pelo ódio. A arte, em particular os quadros, ainda não bebem cicuta. Que se saiba.

 
Apesar do ardor da corda no pescoço "campónio"  pouco ou nada batonizado nos bordéis, Miró continuou, mesmo que às apalpadelas, sozinho na via da sua criação.

 Isso de grupos secretos com chefe no altar da obediência talvez lhe parecesse, suponho eu, como ver a luz apenas pela frincha de uma porta fechada.


E Miró sempre gostou de portas escancaradas mesmo quando, na Segunda Guerra, se refugiou no colo da noite . No mundo onde a escuridão esconde a exuberância da vida não imediatamente visível. Ao longo da vida, para Miró a noite nunca se resumiu à morte em suaves ensaios.


Tinha o mote de um mestre hindú que vi escrito algures em forma de grafitti e fixei por me legitimar sossegos e desassossegos:

No que para todos é a noite está o poeta acordado. E isso em que todos andam despertos é para o poeta a noite.

Quando pintou as Constelações, cheias de estrelas, luas, pássaros, mulheres,


 reuniu todas as artes, para além das visuais, que lhe corriam na alma silenciosa e pouco académica: poesia, música e dança.

Por isso influenciou tantos coreógrafos, sobretudo americanos. Porque tudo nele sempre foi movimento. Em linhas ou em formas.

Aliás deixou descendência em várias formas de expressão.


Criou uma espécie de osmose e tornou-se único. Um avô com olhos de eterna descoberta à procura da pureza não inocente das histórias que todos os elementos lhe contavam.



Talvez por isso tenha dito que a pintura tinha entrado em decadência desde a pré história. Altamira marcou-lhe os traços. Outros teriam dito o mesmo da dança.

Também pintou  e desenhou muitas escadas. Algumas parecem escalas musicais. Outras são meios para atingir o que ainda não não se conhece mas que as artes hão-de encontrar.

É por isso triste, tão triste que a ganância cega do dia não perceba que ao vender os anéis perde sobretudo os dedos.

A ignorância é uma dor a longo prazo.


E ainda mais triste que existam escadas que nunca tiveram degraus.

 E muito menos uma cor para os sonhos.


Boa noite, Senhores!

2 comentários:

bettips disse...

Algo de criança que nos resume ainda.
Até dói.
Bjs

Lizzie disse...

Bettips,

que nos resume e amplia.

Se calhar cada obra de arte é um crescimento, um multiplicar para o mundo.

Só não tem estas dores quem nasceu com o tempo ao contrário. Ou quem não lê a caligrafia dos espelhos apesar da vaidade exigir um em cada centímetro de parede, de rua, de vida...de tudo.

Afinal o Churchill perguntava quando Londres foi bombardeada: se não fosse para defender a cultura estávamos em guerra porquê?

Bjs