domingo, 12 de janeiro de 2014

A tentação, Senhores, de falar neste de pré e pós funerais, de pré e pós demagogias, de pré tremoço e pós lagosta, de pré e pós "humildade" (conceito horrível), de como mais vale uma bola nos pés que um país a voar e outras oportunidades em saldo acabando na transformação de um dos mais emblemáticos cinemas de Lisboa, o Londres, em loja chinesa Paraíso à Vista, era grande.

 Em vez de tal prosa, que esperará um ano de acordo com a lei e a correcção, o post da Bettips e a paisagem  à volta e dentro da minha morada, empurraram-me para assunto que, talvez, me esteja mais na raíz da natureza.













Da mulher que adormeceu o mar.





Houve um tempo em que o mar e a demais água, se imbuíam de força reprodutora  e de tanta reprodução andavam furiosos à procura de espaço na terra seca que a molhada já lhes era parca.

Não se sabe há quanto tempo nos séculos, havia uma povoação em cima de rochedos virada para o oceano.
As gentes que lá viviam não ligavam nenhuma importância ao mar porque, como sempre acontece com rotinas e hábitos, o viam todos os dias.


Suponho que o mar, pelas mesmas razões, também não perdia tempo com as pessoas.


Um dia chegou a esse povoado uma mulher que nunca ninguém tinha visto nem sequer imaginado.
A mulher deambulante em qualquer hora do dia ou da noite sem disciplinas encomendadas, instalou-se numa gruta e não falava com ninguém a não ser com os pássaros, com as flores silvestres, com as árvores, com as pedras e com o que demais encontrasse e lhe desse ouvidos.


Dando-lhe na cabeça ficava virada para o mar sem nada mais fazer do que isso.

As pessoas tinham-lhe medo mas riam-se dela porque não entendiam as conversas que não tinha com eles e por isso a consideravam  doida ou bruxa ou as duas coisas em forma de mulher esquisita. É o costume.

Um dia as pessoas ouviram a voz do mar como nunca tinham ouvido.  Do murmúrio, que já tinham deixado de ouvir, por falta de reparo, tomaram-se de susto com o som de trovão em forma líquida.


E da calma tímida da água surgiram fúrias que saltando por cima do ar, levaram gente e casas como se fosse chegada a hora do fim do mundo.

Então, algumas pessoas assustadas e à espreita dos humores do oceano, viram a mulher caminhar até ao ponto mais alto das rochas.

Perceberam que contava uma história ao mar. Uma história de embalar, de palavras confusas e tontas. Eram palavras que viviam do outro lado do muro do seu entendimento.

E o mar adormeceu como se sonhasse sonhos longos de paisagens descansadas.


Quando a mulher acabava a história, viram as pessoas o mar acordar. Com mau humor,  pouca paciência e temperamento pedido emprestado ao vento.



À medida que os filhos foram pais, depois avós, depois bisavós, a mulher foi sendo menos vista nas suas loucuras solitárias.

O mar foi mostrando com violência saudades dela.


 Até que alguma memória ainda viva no meio das pessoas, lhes lembrou que quando acabavam as histórias se lhes podia acabar de vez o mundo.


Por isso, ainda hoje, as pessoas se reúnem  em pubs nas costas inglesas e contam e cantam histórias de que desconhecem o princípio  e ainda menos o fim e que podem ser tão doidas como as palavras da mulher dos rochedos.




Já agora, para contar essas histórias não é preciso ter nascido na Inglaterra, pois não, porque há uma pintora  que gosta tanto delas que as desenhou, em mistura com as que ouviu na Ericeira, que é em Portugal, quando era pequena. Chama-se a senhora Paula Rego.



As pessoas grandes que vão aos pubs levam para casa as histórias para adormecer as crianças que, às vezes, são tão inconstantes como o mar, ou pior ainda, quando lhes dá a pressa de crescer.

Eu lembro-me duma que começava assim:

Betty bought some butter,
but the butter Betty bought was bitter,
so Betty bought some better butter,
and the better butter Betty bought
was better than the bitter butter Betty bought before...


Também se diz que os ingleses, por contarem tantas histórias ao mar, o fizeram grande amigo e por isso
deram cabo dos espanhóis  nas batalhas navais e nas dos piratas.
O mar gosta mais dos que falam directamente com ele do que por intermediários como Deus. É o que consta.



Não sei se foi na altura das batalhas que começou aquela  que fala do cavalo que corria sem pernas e pertencia ao mensageiro da rainha que era mudo e que quando chegava à praça gritava com tal clareza a mensagem que o homem sem cabeça, que era padeiro, esfregava o nariz que era tão comprido...

que cada um, Senhores, se qualquer mar lhes bater furioso à porta, continue a história que eu já ouço a chaleira a ferver, lá dentro, no fogão...sem lume.

Com licença... não se vá a chama apagar...











2 comentários:

bettips disse...

De tanto mar alimentado,
nos alimentamos.
Abç

Lizzie disse...

Diria, Bettips, que é quase uma metáfora: um eterno viajante que se viaja a si mesmo. Tal coisa, claro, pode ser uma forma de alimentação.

Sem qualquer forma de viajem, por pequena que seja no tempo e no espaço,fora ou dentro, duvido que haja aquela coisa que se costuma definir como vida.

Talvez se fique com a alma em coma.

Bjs