De como
" O olho acostumado ao pó, depressa suporta a areia".
Foi deste provérbio judaico, avisado e avisador, que me lembrei, ali deitada no sofá, imóvel, presa nas placas eléctricas que me espalham durante uma hora diária, formigas histéricas pelos ombros e braços.
Depois das mãos, não sei para onde vão. Talvez infectem a televisão. Talvez comam o futuro do mundo. Não sei.
Também vou pensando que é inútil ter memória do que atrás aconteceu, qual enciclopédia. Mais importante, Senhores, é saber o PORQUÊ e o COMO do acontecido.
Tudo isto porque:
na televisão aparecem imagens da Novatada (praxes académicas para caloiros).
Corpos sujos, caras pintadas em simbologia tribal de que desconheço o nome, cola de contacto nos cabelos, serviços sexuais forçados, com e sem objectos, sem desejo nem remuneração que o amor é sentimento que parece ter ficado guardado na literatura antiga, aborrecida, obrigatória para se chegar ali. À Universidade.
Raparigas e rapazes, sobretudo raparigas, já sem fôlego e pouca roupa, rejubilam: passaram o heróico teste de vítimas, com glorificação nos respectivos facebooks e, para o ano, serão elas e eles os carrascos.
Segue-se uma entrevista a um Chef italiano.
Foi encarregue de confeccionar um jantar, anual e em Ibiza, para vinte e quatro pessoas de várias nacionalidades.
O manjar custa UM MILHÃO de EUROS.
A repórter gagueja. A apresentadora no estúdio perde as palavras e faz contas: quarenta e dois mil euros por comensal.
O Chef mantém-se seráfico e diz que não é caro dado o requinte. (Vá-se lá saber o preço da bofetada na Moral e na Decência nesta bolsa de descaro...)
Mostra os acepipes raros, que a mim, que sou de alimento, me deixariam cheia de fome, servidos em esculturas com diamantes e ouro.
Está certo que a televisão altera a realidade das coisas mas a mim as tais supostas esculturas lembram-me pechisbeque de loja de chinês, em versão de suposto barroco ibérico mas inspirado em imagem recolhida por máquina fotográfica avariada, editada em Photoshop por um amador míope mas eternamente sorridente.
O Chef acaba por dizer, sem nomes, que alguns dos vinte e quatro são personagens do futebol. Se comerão com a boca fechada, é questão que me intriga mais que me atormenta. Não fui convidada! Não percebo porquê!
Agora é o Toro de la Vega em Tordesilhas. Ou perto. O de hoje chama-se Vulcano.
Trata-se de festa em que o bicho é de tal forma torturado que até alguns dos defensores das touradas têm um ataque público de compaixão.
Alguns comentadores confessam que não conseguem ver as imagens. Eu também não!
A população justifica a crueldade pela orgulhosa tradição.
Já vem da Idade Média.
Garbosos mancebos universitários, porque os livros não ensinam tudo ou às vezes quase nada, dependendo do cérebro que os lê, ostentam as armas da tortura.
A extrema direita e a extrema esquerda regurgitam palavras de louvor às glórias populares: uns pela identidade regional da raça, outros porque o povo é sábio e soberano. Eterno, porque sem tempo. Infalível na razão e no impulso. Como convém.
A polícia protege os manifestantes pelos direitos dos animais, ou da civilização ou das duas coisas, das pedras dos festejantes. Uma Intifada de território consolidado. Desde a Idade Média.
Ai, Senhores, temo que se por ali fôr viajante, os meus olhos verdes me traiam a bruxaria secreta da cor e seja posta debaixo de lenha verde que, como se sabe, era usada para prolongar os suplícios dos filhos do Demo. Ou os mal sentados no colo de Deus.
Menos mal, porque às 19.30, muitos em muitas cidades, foram lembrar que a tradição morre quando a cultura se espalha e a civilização deixa ouvir os gritos dos inocentes. Seja lá qual for o formato das cordas vocais.
Das notícias sobre o racismo na Moda e na Dança que começa agora a penetrar nas mentes mais distraídas, falarei depois.
Desliguei o aparelho formigueiro e, já com as mãos livres,apaguei a televisão.
Às vezes pedem-me frases ou pequenos textos para que os bailarinos lhes dêem corpo e movimento.
Desta vez adormeci o meu desvario. E lembrei-me de repente da Sophia:
Quando eu morrer, voltarei para buscar
os instantes que não vivi junto do mar.
(Cuando yo me muera, volveré para buscar
los instantes que no he vivido cerca del mar.
Que a Sophia me perdoe que era pessoa para isso)
Lá em baixo, na esplanada, estão alguns, tão novos e ainda entusiasmados, e que iam morrendo de susto com o desafio, que querem saber quem foi a Sophia.
Fossem mais velhos, e mostrar-lhes-ia um do desencanto do Jorge de Sena. Mas ainda lhes é cedo. Embora já me seja tarde.
Mas enquanto conto o pouco que sei, aproveito para me esquecer das formigas e tomar um cacau quente.
À medida que o início da noite vai afastando as trevas.
3 comentários:
Senhora,
hoje, por ser um dia especial, vim falar-vos à casa grande; que a pequena, já o sabia, talvez por efeito da crise, já não está lá.
e, porque ando parco de palavras e de ideias, deixar-vos simplesmente a minha amizade e desejos de um dia muito bom.
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Muitíssimo Estimado Senhor:
que presente de aniversário foi este, o de aqui chegar e ver a vossa pontual e lembrada missiva.
Já por vastas vezes me tenho perguntado por vós. Já por estes caminhos tenho andado a ver se vos vejo.
Acabo sempre por vos imaginar recolhido, algures...mas presente. Pela noite.
Fico, portanto, duplamente feliz e agradecida pois, como sabeis, é grande a estima que tenho por vós, tão permanente neste mundo em que tudo parece fugir e em nada se fixar.
Logo vos falarei da Casa Pequena. Agora esperam-me para ir almoçar num sítio estranho que não conheço mas tem a ver com as minhas origens de várias nacionalidades e pensamentos.
Até logo, Senhor que vos hei-de levar, como Cavaleiro que sois, para onde vou.
Senhor, já voltei cansada das andanças deste dia e agora entro na noite que, pelo que vejo e não sei se por vossa vontade ou não, também é o vosso reino.
A Casa Pequena também me desapareceu da paisagem sem que eu a tivesse varrido. Não faço ideia como. Criei outra e para meu espanto apareceu nova mas com a decoração antiga. Tal e qual.
Reabri-a com a intenção de ser só de imagens e nada palavrosa mas tenho-me esquecido dela. Tal como vós, no ano que passou e agora, ando com a maior parte das palavras embrulhadas em silêncio. Passeio-as com menos frequência do que antigamente. Palavras cansadas são palavras tristes.
(Como me esqueci do facebook que fechei definitivamente por falta de uso ).
Penso que a direcção da pequena está no perfil da grande.)
Provavelmente, e porque me têm moído o juízo para tal, abrirei uma casa a sério de imagens e música numa outra zona deste labirinto virtual. De divulgação das Artes e de todas as coisas com ela relacionadas. Sabeis como gosto de misturas.
Se assim acontecer, pois darei notícia.
Espero que para o ano, se antes não for e aqui ou noutro sítio, nos encontremos. Apesar de todas as cordas bambas, reais ou provocadas, destes tempos. Quando os nossos pés pensavam já pisar, de forma descansada, terra segura...
Mais uma vez, Senhor, daqui aceno os meus agradecimentos e, como sempre, os meus respeitos porque a única bolsa em que sei jogar é a dos afectos .
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