Da mulher que usava estrelas mortas no cabelo.
Não sei porque me lembrei disto agora.
Talvez pela luz de Setembro, pela cor do ar, pela brisa que acaricia o corpo como um amante delicado, pelo casaquinho de malha de algodão, por ter falado na casa, pelo cheiro dos scones no forno e a manteiga de cabra das Astúrias à espera, por o verde já andar cansado, por estar a ouvir as sonatas para violoncelo ( que é instrumento que tem som , beleza e veludo de Outono sobretudo quando entra em pas-de-deux com alaúde) de Zuccari, ou simplesmente porque a memória não obedece a mando de espécie alguma. Sei lá...
Por isso, entrei naquela casa como se um filme fosse, muito do lado de lá, se é que me faço entender.
A medo. A personagem principal era senhora que com um olhar azul líquido, bem capaz de cortar ilusões e vaidades logo à nascença. Como é comum no temperamento hiperrealista judeu. De medir a expressão dos corpos ainda que parados.
De ter sublinhados mesmo nas letras mais apagadas e gastas que ninguém se dá ao esforço de ler.
A senhora tinha a sabedoria e a sensatez de armazenar tudo o que o tempo lhe tinha dado.
Não me vou demorar na casa, uma daquelas que são construídas e decoradas para se viver o que se é e não só para se estar como se adereço se fosse.
As casas a que John Dowd tem dedicado metaforicamente pintura e onde vou alimentar nostalgias da aragem que não esqueço.
Naquela casa, a Senhora tinha posto em conversa todas as Artes que lhe tinham completado, ou construído, a vida como seguidora de Wagner que era.
Arte que a incluía sem que desse por isso.
Há pessoas assim: mesmo com pinceladas erradas, podem ser uma obra de Arte. Pois podem, quanto mais não seja pela Arte que discretamente acordam nos outros.
Só anos mais tarde ganhámos maturidade para perceber que a memória, sorrateira, tinha filmado a personagem secundária que tinha aberto a porta. E mal sabia a personagem que haveria de correr mundo noutros corpos, acompanhada de muitas músicas e palavras, até estas em castelhano pedidas emprestadas a um poeta:
" Dibujaba ventanas en todas partes
en los muros demasiado altos,
en los muros demasiado bajos,
en las paredes obtusas, en los rincones,
en el aire y hasta en los techos.
..." (Roberto Juarroz)
Mais criação de Paula Rego que de silhueta Dior, tão em moda no cinema em modalidade Sarita Montiel: muita pestana postiça, espartilho com peito de ogiva nuclear impaciente na espera de explosão, tranças matemáticamente geométricas, bronzeado cosmético, traje imune à poeira da pradaria.
Índia do Texas, era conhecida por Apache.
Não que o fosse exactamente mas porque o nome Apache dava mais jeito que outros inpronunciáveis com aglomerados de vogais ou consoantes.
A Apache tinha sido adoptada pela Senhora quando era uma silenciosa empregada da limpeza numa companhia de dança do Novo México.
A Senhora admirou-lhe o quase constante mutismo pouco subserviente e altivo e a forma como parecia desenhar movimentos imaginários nos bordados abstractos das mantas de lã com que se ocupava nos momentos em que os bailarinos transpiravam o chão que ela haveria de limpar.
Acabaram por ir para o Massachusetts.
A Senhora para a casa principal e a Apache para um anexo.
A única mudança que Apache fez, a partir de então, foi para a casa grande quando repararam que tinham idade para se sentirem mal à noite. Ou durante o dia. Ou quando a solidão se esconde melhor com companhia.
Soube que nunca pôde casar e parir até à exaustão uterina, como lhe era destinado pelo género do nascimento, porque tinha sofrido alta febre amarela.
Na sua tribo considera-se que tal infortúnio coze o cérebro para toda a vida e não há homem que queira uma mulher de miolos cozinhados. São melhores as mulheres de pensamentos crus.
Não acredito que fosse pela febre mas de facto, do pouco que lhe ouvimos da voz arranhada, parecia que as palavras lhe saíam a arder.
Sei lá porque coisa, as primeiras sílabas saíam pujantes e as últimas não passavam de um murmúrio. Como o percurso da labareda que se dilui no ar.
Também não se ria porque tinha os dentes tortos com alguns medrosos de serem adultos. Mau agoiro para a sua gente habituada a usá-los como ferramenta de amor e guerra. O riso morava-lhe nos ombros. Sacudidos.
A Apache já estava habituada às mil repetições das mesmas frases musicais.
Na casa, habituou-se aos diálogos surdos com livros que nunca soube ler.
Aos movimentos solitários em frente ao enorme espelho onde a Senhora e a sala cabiam.
A Senhora deixou de estranhar as ausências da Apache, bosque dentro quando a Lua ia cheia. E em equinócios e solstícios.
Aliás, mais tarde, agradeceu as poções secretas feitas de ervas mágicas sobre as articulações gastas pelo movimento teimoso e sem parança.
Também deixou de notar o odor a petróleo com que a Apache massajava o cabelo, depois da touca pastosa de gema de ovo. Se um fortalecia o outro dava brilho e fortalecia ainda mais.
A Senhora, às vezes, chamava-a Apache Sansão.
Quando a conheci, tinha uma longuíssima trança de prata reluzente enfeitada com folhas de hera.
Dizem-me que eu disse na altura que ela andava com estrelas mortas no cabelo.
Não me lembro. Mas devo ter dito porque ainda é isso que me parece. Se fechar os olhos e ela voltar. Lá do escuro do passado.
Sei que depois da lição, ao som de Zuccari, entrámos um bocadinho dentro do bosque para ver as travessuras brincalhonas dos esquilos.
O sol já ia a meio caminho para o sono. As sombras eram já longas mais cedo.
No jardim, vimos a Apache ajudar a Senhora a sentar-se e a Senhora a puxar um pedaço de manta de movimentos para os ombros da Apache.
A Apache já se ia esquecendo que tinha frio. E fome. E que a sopa ferve com água. Disse-nos a Senhora. E que ia mandar construir um muro ou vedação no limite do bosque.
Suponho que era para a Apache ficar com as viagens presas ao chão.
Quando entrámos para o carro já estavam sentadas e acomodadas. A Senhora lia.
A Apache olhava para lá da espessa cortina das árvores.
Hoje, a este som de todas estas cores e silêncios apetece-me chamar Setembro.
Só Setembro.
E nada mais que Setembro.
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