Do inacreditável susto por um país que se esqueceu de existir e outras considerações à volta do mesmo
Uma vez um senhor de olhos risonhos, cabelo muito longo em trança prateada e pele que parecia casca de árvore andante disse-me, contente, que o calor era a luz dentro da vida.
Estava sentado ao sol, a talhar um pedaço de abeto com um canivete. Era Verão e estavam sete graus centigrados, um dos dias mais quentes do ano.
Foi o que ele disse mas não sei se era verdade porque se ria muito do nosso frio e dos gorros a tapar as testas por causa das eventuais maleitas sobretudo porque ninguém estava autorizado a beber chá quente com whisky ou whisky com chá quente,e,muito menos aguardente de bagos da floresta, daqueles que põem os ursos dançarinos e apaixonados.
Estou com nostalgia porque, deste lado do mundo e nesta época que era aquela, o calor não anda poético a injectar luz dentro da vida, anda sim, a bem dizer, a virá-la em churrasco.
Numa destas noites infernais até abandonei a biografia de Dante,
Fui ter às notícias num canal alemão com apresentadores muito compostos e com boa postura, ou seja, costas muito direitas com pose a três quartos. Já dizia um monge nórdico do séc. XVII que li por achar graça à prosa e de quem não me lembro o nome, que as corcundas são próprias das gentes flácidas mais ligadas a olhar para o chão que para o horizonte.
E depois chegou a vez do boletim metereológico, assim em mapa europeu azul sem fronteiras só com nomes de cidades. Lá começou na ponta oriental da geografia e eu à espera que chegasse mais para ocidente, para ver se podia dar descanso às ventoínhas e aliviar a conta da água.
E lá veio a Península Ibérica com a temperatura máxima para Madrid mas de Lisboa ausente.
Não por ser patriótica, que é palavra e conceito de que desconfio, foi coisa que me provocou mais alguma transpiração acompanhada de confusão mental com laivos de cinematografia porque me pareceu que estava num daqueles filmes em que as personagens pensam que estão vivas mas já vivem noutro mundo porque estavam distraídas no momento da morte.
Lembrei-me até se a minha amiga alemã que vem a este sítio, que não consta do mapa, sempre que pode, não será alma penada no espaço intermédio. E como é pessoa que muito prezo já nem sei há quantos anos, assustei-me porque deve ser muito triste andar assim em estado indefinido, sei lá se em coma profundo e com respiração assistida.
Depois seguiu-se um programa de agenda cultural, muito bem feito e de fazer inveja à oferta nacional porque na Alemanha a cultura,exilada ou não, sempre rejeitou suicídios, e a minha confusão aumentou porque apareceu Lisboa, sim senhores, tendo como cicerone uma rapariga que pertence a um grupo musical, qualquer coisa Estrada (confesso que conheço pouco de música portuguesa), e que em pleno Chiado, disse que antigamente ali tinham montra muitas pequenas lojas, agora desaparecidas, o que era uma pena. Esqueci-me da nostalgia e tornei-me empática.
O narrador, que não ela, andando pelo Bairro Alto, disse que o Fado era coisa muito antiga e já fora de moda. Ora eu ia jurar que ainda há pouco tempo tinha estado com uns vivos de Madrid a ver e a ouvir vários fadistas, alguns ainda de voz nova e em bruto.
Mas, embora beliscando-me, não me fiei no meu estado vivo porque já não seria a primeira vez que "fizeram eles as pessoas acreditar por meio de ficções hábeis, como as que ainda agora são difíceis de entender", que o que parece está muito longe de ser.
Seguiu-se outro noticiário e os apresentadores fizeram saber que os mercados tinham tido um ataque de nervos (nos tempos em que eu ainda tinha a certeza de estar viva lembro-me de os achar muito temperamentais, do tipo sanguíneo, imaturos, a precisar eventualmente de psicanálise), por causa de uma crise em Portugal e outra em Espanha. Ou com Espanha que andava muito desobediente com a insolência de falar alto e refilar à mais pequena ordem de juízo.
Lá apareceram o Rajoy e o Robalcava numa festa madrilena com o retrato do Rei ao fundo e, Senhores, a praia de Carcavelos cheia de gente a pisar o mar mas sem fotografia de ninguém conhecido no horizonte.
A propósito falou um senhor, que não é alemão, e que me fez lembrar a minha vizinha na fisioterapia, que tem um filho engenheiro e já chefe (" que vida é tão humilde a ponto de não ser tocada pela doçura da glória?) e uma filha que estuda em Lisboa e tem traje académico,que a mãe passa amiúde a ferro, que martirizou a fisioterapeuta (mulher de viagens e concertos) e demais ouvintes (como o desempregado com idade demasiado pequena para ser velho e farto grande para ser novo)
que não estavam na praia de Carcavelos, com as queixas indignadas em relação à sobrinha desempregada e a quem emprestou dinheiro e teve o desplante de gastar dez éros numa blusa Doce e Gurbana comprada aos ciganos em vez de ir aos chineses que as têm bem bonitas por cinco além do namorado beber mines ao jantar em vez de água da torneira.
Embora sem estatística credenciada, devo dizer que a maioria, poupada, atenta e com consciência de culpa, concordou com a aleijadinha contida nos gastos e sóbria nos prazeres.
Era já quase madrugada, andava já o dedo indicador cansado, e percebi que estava morta já que em nenhum forum de discussão ou mensageiro de notícia, fosse qual fosse a língua ou a pose, se falava nesta espécie de Junta de Freguesia de Portucale de Baixo.
Inquieta, desliguei a televisão e arrastei-me para o computador. A minha amiga alemã, que não é de madrugar e ao fim de oito dias no Sul já aprende a dormir a sesta, convida-me para ir lá ver um espectáculo de celebração dos 200 anos do nascimento de Wagner em que participa. Respira, penso. Depois diz que vem a Portugal passar um mês. Finou-se, estremeço.
Depois voltei ao leito, já o sol vinha sem brisa nem nuvem incendiado de ameaça.
E lembrei-me de uns versos cantados, ouvidos sem lá em que lonjura de tempo ou em que geometria de espaço ou em que temperatura:
If you miss the train i´m on
You will know that i am gone
you can hear the whistle blow a hundred miles
a hundred miles, a hundred miles, a hundred miles
You can hear the whistle blow a hundred miles
E suponho que, finalmente, adormeci.
4 comentários:
Neste feixe... que te diga? Rio-me, choro-me, aprendo-me.
Bjinho
Ai Bettips,
e eu continuo confusa. Já dei a volta ao mundo, praticamente, e em muitos sítios, a bem dizer quase todos, cá o burgo não existe. Com ou sem fronteira, nem cidades, nem calor nem frio, nem céu geralmente muito nublado, nem figuras que me provem que o rectângulo ainda existe. Nada!!!
Cá para mim foi varrido pelo desprezo para debaixo do Oceano. Afogado pelo esquecimento, embrulhado em ilusão.
Para este ou para qualquer outro é triste. Como uma casa abandonada, devorada pelo tempo.
Bjs
Sabes onde vejo o estado do tempo? Aqui na BBC Weather que conhece o Porto e tudo. Ou não fossem eles, british, todos adeptos do vinho do Porto há séculos e sempre muito dandies, quase feminis nas suas poses galantes, muito caçadores, muito golf (adas); daqui passo ao touro que os pariu.
E acho que sim, suminho de fruta, não te advirá daí mal à língua!
A arte é pródiga em aspectos chocantes, de mau gosto alguns. A evitar. Tenho para mim que essa do touro e touradas está bem explicada pelos genitais que se querem exercitados "no ponto". Seja a vê-los seja a sugeri-los. A espreitá-los. Nenhum homem consegue abstrair-se da importância vital da sua ferramenta. Por isso a mostra, em espingardas, em carrões, em cartazes e postos de comando, em botas altas, em pingalins. Tê-los no sítio é sinónimo de poder: a sociedade aprova, dá sempre jeito um "fétiche" que te distraia do essencial (se tens educação, pão, saúde..)
Beijinho
Pois Bettips, e a a gravata que é a espada de pano trazida ao pescoço e que os homens ajeitam, endireitando-a, quando se sentem ameaçados e/ou estão prontos para atacar.
Há pelo menos dois políticos portugueses que têm esse tique. Remexem-se ligeiramente na cadeira, que é o cavalo, e pegam na espada.
Há outro que não pára com os olhos quietos. Precisa de quem o acompanhe, lhe dê instruções. Não está bem onde está. É uma espécie de soldado na guarita. Tem medo das perguntas, atrapalha-se no início das respostas. Passa a mão pelo queixo. A gente já sabe que tem barba. Feita, mas barba. E ataca.
Nos políticos espanhóis é uma festa.
Nestes pormenores, meros exemplos, estão milénios do aprender a ser touro de lide, de cobrição ou simplesmente touro. Apesar dos conselheiros de imagem, está tudo lá, até à border line limite do patético.
O que é dramático é que ainda hoje tais demonstrações sejam ensinadas e absorvidas. Os touros continuam a ser selvagens, as vacas continuam a pastar, de olhar doce e meigo, eternas ruminantes de ilusões. Fadas da erva.
Na generalidade, aos toureiros e aos jogadores de futebol, são atribuídas várias namoradas bem como filhos que nem se lembram de ter feito. Não são eles que têm que se lembrar, obviamente.
Vejo isto todos os dias, com menos celebridade, à volta da minha morada. Tudo o resto passa ao lado.
Curiosamente e grosso modo, em tempos de revoluções, a roupa sempre lhes salientou a parte taurina. A China foi excepção para que os coelhos se confundissem com as coelhas: roupa larga e de igual corte, embora o Mao...
A propósito de língua, não botei o nome da pintora portuguesa por uma questão de respeito. Não gosto da filosofia da obra mas reconheço que, formalmente, é de muito mérito.
Também podia ter botado imagens referentes ao tema, principalmente dos anos 60 e 70 mas não gosto.
A maior parte é choque a que falta a subtileza da inteligência à mistura com um certo narcisismo. O que me aborrece é que é quase toda feita por mulheres, pósmodernas, ainda com a prisão de tentar imitar os homens. Felizmente foi coisa que foi passando.
No meio disto tudo, com cultura, talvez um dia, os "touros" se esqueçam de vestir roupa encomendada.
Bjs
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