terça-feira, 17 de maio de 2011

Como o prometido é devido, cá segue prosa


De como o pão é filho das mulheres e das formigas


Parece que no princípio, os deuses do Norte na circunferência do Mundo e quando criaram os homens e as mulheres, as mulheres e os homens, os fizeram complementares mas sem que um fosse mais adereço ou fraco que o outro na decoração da vida.



Por isso, deram força muscular aos homens e boa visão à distância nos campos, além da capacidade de produzir sementes fecundadoras das mulheres.

Às mulheres, deram a capacidade de gerar a vida dentro delas e visão aproximada, virada para a atenção a tudo quanto é tão pequeno que nem os deuses notam a existência.



Um dia, enquanto os homens andavam na guerra com outros ou na caça, não se sabe ao certo qual a habitual circunstância, as mulheres, como sempre, andavam a vaguear com os filhos, nas redondezas do acampamento da terra que tinham escolhido naquela fase da lua ou do sol.


Também como sempre, andavam de olhos no chão porque, como toda a gente sabe, por mais filho que se seja, nunca ninguém nasceu com asas e por isso mais se gatinha que se voa.


E encontraram as formigas que, ao que consta e já naquela altura, eram seres de grande ciência e engenho, agricultores, com grandes rituais de banho e com mais respeito aos mortos e aos vencidos que alguma vez as mulheres tinham visto e apreciado nos seus guerreiros e caçadores.



E as mulheres viram que as formigas arrastavam, com grande esforço, uns pequenos grãos para as suas moradas e que deles todos comiam depois de outras formigas os transformarem em pó e que esse pó assim as alimentava mesmo quando as neves vindas do céu queimavam todo o calor da abastança dos homens.

Mais viram as mulheres, observadoras como os deuses as criaram, que as formigas não andavam com as tendas às costas e que nunca escolhiam poiso definitivo muito longe dos rios ou outras fontes de água.

Ora o Vento ( entidade muito ligada à música e à dança e de que também hei-de falar com honra), que lá pelas bandas da Inglaterra, Germânia, Escandinávia e Nativos da América do Norte, era naquele tempo também Deus completo, com os seus dias de bom humor virado à generosidade ou neura teimosa e destruidora, resolveu soprar os grãos que as formigas tinham deixado para trás, depositando-os em pequenos buracos na Terra.

Abreviando, desses grãos cresceram espigas cheias de muitos grãos que as mulheres moeram, como as formigas, até ao pó que depois amassaram e cozeram e a que todos, em várias línguas e modos, chamaram o pão nosso de cada dia.

Quando os homens voltaram dos seus afazeres distantes e distraídos das pequenas coisas que dão vida ao mundo, encontraram as mulheres a engravidar a terra com as mãos regando-as com o sangue que saía pela foz do seu ventre a cada volta da lua e a dançar uma dança com os braços a imitar as espigas de cereal em acto de amor com o vento.

E as mulheres disseram aos homens que não partiriam da terra por elas engravidada e que tal como as formigas, ali queriam casa com parança.
E que haveriam de dançar rente ao chão em cada nosso mês de Março e em cada mês de Agosto com os braços a agradecerem ao sol.

No séc. XVII, um monge inglês em viagem por território índio, além de descrever as tais danças com pormenor exaustivo, chamando-as de parábolas, viu-as como representação e presença da Virgem Maria (também ela, como a terra recebeu a semente divina e daí gerou o alimento da salvação).



Também escreveu que, para o futuro, valia mais aquele ouro que o outro que os espanhóis ratavam no sul. D. Quixote, na sua loucura acertada, disse o mesmo.

As mulheres determinaram que em cada grão estava o seu corpo e o seu espírito e que por isso o pão nunca deveria ser pisado e se, por distracção, o fosse, devia ser beijado.

E que nunca nele entraria gume e que só as mulheres o haveriam de partir e distribuir com as suas mãos. Mais tarde, quando Cristo substituiu os outros deuses, também às mulheres coube fazer o sinal da cruz por cima do pão a ser amassado.

E que quando se enterravam os mortos, no conjunto de bens que os acompanhavam, sempre devia ir um pão, colocado junto ao coração (nos índios homens porque nas mulheres é posto em cima do local sagrado que é o ventre) ou junto à cabeça (Inglaterra e Norte da Europa).

Também é por isto tudo que ainda hoje nos Nortes, Europeu e Americano, existe a coincidente tradição de as mulheres porem uns grãos de cereal no parapeito das janelas para que o vento os leve para junto dos viajantes sem rumo a quem a fome ameaça e a solidão fere.


E ainda lá para cima na Europa, se diz que quem não ganhar o pão com o suor do esforço há-de ser renegado pela mãe que o gerou e escravo de um destino que o engolirá para uma terra eterna sem luz.

Tal como uma criança não deve ser deitada nua no chão, também o pão deve ter sempre como resguardo, na terra ou na mesa, um pano, prato ou outro apetrecho protector.



Também em terras inglesas se vêem umas pedras que não são mais que mulheres más que assim foram castigadas por terem recusado oferecer pão a quem o pediu.

E ainda hoje é tradição nortenha guardar uma espiga de cereal dentro de um livro para que a sabedoria e a curiosidade cresçam sem esmorecer.


E, para abreviar, que a lista é longa, todos os países do sul e do norte, do leste e do oeste, em situação de crise ou guerra, apresentam à lenda ou à história uma mulher ligada ao pão como salvadora. Que a Padeira de Aljubarrota me desminta…

No princípio do séc. XX, também as mulheres, americanas, sobretudo, e seguidas pelas alemãs, amassaram novas formas de dança a que hoje se chama moderna.

Foram buscar inspiração a estas primeiras, de olhar e corpo afoitos virados para a criação expressiva, desprezando os bibelots dos movimentos domesticados da dança que então se praticava.
Mais lhes interessavam as forças ancestrais vindas do feminino que os artifícios das pontas e dos tutus.


Embora com interrupção nos anos 60 e 70, carregados nestas coisas de um intelectualismo hermético, tal instinto da ligação às pequenas coisas da terra que se alojam no coração e correm como movimento ainda se mantém.

Como a beleza da literatura das mulheres escandinavas que, séc. XX entrado, se resumiram em pão esforçado.

Todas tão gigantes como a formiga que arrasta a migalha e dela faz, silenciosamente, um universo.


9 comentários:

bettips disse...

Uma beleza Lizzie
como entrelaças a dança do pão e das mulheres!
A perenidade dos gestos ancestrais, as motivações e as tradições, gostei muito de ler - e saber.
Pareceu-me à lareira um conto.
Bj

augusto, um entre mil disse...

Senhora,

corri aqui mal o meu pc ficou arranjado (mais ou menos pois está um bocado diferente e fiquei sem algumas coisas).

e, Senhora, lhe digo que compreendo perfeitamente bettips quando fala num conto à lareira.na verdade de novo conseguisteis transportar-me a um mundo de muito trabalho e esforço mas que dito por vós parece um mundo encantado.

e, mais uma vez me rendo ao vosso saber...

Lizzie disse...

Bettips e Senhor:

já que estamos à lareira, falo para os dois. Que má educação seria, tendo-os aqui sentados, falar às fatias.

Também mau seria se eu, desculpai Senhor que sois homem também escarafunchador, sendo mulher não andasse a escarafunchar nas raízes das coisas para as entrelaçar.

De facto nada existe sem que surja entrelaçado com o resto.
E quanto mais se escarafuncha mais se encontra para escarafunchar e se percebe que as folhas que agora são, têm nos tempos os veios do que já foram.
Por isso acho graça aos historiadores das coisas pequenas. Mais do que aos chatos das coisas grandes.
E por isso não gosto das definições de tamanhos e acho que tanto as formigas como as cigarras são enormes e

Bettips, uma cabana pode ter o tamanho dum palácio,uma rosa pode falar mais que um arrebitado jardim francês, não achais Senhor?

É engraçado! Sabia lá eu que vinte e tal anos depois de ter andado às voltas, a inspirar-me no esforço de Kristin (a personagem principal criada pela minha adorada escritora Sigrid Unset) para cultivar umas espigas naquelas terras nórdicas forradas a gelo, a tentar passá-la, à Kristin, para mim, a misturá-la com as vozes sacras dos Lamentos de Jeremias do Tallis, voltaria a misturar pão com dança mais tradições e assim...

Portanto muito vos agradeço a presença: quereis "toalha de pão" com mirtilhos? É manjar delicioso, fruto de afecto, que qualquer anfitriã deve servir aos convidados.
Dizem que é coisa ancestral e grande e se come onde há concórdia.

Beijinhos e respeitos, tanto uns como outros bem alimentados.

Lizzie disse...

...e, já agora,a toalha de pão (penso que se pode traduzir assim) é uma espécie de pizza gigantíssima feita de cereais ou bolota, esta no caso dos índios.

Estes regam-na e forram-na de frutos silvestres como forma de homenagear a terra e as mulheres perante os convidados. É oferecida primeiro aos homens.

Na Europa nórdica e em algumas zonas de Inglaterra,existia o costume, que ainda existe como símbolo, de as mulheres abastadas fazerem elas próprias as tais toalhas com carne e respectivo molho para serem colocadas na via pública de forma a que os pobres mais pobres se alimentassem.

bettips disse...

Toalha de pão repartimos, pois. De mirtilhos, se os pudermos encontrar aqui, que é coisa incomum e cor de sombra.
E não me fales dos jardins franceses tout court que: you see one, you see them all!
Fala-me antes dos miniaturiais jardins chineses ou japoneses, donde vês o universo das pequenas coisas, águas, pontes. Quando soube que os bonsai eram feitos, podados e criados para podermos ter a vista do voo das aves, fiquei encantada (contudo, gosto também das árvores majestosas, as que desafiam nuvens, e das novas, versáteis e cariciosas à beira rio).
Fala-me dos tufos selvagens, dos poliedros, dos meios círculos, dos cantos sem forma, incluindo as ervas e as pedras, dos belos jardins ingleses onde cheira a lavanda e o verde é um verde húmido de túrgido.

E a última imagem, a sua saia comprida e a meia penumbra, fez-me lembrar a minha avó, acendendo a lamparina da sua devoção, às escondidas (eu trincava as rodinhas cor de rosa que boiavam no azeite... era cera cor de rebuçado) e a luz que velava as nossas noites.
As minhas coisas são coisas caseiras: o teatro de falas que fazia com as personagens diversas (roupas penduradas nos pregos que eu ia trocando de lugar); os gansos selvagens e as cascatas, os monstros e fadas nos sulcos da cal. O meu canário a acordar-me pousado em cima da minha cabeça dormida.
Ficaremos à volta duma mesa qualquer, com a alegria de beber juntas e falar de coisas boas-belas.
Esquecendo a dura verdade de que só a imaginação nos pertence totalmente.
Bjinho

augusto, um entre mil disse...

...e, já agora, permito-me deliciar-me com uma pequena fatia da toalha de pão que me foi oferecida. sim, somente uma pequena fatia pois, há já quarenta anos casado com uma meiga e vigilante diabetes que não me permite abusar dos hidratos de carbono, raramente me permito eu contrariá-la para não lhe dar desgostos.

mas, se não posso exagerar no prazer da comida, sinto-me compensado com a conversa que aqui escuto.

e deixo os meus respeitos às duas senhoras.

Lizzie disse...

Bettips e Senhor, Senhor e Bettips:

uma pessoa olha para um jardim francês e pensa em fadas enclausuradas em regime rocócó como o eram as pulgas prisioneiras nos caniches de Luís XIV.

Em quase tudo, prefiro a desordem inglesa: nunca se sabe quando um mocho levanta uma pedra ou um rouxinou canta as loucuras de uma lady que se transformou em árvore depois de atraiçoada por um clandestino amante pirata que prefere o amor das ondas e dos mastros.

Por acaso, nas danças e na arte sempre se passou, mais ou menos, a mesma coisa: distingue-se a mais instintiva, selvagem beauty da tão ostensiva pretty.

Também achei graça aos jardins das zonas índias onde, se casam flores e ervas consoante o valor que as mulheres, tão nelas entendidas, dão.

De certeza, Senhor, vos dariam beberagem delas feita para tornar vossa esposa diabetes de tal forma meiga e servil que se recolheria aos seus complicados e ágrios aposentos de forma a que pudesseis, sem pecado nem culpa, banquetear-vos em mesa farta junto dos Hidratos de Carbono e dos Açucares e dos Alcóois.

Há dez anos, Senhor, que os físicos me avisam para ter cuidado com um esposo da família da vossa. Notam em mim tendência para tal matrimónio muito embora eu não seja muito de me dar com a gente dos Doces. Prefiro os Salgados.E os Picantes.E os ácidos.
E nem querem que faça um simples e único cumprimento aos Whiskies quando chego a casa.

Pronto, não comemos sopa de bolota com peixe. Ficamos por cogumelos que parecem chapéus de coco e crescem nos troncos das árvores, salteados com ervas e pimentos verdes raiados de branco como os melões.

Tenho várias bonsais que foram mas já não são porque me pareciam árvores com sapatos apertados.
Vai daí, Bettips, vou-as mudando de vaso, calçando-as de chinelas folgadas.
Ficam com o mesmo feitio de corpo retorcido e balético mas crescem tanto que já me ultrapassaram (também não é difícil) e não tarda estão a fazer cócegas nos pés das nuvens. Ainda bem.

Eu trato-as todas por Pinas porque para a Pina Bausch qualquer bailarina abaixo do 1,70m seria anã. E assim consigo, na brincadeira, irritar alguém que conheço.

Essa tua lembrança da tua avó parece-me acolhedora e espero que assim a sintas porque as memórias confortáveis vão almofadando sempre os acidentes dos terrenos.

Cá para mim, esta fotografia (fotograma)caiu-me no colo tal como a Sigrid Unset, no exacto momento em que delas precisava.
Por acaso, uma amiga, sem saber, mostrou-me a escritora de que muito gostava. E um dia entrei numa loja, tipo alfarrabista, e dei com os olhos na fotografia. Misturada com muitas.
Comprei-a e ainda hoje a tenho pendurada.

De certa forma, é um marco forte como tudo em que o medo dá lugar à ternura.

Senhor, duvido que hoje tenha ainda tempo de mudar a decoração à casa. Mas como sempre, convosco não faço cerimónia...

porque, como sempre, vos respeito e mando beijinhos à Bettips.

bettips disse...

Ai que logo que tenha tempo vou à procura da tal Sigrid ... porque há coisas que a gente descobre tarde "mas mais vale tarde..."
Há um pequeno vídeo dum filme recente da Pina Bausch (que nem filme nem dona-senhora tive o gosto de ver), feito por Wim Wenders, onde esbracejam borboletas, conheces?
As bonsai tens toda a razão, penso o mesmo, só achei graça à ideia (de vermos como as aves...).
E hei-de ter por aí algures fotografias muito antigas que nem sei de quem são, que uma vez me deu a maluqueira de comprar: alguém me perguntou "conheces?" e eu respondi "não, mas são olhos do antigamente".
Passemos ao good food dos encantados jardins ingleses - ou às picantes traquinices dos queridos españoles (que por acaso agora me ensombreceram nas viragens), e assim dito, sendo só a gordura a equilibrar adelante, vou nas todas.
Estarei fora uns dias mas deixo-te uns abraços e uma pena imensa de não conhecer nadinha de jardins índios.

Lizzie disse...

Bettips:

os jardins índios (do norte)são irmãos dos ingleses. Romãnticos e onde, nos riachos, cantam os espíritos que acompanham a água desde que esta nasceu.

Ali não convém falar castelhano, não porque estivessem naquela zona mas pela fama que criaram lá mais para sul. E holandês também não. Nem alemão.
Inglês... à vontade...
Afinal, têm algumas características comuns, como o respeito pela individualidade e o culto da natureza. E por isso coabitam pacificamente no mesmo território. Até as tartes de amora são parecidas.
As diferenças são sobretudo políticas. Há ingleses que são Conservadores na Inglaterra mas nos EUA são Democratas enquanto os índios são sempre voto garantido nos Republicanos.

Engraçado falares em esbracejar: a Pina revelava mais com os movimentos dos braços do que com palavras ou olhar.
Criou até, mas através das coreografias, uma série de esbracejamentos que eram e são assinatura porque... são naturalmente ela.

Daqui a uns dias também vou zarpar:))me voy yo por tapas, qué me están dando ganas, pues sí, cómo no?


Bons dias de ausência para ti e beijinhos