A dança dos ausentes
Vem o presente a dois propósitos: o da estreia de uma dança-teatro em Madrid, esta semana, com base no tema e o de o meu maluquinho de estimação não me ter, hoje, vindo pedir o cigarro matinal do costume, a uns metros do mais que obrigatório, para nós os obedientes, sinal de stop antes do cruzamento.
É homem que vira os dias ao contrário e tem relógio nas estrelas: sai pelo crepúsculo e anda de roda toda a noite , sem canseira que se lhe note. Trata as constelações pelos nomes, numa conversa que só eles entendem. Dizem-me que é um corropio de perguntas. Das respostas mantém segredo.
Não é coisa de espantar: a loucura sempre se associou às trevas, aos seres que mais ninguém vê, à fantasia, à inquietude, à magia, ao Diabo que os doidos não têm Deus jurista, senão o que eles próprios inventam na sua deriva.
Não lhe sei o nome nem história e nunca ouvi ninguém perguntar se está bem. Aos outros pergunta-se então, está melhor do estômago? A eles devia-se perguntar se lhes dói os pensamentos. A maior parte talvez diga, como os racionais, que lhes dói a vida.
Talvez por isso tantas artes tenham andado e andem atrás da loucura. Umas vezes por coscuvilhice dos sonhos, outras para desbravar o que não se entende, outras para perceber os rasgos de maldade fora de qualquer justificação que se entenda, outras porque dá jeito e estatuto não andar num mundo minimamente arrumado. Uma aura de loucura sempre esteve e está ao serviço de algum oportuno comércio.
A loucura, como tudo, tem moda e estação, havendo quem ache que é louco quem sempre se opôs ao poder, como defendeu Foulcaut. Ou que se trata de um erro da natureza. Ou quem, sendo puro, se retire do mundo feito de corrupção, jogos de interesses e vilanias como a dançável (quem disse que os livros não se dançam?) Louise Miller, personagem de Schiller.
Foi no estudo da dita criatura que fomos de visita a um manicómio e que nos disseram, do alto da sabedoria, como se saíssem e entrassem do país da cabeça daqueles olhos aflitos que nos invadiam, que os loucos não sofrem, que vivem na sua própria lógica onde tudo, para eles, faz sentido.
Mas se o corpo, o olhar e o gesto são o espelho da alma, ficámos queimados com as labaredas que saíam daqueles infernos em guerra interior. Não voltámos a fazer visita de estudo áqueles seres porque sentimos que estávamos a invadir-lhes a dignidade. A parasitar-lhes o sofrimento.
Preferimos olhar para dentro dos nossos fantasmas. Afinal se o provérbio de são e de louco todos temos um pouco existe em todas as línguas, alguma verdade universal há-de ter.
E pensando em dança, sabe-se que na antiga Grécia, enquanto se celebravam os Jogos Olímpicos, interditos às mulheres, estas se retiravam para o cimo de um monte e rodopiavam até enlouquecerem, sob a égide de Dionísio. Há quem entenda que não era só folia. Tratava-se sim, do exorcismo de penas. Afinal o tal deus também sofria com a instabilidade e a falta de sossego a que a invenção dos homens o tinha condenado.
E vamos por aí fora, passando pelas danças macabras ou do Diabo na Idade Média, quase todas de cariz popular. Nem o Ballet Romântico escapou, recuperando e adaptando, em algumas peças, as lendas, também populares, nórdicas.
Danças de amor, metamorfose e morte. Ingredientes, parece-me, para o resvalo do abismo.
Na época contemporânea há de tudo. Em alguns casos gritam-se ou riem-se, de forma mansa ou furiosa, as dores que não têm tempo. A loucura é sedutora e os versos e reversos do mundo e dos afectos não têm paliativo na tecnologia, suposto caminho para o encontro e felicidade.
Posto tudo isto, quem nunca ao olhar em volta observando bem, cumprir o ritual de estar a par das notícias e não se interrogar se está no tempo e no espaço certos de acordo com o que aprendeu como sendo padrão de bom senso, que atire a primeira pedra.
Talvez, a exemplo da Idade Média, fique com vontade de comprar um bilhete e embarque na Nave dos Loucos, nem que seja para navegar num imenso oceano de papel. Com ondas em forma de teclas e som da balada para um loco do Piazzolla.
Desde que não afogue a restante tripulação, cada um que escolha o seu porto.
13 comentários:
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Gratos
Na Idade Média, a loucura temporária era uma forma saudável de suportar a vida. Vêm daí as nossas tradições do Carnaval.
O tópico do mundo às avessas, muito tratado na literatura e nas artes plásticas permitia exorcizar o aperto das regras. Nas margens dos manuscritos, os miniaturistas pintavam extravagantes figuras de loucos e monstros, mesmo nos livros mais sérios e moralmente filosóficos. Esse balanço entre as coisas sérias que se liam e o riso provocado pelas imagens que ao mesmo tempo se viam seria hoje inaceitável. Temos tempos para tudo e poucas vezes misturamos as coisas. É pena. Deve ser por isso que caímos tanto em depressão, que é um nome politicamente correcto para afastar de nós o estigma que a palavra loucura tem, quando a levamos a sério. Curiosamente, numa outra acepção consideramo-la requisito essencial de quase tudo o que é interessante.
de excelência, lizzie!
até porque chegámos a conviver com "loucos", especialmente em quadras *asteriscais*. louco que não se lmitava a pedir um cigarro. aliás, não pedia nada... observava apenas, quando em tempos teria sido - contavam - um exímio conversador.
só assistimos à loucura tranquila, de quem apontava num caderninho, com uma caligrafia invejável (que mais não podíamos certificar..) todas as conversas cruzadas, provavelmente para nelas intervir em silêncio quando estivesse longe.
os loucos não sofrem... o tanas!!
vénia...
Ah meu Arcanjo, também gostei de rodopiar convosco na outra noite, no monte da Alegria. Foi pena o João Pestana ter-se antecipado ao verdadeiro transe da loucura! eh eh! E depois...
"Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?"
(Pessoa, Mensagem, D. Sebastião)
Insanidades e insanidades!:)
gamnaa:
assim farei. Haja quem seja amigo do que se deve perservar, promover e gostar.
Mi regressada, marciana e sábia Emma:
é de facto pena que não se misture o sério com o riso. Não deve ser por acaso que a boa ironia é um antidoto contra a depressão (coisa em que os ingleses são mestres), como a
dança, que utilizando o corpo, soltando-o,liberta e confessa os temores da mente.Às vezes chega mesmo a discipliná-la para que não fuja para territórios sem regresso.
E a loucura fascina quase tanto como a morte: aquela como campo provável, esta como campo certo, mas ambas sempre presentes cheias de mistérios e segredos. Temidas. São tentações de terrenos proíbidos e minados.
Seria bom que, como doidas, continuassemos a rir-nos das duas.
Capitão:
gratas.
Essa ideia que os loucos não sofrem, foi muito difundida nos anos sessenta. Quando não se nascia com ela, provocava-se. Ainda hoje há quem defenda que só se pode criar alguma coisa de jeito com subtãncias alucinógeneas.
Mas quantos houve que se fizeram de doidos para singrar no meio das artes.E conseguiram, principalmente no início do séc. e depois nos tais anos 60/70.
Uma das pessoas que vimos na nossa visita, olhava-nos com olhos agudos e fazia riscos atrás de riscos num caderno. De repente,arrancava as folhas e chorava baixinho, contorcendo-se. Depois voltava a rabiscar, ansiosa.
Vimos ali, o retrato de uma dolorosa impossibilidade. Talvez de comunicar. Fosse como fosse sofria até nos doer, a nós que só olhávamos.À distãncia.
Continência
Meu Anjo, que malvado, ou idoso, é o João Pestana que tanto me moeu o juízo estrada fora naquela sua obcessão compulsiva de me fechar os olhos.
Muito discuti com ele, até cantando em coro
bien paga
me llaman la bien paga
por qué yus besos compré
até abrindo a janela para que o vento fresco da noite o mandasse embora. Vê lá tu que o esquizóide me queria transformar em cadáver adiantado.
Parece-me que não conseguiu. Parece-me que acordei passadas umas horas em leito vestido de branco.
Acho eu...
Alegrias e alegrias
Lizzie,
Esta tua dança levou-te em alto voo, picado e sublimado através do maravilhoso mundo da loucura. Agora, resta-nos esperar pela Dança dos Ausentes, parte II, o que poderia ser uma outra viagem através do tenebroso mundo da loucura onde os maluquinhos (que não podem ser de estimação) se divertem a afogar a restante tripulação...É que, o provérbio existe e tem universalidade, mas o seu equilíbrio raramente se verifica. Os maluquinhos com tanto de são quanto de louco são realmente muito poucos.
Beijinhos.
eu vinha aqui comentar, e com bastante dificuldade, este post maravilhoso. mas li o que nestes comentários é dito pelas senhoras de larbos e lizzie e fico completamente tolhida. continuam a mostrar um saber tal que me sinto um insignificante insectozinho. e isto não faz parte do enredo da minha história, é mesmo verdade.
há meia dúzia de blogues que considero pequenas maravilhas e os vossos estão sem sombra de dúvida nesse número. claro que na blogosfera haverá muitos mais, mas, só posso falar daqueles que conheço.
assim e volto à minha estória, vos presto vassalagem. mas que o rei e senhor meu pai o não saiba, ou irei direitinha do convento para altíssima torre sem porta, feita outra rapunzel.
sempre a recuar, sem ousar virar-vos as costas, me despeço.
(e assim me escapei da difícil tarefa de comentar o post).
e vou estar atenta ao 15 de agosto...
Pois Cici um dia lá irei, à viagem dos loucos loucos, e dos que fingem para, assim, melhor afogarem os demais. São os conhecidos por manhosos.
Tal como os gatos, lá se esquecem da cauda de fora.
A história encarrega-se de os meter todos na mesma barcaça, roída pelos ratos que eles próprios criaram.
Mas que bom que é ser-se um bocado louco com tento e bom fundo: dá-se cor à vida, enquanto se brinca com ela.
Deixar sempre que seja ela a brincar connosco é que é afundamento certo.
Beijinhos.
Alteza:
como sois habilidosa!
Já sabeis que muito folgo com a V. visita e que gosto da subtileza de V.enredos. Se assim não fosse, não iria à V. cela ler as novas e v. desabafos.
Sabei que prezo a imaginação e o saber.
Também eu pasmo ante a sabedoria escorreita de Lady Larbos.
E não andeis de marcha atrás, por quem sois, que podeis tropeçar, cair e causar dano nos V. frageis ossos.
A vós agradecida
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