terça-feira, 6 de maio de 2008

Doña Rosa, como no?



Cada vez que olho para os olhos negros e pestanudos de Doña Rosa penso que o seu coração deve pesar, mais coisa menos coisa, uma tonelada e meia. Não por serem exactamente tristes entre o vago e o gélido, mas por terem uma carga de memória que imagino como pedregulhos insolúveis na vida de qualquer pessoa cuja infância tem ainda o lastro da Guerra Civil.




Como todos os espanhóis, Doña Rosa não gosta de falar nos derrames do assunto. Limitou-se a dizer que ia estar uma quinzena fora para ir ao pueblo assistir à abertura da vala comum onde jaziam a monte a avó e mais alguns familiares. Embora não os tivesse conhecido acha ser de justiça dar sepultura com nome e individualidade aos ossos.

Doña Rosa é assistenta. Profissão que corresponde em Portugal ao depreciativo mulher-a-dias ou ao mais politicamente correcto e maquilhado, empregada.
Agora só trabalha lá em casa para se distrair e para ganhar para os seus botões, ou seja, para a roupa, revistas onde segue a vida, entre outras, das Isabéis Pantoja e Presley e cds, sobretudo de Los Chunguitos, uma espécie de Trio Odemira mas mais violento e alcoólico:





Ahogo mi dolor en quatro copas de aguardiente…

Te mataré a puñales si te marchas …,
por exemplo.


Doña Rosa, quando me conheceu, já lá vão uns aninhos, detestava-me. Cheia de desconfiança. Chamava-me la duqueza de rebaja, ou seja duquesa em saldo.

Primeiro: porque lhe chamava Doña, o que era interpretado como sendo de gozo com a sua condição de operária do lar. No seu entender Doña chama-se às fidalgas seja lá qual fôr a raiz da fidalguia;

segundo: não percebia a minha inflacção de gracias, por favor, no se moleste usted;

terceiro: porque vendo o meu nome completo nos envelopes postais, achava não ser tal junção de letras digna de ser de gente completa de juízo e nascimento.
Com o tempo percebeu que eu vinha de um sítio onde tais coisas são hábito, ou seja Portugal, imaginado por ela com sendo igualzinho à Miami do Júlio Iglésias, tal é o mar que banha os dois.
Fizemos as pazes, já que também eu não morria de amores por ela, quando a deixei massajar-me o cabelo com gema de ovo. Receita dela para a secura. E quando chorámos, as duas, a ver um pedaço de filme. Afinal os afectos básicos não têm classe. Talvez só mude a forma como se ri ou como se chora.




Doña Rosa classifica os seres vivos em três categorias:

As pessoas, a saber, as mulheres, a sua cadela Lora e a gata lá de casa, Pepa Imaculada, com quem ela desabafa e comenta;

os homens (à excepção dos da casa empregadora, elevados ao estatuto de meias-pessoas) e os répteis rastejantes.




Todo o resto é matéria indefinida, como os filhos que já voaram para longe da infãncia.

Dentro das mulheres há as brutas, como ela se considera, as inteligentes e as artistas, como a sua amada Carmen Sevilla, modelo, para si, da eterna fina e feminina beleza .


A penúltima classe pertence a um mundo exterior, estranho, inacessível.





As tais que se juntam lá em casa a encher cinzeiros e espalhar papéis noite fora e que insistem em invadir-lhe o território exclusivo da cozinha.

As mesmas, que num mesmo dia e hora, a metem à força no banco de trás do carro com a gata e vão todo o caminho a ouvir me cago en los medicos e miauuuurrrrnhau e ficam meio aliviadas quando deixam a Pepa no veterinário e continuam até à clinica a exasperar com os estoy yo enferma del culo, e completamente já surdas quando o avc que vinha a caminho, é interrompido na urgência.

A última gente, as artistas do canto, baile, telenovela ou aristocracia mediática, só existe quando se casa , divorcia ou aparece na televisão. Fora isso é volátil, tão consistente como um desenho animado.

Doña Rosa fala do marido como se só de vez em quando se lembrasse que ele existe.





Como todos os homens, sic, vive num mundo que só a eles lhes pertence. À sua maneira, diz à gata, que o amor é uma questão de hábito. E que eles aspiram e esperam o que não podem ter ou não merecem. Porque le digo yo a usted, los mui cabrones son todos iguales.




A única certeza que tem é a filiação doentia dele no Real Madrid. E a obrigatoriedade de lhe servir as refeições e tratar dele na medida em que ele se deixa tratar.

Hoje é dia de ir. É mais um dia de, aos berros, ameaçar fazer fogueira com os papéis que lhe fazem nervos: loiça por lavar, cama por fazer e papéis espalhados são afrontas à boa ordem de uma casa que se preze.





E de ir ao frigorífico ver se a sopa foi toda comida. Se houver uma guerra até pedras comem
(traduzido aqui, que a vernácula ementa castelhana não lembraria ao demónio mais pantagruélico ou...castrador).
Mais um dia, de na companhia ouvinte e silenciosa da Pepa Imaculada, já velhota




arranjar maneira de limpar o que nem sequer está sujo.


Uma forma bruta de ir vencendo o destino.

8 comentários:

A. disse...

[Hoje é dia de ir. É mais um dia de, aos berros, ameaçar fazer fogueira com os papéis que lhe fazem nervos]...







...à bruta.......à bruta.à bruta............À BEIRA!!!!!

:/

*

Lizzie disse...

Ainda bem, Passarinho, que não queimou os papéis onde estavam escritos os gritos mansos mas brutos e sózinhos do concerto para violino do Philip Glass. Uma versão a solo tão diferente de toda a vossa harmonia. Ali.

E vai-se à bruta, mas com elegância sorridente mais um dia.
Vai-se sempre, ou à beira Tejo ou a qualquer outro sítio onde haja fogo. Vai-se. Vai-se. Vai-se até se achar que tudo deve arder para nascer de novo. Limpo.
Pó, só o que fica na memória.
E que todos os móveis brilhem mesmo desarrumados.
A arrumação da penúltima imagem fica para os que sacodem a vida e perdem qualquer vontade de seguir.

Abraço

A. disse...

...quem me dera...


sem esperanças...só rodas.e ir.








http://img.mercadolivre.com.br/jm/img?s=MLB&f=62488089_4407.jpg&v=P




(...por vezes.à beira.....baixa.)
:/

*

casa de passe disse...

e nós seremos de que raça?

(gostamos e criamos gatinhos, também)

LouLou e NiNi

Haddock disse...

...

duquesa em saldo... maravilha!!
que personagem riquíssima, a doña rosa. deliciámo-nos com a arrumação sociológica feita. o empírico a largar preconceito também.
a nossa assistenta, de mesmo nome, também é pródiga em opinanço, mas não chega aos calcanhares da vossa, lizzie!!

vénia...

Lizzie disse...

Capitão:
por pudor não botamos aqui outras tiradas sarcásticas de Doña Rosa.
Provavelmente a vossa não será manchega (não sabemos se se diz assim em português).Tais mulhres são as chamadas mulheres de armas, no caso dela, evoluindo já para arma nuclear.
Não sabeis o problema que é não a deixar pegar em pesos. Até com as "meias pessoas" briga e muito nos preocupa que chegue o dia em que lhe seja impossível continuar.
Já fomos de aviso que se entrar brasileira (cada vez há mais) ou ucraniana, nem que seja já em forma de Doña Rosa em espírito, haverá corpos a rebolar escada abaixo em direcção aos pés de Doña Pilar.
Tem uma história rica, recheada de condimentos integros e dignos.

Continência e bom fim de semana

pentelho real disse...

fiquei encantada com a maneira de ser de Dona Rosa. ainda bem que agora estais de bem uma com a outra pois pareceu-me ser um convívio enriquecedor. para ambas.
e que deliciosa descrição aqui deixasteis.

Lizzie disse...

Alteza:
felizmente, pouco tempo estivemos avessas com esta nossa aia.
Muito temos aprendido com ela e muitos mimos nos dá. Sabemos até que fica de contentamento com a nossa chegada.
Tendes razão, é uma alma com boa maneira de ser que muito respeitamos.

A vós agradecida.