A extraordinária e intrigante história de Grace Marks
Contada aqui de forma o mais sintética possível pois é saga com princípio mas sem meio nem fim resolvidos.
Quando Mary Whitney nasceu em Dublin, filha de pai trapaceiro e alcoólico e mãe maltratada, nos avançados de 1800, mal adivinhava que iria ser personagem de inspiração para dramaturgos, escritores, pintores, coreógrafos e objecto de estudo para psiquatras, sociólogos, criminalistas e demais gente interessada em encontrar a ponta do novelo das desordens do mundo.
O pai, para fugir a credores e na esperança de curar a sífilis, resolveu meter a família num barco e emigrar para o Canadá.
Como tantos outros viram-se metidos em massa na embarcação, com pouco espaço, até, para esticar as pernas. A mãe adoeceu, morreu e foi deitada borda fora. Adiantou serviço aos fiscais pois era regra, à chegada, haver exame médico e repatriar os que não tivessem rubostez física.
Mary foi aceite, separada dos irmãos e o pai nunca mais viu morto nem vivo.
Tinha doze anos quando foi colocada como criada para todo o serviço numa quinta de homem solteiro,mau rapaz e engravidador da criadagem. Tal espaço haveria de tornar-se local de romaria num misto de reportagem, ciência e voyeurismo.
Distinguiu-se a moçoila pelo asseio, pois dava caça constante aos piolhos e mudava regularmente a palha da cama onde dormia com mais quatro. E, facto importantíssimo, não era capaz de matar galinhas ou qualquer outro bicho de consumo, desmaiando à vista de sangue.
Tornou-se amiga de Grace Marks, outra criada, cuja memória (junta com a da mãe) da alegria e bondade, recordou para o resto da vida. Mas grávida aos treze anos, Grace morreu de complicações de aborto.
Um dia, o patrão, a governanta e gravidez de oito meses dela, apareceram esquartejados nos aposentos do pecado. Aparentemente vítimas de ciúmes de vários lados.
Mary , apresentando-se com os papéis e roupas de Grace, fugiu com o moço de estrebaria para Boston. Nunca mais de lembrou que nascera Mary.
Mas acabou por ser presa à chegada, mas não enforcada como o moço. Valeram-lhe a amnésia e os célebres desmaios, mais os ataques de mutismo alternados com ataques de umas boas maneiras e pronúncia de duquesa inglesa que ninguém percebia onde, conjuntamente com outras coisas, tinha ido buscar.
Com o contacto com as outras culturas de que falei no de baixo, logo se alvitrou a hipótese de Grace ser uma reencarnação até de Maria Stuart, visto ser católica praticante e curiosamente ter um vinco no pescoço a que hoje se chama vulgar angioma mas que naquela época ainda não tinha baptismo a não ser como sinal de transcendência.
Foi dada como doida e encerrada numa cela escura a pão e água. Acreditava-se ser tratamento adequado para a mais nefasta loucura. Como morriam entretanto, nunca se chegou a saber se ficavam, de facto, curados.
Seja como fôr, voltou, para a prisão. Se calhar não era doida, era assassina sem provas bastantes.
A sua calma e modos e a velocidade com que aprendeu a ler e escrever, levou a que ficasse durante o dia a servir numa família abastada. À noite voltava para a prisão.
E lá ficava ela, já protagonista de recortes de jornais, sentada na sala em exposição enquanto se teciam especulações sobre ela. Permitiam-lhe, até, ir bordando o seu kilt, espécie de colcha obrigatória em qualquer enxoval de casadoira.
Um negro fim de tarde, os oito elementos da dita família apareceram sentados à mesa do jantar em digna pose de mortos, a escorrerem sangue pelo pescoço abaixo.
Grace tomou posse do estrelato absoluto. Tornou-se personagem de teatro de rua, de congressos de várias especialidades, debates sem fim e lenga-lengas. Nos jornais discutia-se: terá sido, não terá, será doida, não será. Foram largas as versões nas feiras na modalidade preferida de representação das populares gentes
Escapou mais uma vez à forca já que no julgamento teve mais ataques de incoerências, desmaios intervalando com amnésias e, sobretudo, porque três guardas prisionais juraram de mão na Biblia que áquela hora lhe tinham feito guarda de forma intíma e amorosa.
Foi condenada a longa cadeia, onde se portou de forma submissa, ordenada e cordial para os muitos visitantes pró e contra a sua culpa. E muitas e variadas paixões despertou, tendo, por desgosto de não correspondência, uma jornalista famosa derramado sangue nos seus próprios pulsos com uma faca, deixando orfãos dois filhos menores.
Quando saiu era uma velha para a época, tinha quarenta e tal anos, e aproveitou para dar uso aos seus famosos kilts, no matrimónio com um homem rico que sempre lhe financiou os caros advogados e já existentes bostonianas advogadas para sua defesa.
Só se sabe que foi viver para Nova Iorque, onde uns anos mais tarde uma família do jet set local, apareceu sentada na sala de visitas, muito composta não fosse estar morta por degolação. Tinham acabado de lanchar.
O tal marido já muito velho, morreu com septissémia resultante de um grande golpe na cara ao escanhoar-se. Ela, não se sabe a certeza, mas alvitra-se que tenha morrido calmamente de paragem cardiorespiratória.
E, deste modo, desejo um bom descanso a esta senhora que acabou, ontem, como actriz, uma série longa de espéctaculos representando Grace e as suas envolvências dramáticas, e que também não é capaz de matar seja que bicho fôr, nunca esteve internada nem presa, tem boa memória e tem interessantes conversas com nexo e que, muito embora seja espanhola, nunca se preocupou com enxovais e muito menos com colchas, e tem como cabeleireiro o Manolo que apesar de trabalhar com objectos cortantes também não gosta de ver sangue.
7 comentários:
que história incrível, lizzie!!!
intrigante, como dizeis, mas também comovente. é que admitindo -sem com isto querermos alimentar calúnias - que foi mesmo a renascida grace marks a responsável por estes epísódios de violência, espanta-nos não ter ela agarrado a oportunidade de limpar as pratas... boa pessoa, só pode ser. a menos que lhe tenha, como dizer..., "dado a doida"!!
sejai como forde, só de imaginarmos que, a pretexto de ir servindo a sopa ou o chá, lá ia degolando, um a um, os membros da família, arrepiamo-nos de satisfação...
dias sádicos, quem não os tem??
vénia...
ps: a senhora espanhola não conhecemos.
as nossas vidas por aqui não são nada que se compare...
Adoro personagens que matam friamente e personagens que morrem sem saber porquê. O que inquieta é que não se trata de ficção. Como poderemos depois disto agradecer com um sorriso à vizinha do lado que é tão simpática? Como poderemos dizer um tranquilo bom dia à rapariga que lava as escadas do prédio? Como poderemos entregar confiadamente a chave da nossa casa na mão da mulher a dias que já conhecemos há vários anos?
Como olharemos para quem virmos tecendo uma colcha? Já não Penélope, já não fiel, mas tecedeira de teias malignas??
Capitão:
Pois que não há registo de limpezas, não senhor.
E lemos um relato de uma psiquiatra bostoniana com transcrição dos relatos da dita Grace e quase que chorámos com as cenas do barco e da amiga.
Sabei que em tais casos não se chamava o médico. Se estava para se morrer, morria-se.
Quanto à dama espanhola, é nossa conhecida, tem uma voz expressiva, andou pelo americano continente com esta peça descarada e metafórica de mais crueldades do nosso tampo e finalmente esteve em cena em Espanha. Chama-se Pilar e está na lista para um dos próximos de Almodôvar.
Continência
Casa de passe:
tenham cuidado que casas como a V. sempre foram alvo preferido desta espécie de crimes.
Qualquer dia aparecem-vos por aí as mães de Bragança vestidas de ASAE e depois, olhem, era uma vez...
pronto, ainda bem que tendes confiança.
Mi Emma:
o que impressiona é que ao longo dos anos, Grace sempre manteve a amnésia em relação aos períodos sangrentos. Falava-se em sangue e pronto, já a rapariga se esquecia.
Parece que há, sabe-se hoje, uma patologia assim, muito comum nos serial killers:matam e esfolam e não são eles, são o outro lado que eles não conhecem.
Suponho que na Idade Média que tu tanto gostas, se dizia que estavam possuídos pelo demónio.
Tens razão não se pode confiar. Houve uma em Barcelona que se levantava a meio da noite, matava mendigos e depois ia dormir para acordar á hora normal e ir trabalhar.
Credo, já viste?
Arguta ligação a destas amnésias com aquelas lá emcima, madame Lizzie...:-)Entre uma e outras personagens vá o diabo e escolha, c'est vrai?E agora vou pôr a mesa. Persigno-me outra vez, nao me vá dar uma patologia de serial killer e degolar o pauvre Jules!Je vous embrasse.
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