quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014




...da pureza da safira, ou seja... Paco de Lucía nas esquinas da água.


Já passaram alguns anos. Muitos. Era Verão e o branco de Cádiz e arredores invadia-nos os olhos até ao negro.

Por ali, havia um festival de dança, de música, de canto, em jeito de vestir de formas contemporâneas o corpo de artes antigas.

Ainda tínhamos tempo. Fomos andando em direcção a uma mancha de verde. Exuberante. Compacta como se fosse cofre de segredos.


Dentro dessa mancha havia um retiro com tanque que recebia a água de uma nascente,

 onde em tempos  mouras  e judias  e mais tarde ciganas, trocavam contos e cantos enquanto lavavam.
Em banho próprio e à roupa.


Ainda hoje se canta em flamenco uma trova medieval que começa por estaba labando trapos, riba al cielo...e por aí fora que os amores e  as guerras não são de épocas nem de fins.

Sentámos-nos lá. Em silêncio para não perturbar a voz fresca da água.



Como agora eu me sento num sítio quase igual e abandonado de gentes que descobri perto, a alguns km da minha morada.




Passados uns minutos e sem alardes, apareceu numa das esquinas Paco de Lucia, o tal a quem chamam o Mozart do flamenco.

E, nunca me esqueci do seu gesto. Às vezes existem gestos que me ficam como uma tatuagem na lembrança. Pelo que definem. Pelo que inspiram. Mesmo que não me lembre a quem pertenceram. Tornam-se ausências com movimento.


Chegou-se à beira do tanque, desenhou na água com os dedos esguios e depois passou-os pela cara, pelo cabelo.  E ficou de olhos fechados. Como também sempre tocava.
Um acto religioso de quem concentra e faz pulsar a música dentro de si. A raiz do flamenco circula no sangue. Mesmo quando a arte corre na sombra. Nos calados. Nos imóveis.


Depois chegou o Enrique Morente com a filha Estrella, ainda muito nova. Ainda longe de emprestar a voz a Penélope Cruz no Volver de Almodovar.



 No meio da conversa Enrique cantou à capela El pequeño vals viénez: en Viena hay ...uma espécie desabafo ou confissão de Frederico García Lorca.
É canção que ouço ainda muitas vezes. Cantada por ele e só por ele.Com a voz potente, cheia, arranhada pela rouquidão. Herdada dos nómadas que apregoam.

Voz que falada estava tão em contraste com a do Paco: muito suave, tímida, escondida. Quase imperceptível. Como a água que foge em vadiagem pelos campos.


Com poucos sorrisos ou risos. Uma face trágica que é também herança.

Disse ali o que viria a dizer muitas vezes: que nos concertos e na vida se escondia atrás da guitarra. E que as mãos nela falavam o que ele era incapaz de dizer.

Depois falou da mãe. Lúcia, la Portuguesa, como sempre foi conhecida em terras de Espanha.

 O menino de sua mãe haveria de se querer chamar Paco DE Lúcia. Em castelhano, sobretudo do Sul, Lucía. Apenas um acento que se ajusta à língua.

E do pai, severo na geometria da  perfeição.


 Apesar do catraio aos sete anos já encantar e esmagar graúdos com o talento.
 Mesmo que tocasse a música dos outros já a conseguia transformar na dele.

O pai contava-lhe que um dia um aprendiz se dirigiu a uma oficina e pediu ao mestre que lhe ensinasse a trabalhar as safiras.
 O mestre aceitou-o e deu-lhe uma safira para que a olhasse.
 Apesar da estranheza do aprendiz, durante um ano todos os dias pela manhã o mestre lhe dava uma pedra e ao final da tarde lhe perguntava o que tinha visto.


Uma safira, respondia o aprendiz.
 Até que um dia o aprendiz respondeu que a pedra dada pela manhã era uma safira falsa.


O mestre disse então ao rapaz que estava pronto para começar a aprender o ofício: a trabalhar a safira até lhe merecer a beleza.

Paco achava  a música tão preciosa que tinha medo de lhe dar uma nota  falsa. Ou uma emoção dúbia. Daquelas que estragam para sempre a pureza.

Talvez por isso se tenha comovido mais quando, entre os seus, lhe deram o título raro de El Maestro do que com o Doutoramento Honoris Causa em Boston.

Para mim, para nós, ficou o mote da história. Que já tínhamos aprendido sem nunca a ter ouvido.

E as mãos a desenharem sons antigos na água.

 Como se já estivessem preparados para existir.


2 comentários:

bettips disse...

Encantatório. Como a água que nunca se perde.
A guitarra dele como mulher que chora e geme nos seus braços. Um mágico íntimo.
Fiquei a saber mais do homem fascinante que nos deixou, tão depressa amávamos a juventude, ainda.
Bjinhos

Lizzie disse...

Bettips,

Às vezes o encontro casual de pessoas, mesmo que de áreas diferentes, pode ser fonte que faz correr ideias que vão desaguar em obras diversas.

Vai daí, o gesto de Paco de Lucía, e sei lá se ele soube, teve estreia em Madrid com música de Mahler.

Depois viajou para Nova Iorque e para Londres mas já com música de água do séc. XIII e do nosso contemporâneo Philip Glass.

Tantas voltas deu que, há um ano, foi visto numa companhia africana ao som de uns cantos zulus...de guerra.
É assim.

E parece que a morte tinha na agenda a música e a dança. Nestes últimos dias foram várias pessoas nestas artes. Todas de forma não esperada e salteadas nas idades. Credo, até parece coisa contagiosa.

E sempre me surpreendo com a orgânica espanhola. Alguém se lembrou que não devia soar, no dia em que o corpo chegou a Madrid, nenhuma guitarra.

E não soou. Cantaram e dançaram, como é hábito nos flamencos quando olham para a morte ou para qualquer outra dor, mas nem uma corda vibrou.

Como se houvesse um maestro invisível.

E até foi assim que um primeiro ministro caiu sem ter tido sequer tempo de pensar na queda.

Bjs