do antigo cofre das palavras
Conta-se que naquele tempo as mulheres ainda eram mais filhas da terra que do demónio.
E que se juntavam à volta dos castanheiros quando o sol se tornava pequeno, tímido quando não desaparecido. No que é hoje o mês de Novembro.
Os castanheiros eram as árvores onde se guardavam as palavras que as mulheres mais antigas tinham dito. Como se verá.
Neles também se escondiam as palavras dos poetas e dos astrólogos, aqueles que nos astros viam os futuros e as causas das consequências dos presentes.
Estas palavras só viviam nas vozes das mulheres e só elas sabiam ouvi-las porque as letras e os pensamentos ainda eram pouco visíveis nos pergaminhos, nas tábuas ou nas pedras.
As palavras tinham tendência para habitarem o coração mais guardado das mulheres.
Diz-se que debaixo dos castanheiros se sentavam.
A entrelaçar palavras que se transformavam em histórias e inventavam paisagens e mundos nunca vistos.
Tinham palavras que coloriam com luz, tão alegres como as asas dos pássaros.
As palavras ditas à roda dos castanheiros batiam à porta silenciosa e envergonhada das almas, entravam e varriam todas as mágoas e más lembranças.
Com elas as mulheres criavam beleza.
Diz-se que eram criadoras para além da água suave dos seus ventres férteis.
É o que se diz!
Então, com as palavras também teciam canções.
E também bailavam danças de roda sem juízo algum.
As palavras chegavam ao incrível ponto de já não se casarem umas com as outras e parecerem perdidas, sem rumo onde poisar o sentido.
Alguns homens viam-nas de longe e ficavam com medo das palavras que não conheciam.
Há quem diga que temiam a verdade daquelas palavras soltas.
Outros sentiam-nas sábias.
Depois as mulheres voltavam para as suas casas e afazeres.
E em cada ano guardavam uma castanha na arca do seu sustento.
As castanhas mirradas tinham companhia nas rugas das mulheres.
Talvez as castanhas fossem cofres de palavras.
Quando alguma mulher morria, as filhas ou as irmãs enterravam as castanhas da falecida junto à nascença do tronco dos castanheiros.
Assim as mulheres seguintes podiam ouvir, falar, cantar, dançar, as palavras antigas.
Depois, mais tarde, vieram aqueles homens que reuniram todos os deuses num só.
e gritaram pelo mundo, esquecendo-se das suas mães na terra e no céu , que nas palavras das mulheres estavam todos os males do Mundo.
Os castanheiros viram chamas de mulheres. E alguns receberam as pedras que lhes falhavam no corpo a eles preso.
Mesmo assim, ainda hoje já tarde no tempo, em terras da Irlanda e mais a sul sem tocar no Continente, algumas mulheres guardam uma castanha de cada ano.
A castanha em que estão todas as palavras inventadas. Talvez todas as palavras dos poetas mesmo que silenciosos.
Talvez todas as palavras dignas de serem dançadas.
2 comentários:
Como te é habitual, (re)ligas as mulheres, de conhecimentos ancestrais para um ser-diário. E a minha avó guardava castanhas nas gavetas. Havia de fazer o mesmo, palavras-cofre, nem tantas irei juntar...
Ler-te é voluptuoso, saltando de hoje para ontem. A 1ª imagem é como um berço, calculo que pudeste sair e ver "um castanheiro". Ála arriba!
Bjinho
Obrigada Bettips!
isto de ligar as coisas é vício ou mania de que nada existe separado e sem história. Sei lá...
Outro vício é fotografar berços íntimos. Simples,sem grandes gentes nem vaidades à volta. Já lá vai o tempo. Pois vai.
Não sabia que neste continente também se guardavam castanhas, perdão, cofres de palavras filhos de castanheiros. É natural que sim: há quem diga que as mulheres não se calam. Acho é que ninguém está habituado a reparar nas palavras calam e guardam. São muito mais que as que dizem.
Ainda não fui aos castanheiros mas estou quase a ir. Ando (andamos) pelo cacau quente, às voltas com cantos antigos que, envergonhados, andavam escondidos desde o séc. IX.
Poucos são os que os sentem com o corpo. É preciso ter nele várias camadas e ter guardado muitas palavras para se perceber o silêncio que mora entre elas.
É preciso viajar nas rugas. Próprias ou alheias.
Enfim...
Bjs
Enviar um comentário