segunda-feira, 10 de junho de 2013



De como a memória pode caber até nos intervalos das reticências...


ou quase...



credo, olha para isto... nem sei por onde começar!

 Todo este trabalho porque sou uma espécie... de ponto final parágrafo que fecha um longo capítulo. 
A seguir virá uma página em branco. Já não vou ter tempo de ler o título quanto mais a prosa que se seguirá. Nem que viva cem anos...



os quadros? Esses ficam! A minha mãe pediu que ficassem comigo até ela fechar os olhos... as curvas que as pessoas arranjam para contornar a morte...como se fosse figura obediente à chamada pelo nome... morte, death, muerte...  passed away, enfim...depois escolho os que vou levar para casa.


Vamos primeiro aos caixotes... não, não, a essa mala! Como é que se abre isto?
Olha... é do tio António! Deixou cá ficar tudo quando ficou surdo...de repente.

 Não fazia ideia que também se tinha registado em Portugal.




 É estranho...não, não é esse, esse era António Augusto de quem já falei no blog, é outro... Antónios eram tantos...até me perco...

este vio-o poucas vezes. Mas era marcante. Inspirava uma certa bonomia. Como todas as pessoas que são discretamente felizes...

 nasceu, mas só vinha a Portugal em visita.  Sei que viveu em Munique, em Chicago, no Kentuky, em Paris, , em  Barcelona , no Brasil, onde se cultivasse com entusiasmo a música geneticamente negra:




 jazz, blues e stomp...chamava-lhe assim, era estudioso de stomp...ain´t no doubt about it...





...devia gostar mas para irritar a parente do violoncelo dizia que Liszt, Chopin, Schubert eram para senhoras, para damas sonhadoras no chá das cinco... e... ria-se muito. Ela? Muito composta retirava-se, tocava violoncelo, imaginava o piano nas sonatas a dois e chamava-lhes filhos da puta...



lembro-me sempre dele vestido à anos quarenta. Ombros à Roosevelt, calças largas com partida no diafragma...suspensórios, chapéu incluído, claro. Só o tirava em casa ou na presença de senhoras. Aí podias ver o reflexo do tecto no lustro da calvice, tão polida como uma rigorosa lente de telescópio...sim, como esse (Pablo Casals)



sim, casou novíssimo com uma vienence, amor desenfreado à primeira vista. Andavam sempre os três: ele, a mulher e a sogra, viúva precoce e militante. Para todo o lado..., durante uma vida inteira. Dois pedaços de terra feminina a segurar uma massa de ar musical, deslumbrada.



 A velhota esperou por eles. Morreu aos noventa e muitos. Suponho que ainda andarão juntos na eternidade e até depois disso, sei lá...



a mulher era quase em tudo, há muita gente assim: quase alta, quase baixa, quase bonita, quase feia, quase saudável, quase doente, quase viva, quase morta e... quase cantora lírica.

 Uma soprano que se refugiava do si bemól. Disso lembro-me, dele dizer que ela se refugiava do si bemól. Uma espécie de fronteira. Imagina o drama:ela a aquecer a voz, a iniciar o lied e, de repente...o si bémol e ela a retirar-se, com o pianista suspenso em pena e espanto...

...era muito branca, quase transparente. Lívida. Diáfana. Muito estética Pré- Rafaelita. Se não fosse pragmática podia ser romântica, pois podia...




 o que era cirurgião apelidava-a de Angiografia Ambulatória,



 o meu pai chamava-a de Glicerina, a minha tia mais morena de Carne Mal Passada, e, quando me deram um coelho albino, a primeira coisa que a minha avó disse foi ai que Deus me perdoe mas é mesmo a figura chapada da austríaca!

...não, não havia zangas, era uma mania que tinham, essa  das alcunhas...

olha a tesoura da poda...  esta toquei-a... e o ralador de cenoura mais a colher... não tive outro remédio... e  o tambor de lata da manteiga de amendoim...com o algodão...



bom, um dia ele começou a explicar a forma como os negros escravos faziam a música, como inventavam instrumentos , as tonalidades...  e ,com ele a tocar gaita de beiços também ferrugenta e a dirigir , o António Augusto,  o Padre do Altar de Baixo, o meu pai  e mais não sei quem, começaram a tocar...

 chamaram-me para marcar o ritmo com a tesoura da poda e ... lá fiquei eu, aborrecidíssima e a pensar, se calhar, no Cat Stevens



 ou no Jim Morrison que eram mais bonitos que eles todos,  a abrir e a fechar a dita e nem te passa pela cabeça o que se pode fazer com um ralador e uma colher... lá razão tinha ele.. 
...o meu pai ficou com uma espécie de, sei lá, clarinete de cana de açucar...flauta não, parecido com clarinete rachado... 
   
foi uma sorte a minha cadela estar a dormir... ainda a requisitavam para ladrar o compasso. Maluca eu? Capazes disso eram eles e se aparecesse o si bémol nem o gato escapava, ele que não se refugiava a nota nenhuma nos miados...

essas pautas

 e os instrumentos...1800 e quanto?...



 bem  podiam ser emprestados ao Jordi Savall para o estudo que anda a fazer*... e essas bóbines...ele gravava tudo...e guardava tudo como um tesouro com histórias dentro



...mas olha que ainda tenho aquelas músicas na cabeça... ...nunca me esqueci  e lembro-me de pensar como aquilo se dançaria, como se transformava em corpo. Quem me havia de dizer...



e depois tocou aquela que a Ute Lemper canta muito. Reconheci-a logo quando a ouvi pela Marlene Dietrich. Sabes qual é? Quando vir o cd, lembro-me do nome... tenho-o debaixo da língua...aquela...



...o Tio António dizia que era uma espécie de hino nos cabarets intelectuais de Munique,




 a última cidade alemã,  a resistir à febre da lavagem moral nazi...onde até se tocava Mozart por oposição à onda de Wagner e Beethoven (coitados, o que lhes havia de calhar em sorte) que Hitler tinha metido na cabeça serem o expoente da raça...tanto que até dava instruções aos maestros como interpretar de forma a sair coisa heróica e guerreira...

 a última a expulsar as bandas de jazz, a música degenerada que levava pretos, brancos, amarelos às pintas ao apetite sexual animal...



 uns voltaram para Paris, londres, Estados Unidos, outros levaram sumisso...



 o Tio António nunca conseguiu encontrar um tal George que era one man show... pois, músicos pretos, donos judeus, travestis,





 ai a Carmen Amaya também? Então mais uma cigana para compor o ramalhete e  sujar o solo ariano...

uma vez contou que os músicos de um desses cabarés começaram a tocar e a cantar o Kyrie da Missa em C Menor do Mozart, com instrumentos de jazz, com voz de blues e...e...começou a chorar. Não sei se era memória liquida se um orgulho concentrado que não aguentou a barragem do silêncio da dor...não sei...bom...coño!



o que é que vou fazer?  Não sei... depois penso nisso...tanta coisa...tanta responsabilidade...
o resto fica para depois...antes que a Perúa Esquizofrénica...então, quem sai aos seus não degenera...

varra a História e mate a madeira que já não se usa, credo, para fazer nascer um reluzentinho alumínio...aquele que imita bem e é fácil de manter...sem ferrugem nem caruncho nem Tempo...







desce para eu fechar a luz...
...cuidado com o terceiro degrau... sempre foi traiçoeiro...

sabes que eles não usavam óculos



 porque isso de miopias e assim era coisa de gente com defeito de fabrico,



 de judeu enfezado e rato de biblioteca...fecharam os oculistas, quase todos de judeus...cuidado... e depois...como é que é possível...

*isto porque o infatigável Jordi Savall anda a fazer um estudo, cuja primeira fase já produziu espectáculo maravilha, sobre a interinfluência que se produzia nos barcos, entre a música europeia e a praticada pelos escravos negros oriundos principalmente de África. Desta mistura, mas em dança, já falei...sei lá onde... 

2 comentários:

bettips disse...

... delirante e tão vagamente familiar ao que fui conhecendo, não me lembrando nem de metade mas lampejos. Sendo que assim sou, de fogos fátuos, nem por isso menos fogos.
Voltei, já e ainda, aqui estou.
Um dia destes vou pelo maço de bytes e megas das mensagens, felizmente ainda sem ferrugem, ver o que se disse e o que se sói dizer, à propos-
Bjinho

Lizzie disse...

Bettips,

pois, a memória tem destas coisas de fogo: cai a faúlha, incendeia num sítio que até se julgava seco, chega aos arredores que estão húmidos e fica só um fumo ambíguo ou de fumaça pouco definida.

Nos últimos dias tenho andado um pouco pirómana por via de ao pé da mala haver outra de porão cheia de pautas manuscritas, com anotações que não entendo, e bobines com km de sons.

Chegou-me uma gerigonça de Castela que lê tal kilometragem e até já ouvi a minha voz, ingénua de tabacos, muito lá para trás no tempo.

Também faço parte daquele imenso concerto de fantasmas. O resto é uma sinfonia de geografias.

What the fuck is this, man Sir? Brother in Heaven, thi´s the ( soa a da) window´s (assim) my soul.

Pára a voz bêbada e entra um clarinete mal mantido mas bem tocado, interpretado. E a gente espreita tristeza e olhos injectados. Tudo o que não cabe nas palavras.

Entre barulho de copos, talheres Ich bin Lily "Marline" cantada obviamente por cordas vocais masculinas. Nem a Gertrude Stein...teria aquela gravidade imune ao si bemól.

Hoje, na fisioterapia, enquanto ouvia os outros dizer mal dos professores, do mal que fizeram às "crianças", sublinho crianças porque é o termo utilizado, ouvi tudo isto mentalmente e perguntei-me quantos exames é que aquelas crianças,as do tempo da "Marline", não tiveram e quantos é que nós fomos tendo até termos idade para descobrirmos que já éramos adultos.

E tão cedo...enfim...reticências...

Abraço.