terça-feira, 24 de dezembro de 2013




da extraordinária velocidade do tempo



Nevava. Nevava muito. E eu varria a neve dos degraus da entrada do edifício em tijolo nu.
 Como inquilina,  era a minha vez. Havia uma escala. Para todos os dias.

O rapaz dos Correios, ruivo e sardento, entregou-me uma encomenda. Brincou, a correr, com o remetente: ao menos em Lisbon, Portugal era verão o ano todo.

Era a primeira vez que recebia uma encomenda. Lá de tão longe.


 Dentro da caixa vinham os presentes de Natal.

 Embrulhados em ternura pela minha mãe. Coisas simples e úteis.


As que pretendem, com preocupação aflita, diminuir a distância. Sugar os oceanos até avizinhar as terras. Como na publicidade. Ou na fantasia.


Depois corri para a loja. Como quem tem urgência em fugir para o futuro para ultrapassar o presente.  Fui comprar uma couve portuguesa. Importada. E bacalhau já demolhado. E uma garrafa de vinho, creio que do Dão. Ou seria do Alentejo? Não me lembro. Na mercearia de balança adiantada, dos portugueses que ali tinham comércio como se na mais remota aldeia fosse.

 A judia tinha  dito que todos nós, os de países de culto cristão, deveriam ter a noite de Natal na casa dela. Que era enorme e tinha cómodos para todas as ocasiões.


 Ela própria tinha conhecido lonjuras e solidões crónicas e agudas. Com ou sem datas marcadas no calendário. Milionária mas com a tristeza agarrada à alma.


  E que levássemos, se possível, algumas tradições. Fraternidade cosmopolita.

Saímos cedo da noite. Dia 25 de Dezembro era-nos dia de trabalho. Com responsabilidade.

Talvez não fosse a primeira vez, mas liguei o despertador e percebi que tinha crescido.





Hoje, pela primeira vez, embrulhei umas pantufas quentes. Num papel azul ultramarino com ursinhos.

Noutro embrulho, está a moldura pequena, própria para a mesa de cabeceira, com a fotografia do seu gato preferido, o Fat Boy, o que, em casa, lhe ocupava o ombro como se fosse uma poltrona. Ou um trono. look, I´m HIS maid. A casa que, definitivamente a abandonou. Todos ali foram abandonados pelo que tiveram.



Pergunta sempre por ele. Pelo gato.
 E pela Miss Wilson, a manipuladora, ladra discreta mas eficiente de bifes. Sem falar na pescada. Já se esqueceu, ainda bem, que agora mora no céu dos felinos memoráveis. É bom que a morte não bata à porta da lembrança. Ao menos isso.


Noutro embrulho, uma lata inglesa de chá. Sem teína. Por causa das birras do coração.


As enfermeiras  disseram-me que o coração lhe anda volúvel. Pouco digno de confiança. A copiar a memória, o invejoso. Não sabemos se está a par da situação clínica da sua mãe... e, depois contam-me as suas travessuras. Silenciosas. Sempre silenciosas. Vá-se lá domesticar-lhe a vontade...


E uns "ginger biscuits" .

Talvez ainda se lembre e se ria com riso fresco, porque sempre se ri como se fosse hoje e não já ontem, com a figura da Tia Edith, a esculpir caricaturas ofensivas na massa. Que o forno tornava mais grotescas. Sobretudo a da própria mãe. Era terrível.

 E uma apple pie. Com pouco açucar.
 An apple a day keeps the doctor away. Fui ouvindo desde que nasci. Talvez mesmo antes.
E uns...

tenho pena, mas nunca aprendi a arte do eggnog. Se soubesse...

Há-de abrir cada pacote com os olhos espantados e infantis que nunca perdeu. Fiz tantos. Para multiplicar a surpresa.


Talvez não seja a primeira vez, mas ao escrever agora o nome dela nos embrulhos e nas caixas, a compor os laços,  percebo que já cresci tanto que não tenho outro remédio senão  envelhecer.

Acaba sempre por ser assim. Nem que seja devagarinho e sem alarde.



E que todos os que passem por aqui, estejam onde estiverem, dêem pouco por isso. Na medida do possível.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013



Prosa pouco natalícia acerca da verdade do espelho, ou não, conforme...que o Pai Natal me perdoe... 




Ninguém sabe onde e como  a figura começou.

 Nestas coisas não há o descanso nem a segurança das ciências exactas. Não Senhores.

Mas há quem defenda que veio do ritual praticado, mais coisa menos coisa, em várias partes do globo ou não fossem as pessoas parecidas nos instintos. Por mais voltas que se dê à geografia. Ou ao tempo.



Consta, então, que nas aldeias, chamemos-lhes assim, se celebrava uma festa anual de grande animação.

Nessa festa e em cada aldeia, espetava-se um poste na terra para marcar o centro do Mundo.
 Cada aldeia, como é costume, estava mais certa desse centro do que a vizinha e mais ainda das que ficavam distantes.

Ora, todos os rapazes da aldeia a que pertenciam, corriam a perna solta  para o poste.

O primeiro que lhe tocasse era considerado uma espécie de rei da comunidade. E era, então, mais importante que o Rei de todas as Comunidades, o tal que vivia tão longe e tão alto  que ninguém via.


 Continuando, o vencedor tinha todas as honrarias e glórias: as vestes mais aprumadas, finas e limpas e o sonho de todas as raparigas lhe receberem as sementes que lhes  dariam filhos também eles gloriosos e fortes.


Do último a chegar, apontava-lhe o povo a sua fraqueza, a falta de força,  velocidade e jeito quando não a deformidade que lhe coubesse em sorte ao nascer.


Seria mancebo andrajoso, humilde e sem préstimo e assim haveria de morrer quer a vida lhe fosse curta ou longa.

Esmolaria sustento embalado em desprezo.



Se outras não levasse, já lhe bastariam as bofetadas de riso, tantas que até ele acabaria por se rir de si.

Esta característica patética de rir para fora foi-lhe tão exigida que se habituou a pintar uma boca de berrantes cores  com os cantos virados para cima.

No meio do riso, poucos repararam, e  reparam, que aquela com que nasceu está condenada a viver com os cantos virados para baixo.


Há quem diga que não há gente mais triste que a que faz rir.


E como as gentes tinham gáudio em ver lágrimas, neles e nos condenados em vias de morte pública,


 também se habituou a desenhar-lhes o percurso pelas faces abaixo.


 E das quedas e tropeços, outras das suas apreciadas pecularidades, ficavam-lhe só mais  gargalhadas que o faziam tão tonto que voltava a cair.

 Como se o seu chão morasse no ar.

Não era raro, pois não, ser comprado e levado para outras aldeias , vilas e cidades.



Como não foram nem são raras as sofisticações e suas derivadas. Como as obras de Arte. Em todos os campos e metáforas.



Nem as considerações letradas acerca de vencidos e vencedores, resignados ou lutadores, verdadeiros ou falsos, alegres ou tristes submersos, todos espelhos paradoxais de que se foge, rindo.

(Conheci um que isso mesmo se considerava: um espelho polido dos outros, os de cara lavada.)

Dizem que quanto mais desgraçado mais ensinava as crianças a rir.

Como também se diz que a amargura guardada, engolida, tornava alguns irmãos  do Demo. De inocência tão morta quanto fétida.


Voltando aos protótipos, no séc. XIX, por exemplo, um de raça negra ficou célebre pelas suas danças.

O medo e a dor sempre criaram tantas ou mais coreografias de improviso que a alegria. Mesmo que seja debaixo de holofotes e veludos ao som da famosa valsa "Sobre las olas" de Juventino Rosas.


O seu último proprietário, homem que hoje seria considerado  empreendedor de sucesso com reportagem televisiva,  dado a descobrir os ridículos ou extraordinários que faziam rir ou espantar os povos,



 descobriu que, alçando-lhe o chicote ao som de pandeiretas e gaitas, o desfadado ficava com tal falta de tento e desengonço nas pernas que inaugurou um estilo mais tarde tornado famoso por Elvis (Pelvis) Presley e reproduzido pelo débil no filme Forest Gump, interpretado por Tom Hanks .

  Senhores, ainda que às vezes não pareça, quase nada nasce do nada.

Se ninguém sabe do início, duvido que alguém saiba do fim.

Porque Senhores, ainda ontem em passeio pelas redondezas da minha morada me deparei com esta porta:


Disse-me uma mulher  com mão cheia de milho para as galinhas e com gargalhada desdentada que o filho já muito adulto assim a tinha marcado, identificando, a todos os conterrâneos e forasteiros, a natureza dos ocupantes.

(Lembrei-me da ordem soltada por uma personagem do filme português, de que não gostei, "Sete pecados rurais": soltem o anão! E as bofetadas de feira em segundo plano, Senhores, e as bofetadas...)

E no sábado, à porta do supermercado e em promoção de circo de Natal, um homem com lantejoulas e falsa pronúncia espanholada, batia noutro. À laia de aperitivo para sova maior, suponho.  Que vacilava. Quase caía. Quase tropeçava nos sapatos.

No meio dos risos e do chiar dos carrinhos das compras, por muito que eu olhasse, para além da maquilhagem, não consegui descobrir o poste que não alcançou. Ou que meta lhe exigiram ou se exigiu.Ou  em que degredo voluntário a sua vontade se fechou.



Talvez, como qualquer outra pessoa, tenha direito à sua  margem de silêncio. Obviamente.



sexta-feira, 22 de novembro de 2013


do antigo cofre das palavras

Conta-se que naquele tempo as mulheres ainda eram mais filhas da terra que do demónio.

E que se juntavam à volta dos castanheiros quando o sol se tornava pequeno, tímido quando não desaparecido. No que é hoje o mês de Novembro.


Os castanheiros eram as árvores onde se guardavam as palavras que as mulheres mais antigas tinham dito. Como se verá.

Neles também se escondiam as palavras dos poetas e dos astrólogos, aqueles que nos astros viam os futuros e as causas das consequências dos presentes.

Estas palavras só viviam nas vozes das mulheres e só elas sabiam ouvi-las porque as letras e os pensamentos ainda  eram pouco visíveis nos pergaminhos, nas tábuas ou nas pedras.


 As palavras tinham  tendência para habitarem o coração mais guardado das mulheres.

Diz-se que debaixo dos castanheiros se sentavam.

 A entrelaçar palavras que se transformavam em histórias e inventavam paisagens e mundos nunca vistos.

Tinham palavras que coloriam com luz, tão alegres como as asas dos pássaros.

As palavras ditas à roda dos castanheiros batiam à porta silenciosa e envergonhada das almas, entravam e varriam todas as mágoas e más lembranças.


Com elas as mulheres criavam beleza.
 Diz-se que eram criadoras para além da água suave dos seus ventres férteis.
É o que se diz!

Então, com as palavras também teciam canções.

 E também bailavam danças de roda sem juízo algum.



As palavras chegavam ao incrível ponto de já não se casarem umas com as outras e parecerem perdidas, sem rumo onde poisar o sentido.

Alguns homens viam-nas de longe e ficavam com medo das palavras que não conheciam.
 Há quem diga que temiam a verdade daquelas palavras soltas.

Outros sentiam-nas sábias.


Depois as mulheres voltavam para as suas casas e afazeres.




 E em cada ano guardavam uma castanha na arca do seu sustento.

 As castanhas mirradas tinham companhia nas rugas das mulheres.

Talvez as castanhas fossem cofres de palavras.

Quando alguma mulher morria, as filhas ou as irmãs enterravam as castanhas da falecida junto à nascença do tronco dos castanheiros.


Assim as mulheres seguintes podiam ouvir, falar, cantar, dançar,  as palavras antigas.


Depois, mais tarde, vieram aqueles homens que reuniram todos os deuses num só.


 e gritaram pelo mundo, esquecendo-se das suas mães na terra e no céu , que nas palavras das mulheres estavam todos os males do Mundo.


Os castanheiros viram chamas de mulheres. E alguns receberam as pedras que lhes falhavam no corpo a eles preso.


Mesmo assim, ainda hoje já tarde no tempo, em terras da Irlanda e mais a sul sem tocar no Continente,  algumas mulheres guardam uma castanha de cada ano.

A castanha em que estão todas as palavras inventadas. Talvez todas as palavras dos poetas mesmo que silenciosos.

 Talvez todas as palavras dignas de serem dançadas.