da extraordinária velocidade do tempo
Nevava. Nevava muito. E eu varria a neve dos degraus da entrada do edifício em tijolo nu.
Como inquilina, era a minha vez. Havia uma escala. Para todos os dias.
O rapaz dos Correios, ruivo e sardento, entregou-me uma encomenda. Brincou, a correr, com o remetente: ao menos em Lisbon, Portugal era verão o ano todo.
Era a primeira vez que recebia uma encomenda. Lá de tão longe.
Dentro da caixa vinham os presentes de Natal.
Embrulhados em ternura pela minha mãe. Coisas simples e úteis.
As que pretendem, com preocupação aflita, diminuir a distância. Sugar os oceanos até avizinhar as terras. Como na publicidade. Ou na fantasia.
Depois corri para a loja. Como quem tem urgência em fugir para o futuro para ultrapassar o presente. Fui comprar uma couve portuguesa. Importada. E bacalhau já demolhado. E uma garrafa de vinho, creio que do Dão. Ou seria do Alentejo? Não me lembro. Na mercearia de balança adiantada, dos portugueses que ali tinham comércio como se na mais remota aldeia fosse.
A judia tinha dito que todos nós, os de países de culto cristão, deveriam ter a noite de Natal na casa dela. Que era enorme e tinha cómodos para todas as ocasiões.
Ela própria tinha conhecido lonjuras e solidões crónicas e agudas. Com ou sem datas marcadas no calendário. Milionária mas com a tristeza agarrada à alma.
E que levássemos, se possível, algumas tradições. Fraternidade cosmopolita.
Saímos cedo da noite. Dia 25 de Dezembro era-nos dia de trabalho. Com responsabilidade.
Talvez não fosse a primeira vez, mas liguei o despertador e percebi que tinha crescido.
Hoje, pela primeira vez, embrulhei umas pantufas quentes. Num papel azul ultramarino com ursinhos.
Noutro embrulho, está a moldura pequena, própria para a mesa de cabeceira, com a fotografia do seu gato preferido, o Fat Boy, o que, em casa, lhe ocupava o ombro como se fosse uma poltrona. Ou um trono. look, I´m HIS maid. A casa que, definitivamente a abandonou. Todos ali foram abandonados pelo que tiveram.
Pergunta sempre por ele. Pelo gato.
E pela Miss Wilson, a manipuladora, ladra discreta mas eficiente de bifes. Sem falar na pescada. Já se esqueceu, ainda bem, que agora mora no céu dos felinos memoráveis. É bom que a morte não bata à porta da lembrança. Ao menos isso.
Noutro embrulho, uma lata inglesa de chá. Sem teína. Por causa das birras do coração.
As enfermeiras disseram-me que o coração lhe anda volúvel. Pouco digno de confiança. A copiar a memória, o invejoso. Não sabemos se está a par da situação clínica da sua mãe... e, depois contam-me as suas travessuras. Silenciosas. Sempre silenciosas. Vá-se lá domesticar-lhe a vontade...
E uns "ginger biscuits" .
Talvez ainda se lembre e se ria com riso fresco, porque sempre se ri como se fosse hoje e não já ontem, com a figura da Tia Edith, a esculpir caricaturas ofensivas na massa. Que o forno tornava mais grotescas. Sobretudo a da própria mãe. Era terrível.
E uma apple pie. Com pouco açucar.
An apple a day keeps the doctor away. Fui ouvindo desde que nasci. Talvez mesmo antes.
E uns...
tenho pena, mas nunca aprendi a arte do eggnog. Se soubesse...
Há-de abrir cada pacote com os olhos espantados e infantis que nunca perdeu. Fiz tantos. Para multiplicar a surpresa.
Talvez não seja a primeira vez, mas ao escrever agora o nome dela nos embrulhos e nas caixas, a compor os laços, percebo que já cresci tanto que não tenho outro remédio senão envelhecer.
Acaba sempre por ser assim. Nem que seja devagarinho e sem alarde.
E que todos os que passem por aqui, estejam onde estiverem, dêem pouco por isso. Na medida do possível.