quinta-feira, 9 de agosto de 2012



A gramática circular da vitrine


Contar-vos a história dos caixotes contentores destes livros que aqui vos trago, seria nem sei se longo se pouco exacto.


O que interessa é que, inesperadamente e sem aviso me aterraram no sotão, cheios do pó, daquele que entranhado, é prova do tempo.
 Do abandono.

Da espera.
 Da memória enclausurada.
Pareceram-me os caixotes cheios de livros mais afónicos  e aflitos que mortos. Resignados, não! Não consigo imaginar nenhum livro condenado à resignação. Por muito mau ou estúpido que seja.


Tirei o primeiro e lembrei-me, Senhores, sei lá em que ponto do cérebro andava aquela casa guardada.


Uma sala muito escura onde era sempre noite mesmo que na rua ferisse o sol de Agosto ao meio dia. Persianas corridas.  E cheirava a noite. Um cheiro gasto. Uma sala com asma, faz de conta. Móveis pesados e escuros. Se calhar estavam sempre a dormir.


E tinha uma senhora que cheirava a pão com bolor misturado, em açorda, com o cheiro da perfumaria da Praça de Londres, um bocadinho mais acima, que tinha um senhor gordo com as calças no peito. O senhor tinha camisola de alças atrás da camisa branca e mamas. Pois tinha. Juro que tinha. Grandes.

Às vezes a senhora também cheirava àquilo que a minha mãe me punha nos joelhos esfolados e que fazia espuma branca sem arder.

A senhora estava sempre sentada numa camilha. Era muito avó. Era muito mais grande que as minhas avós. A minha mãe disse-me que quando eu era muito pequenina , "como é que te lembras dela?", já tinha noventa e tal anos e morreu logo a seguir.


Eu tinha que lhe dizer boa tarde prima, pedir licença para entrar e depois  mandava-me sentar ao pé dela enquanto os grandes falavam de coisas que eu não sabia o que eram. Nem sobre quem. Nem coisa nenhuma.

Mas lembro-me de na camilha estarem papéis e dela mandar buscar livros que tinham sido do António e dela me mandar fazer desenhos.
Dentro de um destes livros que agora vos mostro estava este.


Não está assinado. Não sei se serei a autora desta manifestação da contemporãnea escola da Bad Painting. Ou expressionismo figurativo. Ou coisa assim. Agora não me apetecem rótulos. Muito menos pensar neles. Por pouco que seja.

Mas a senhora fumava muito. A minha mãe diz que acendia uns cigarros uns nos outros e tinha em cima da camilha uns pacotes com dez maços em vez de um maço só.

 Diz também que era muito alegre, conversava muito com muitos convidados mas fumava assim para morrer mais depressa. Porque era muito triste e os olhos dela tinham medo da luz. Do descaramento do dia.


Não sei se me lembro ou se invento lembrar-me quando tiro um maço que está a fazer companhia aos livros nos caixotes, que os maços eram amarelos.


Também me lembro que ela ralhava com o meu pai que encontrei no meio de outro livro.

Agora parece-me que o meu pai chegou ao livro através de outra vida. Quando uma pessoa cresce, parece que parte a vida às fatias e as pôe numa vitrine de que perdeu a chave.


Não é nada parecido com a pessoa deitada, com voz fraca, cheio de células sonsas que se instalaram nos orgãos dele a fazerem picnics e a fornicarem para multiplicar os filhos. Tantos que mataram a floresta e morreram de fartura.


Também estão lá livros brasileiros.

A minha mãe diz que deviam ser da Sophia, que viveu alguns anos no Brasil. Não me lembro nada dela. Mas parece que se me lembro da outra, me devia lembrar muito mais desta. Mas não me lembro. Já tentei mas não me lembro. Nada, nada.

Mas de certeza que não leu os livros do Julinho: nunca gostou de se levantar cedo e de fazer o que lhe mandavam. Eu também não devo ter lido até porque não sabia ler.


Agora sei ler. Ainda vai havendo muita gente que aprendeu a ler. Que sabe mais gramática que eu. Não é difícil, convenhamos.


E, por isso, ponho-me a pensar para onde hei-de mandar os caixotes.

A senhora tinha um apelido viajante.


O mesmo que eu tenho e no mesmo sítio: no fim do nome completo, lá para a área geográfica dos apelidos.

Os mais antigos também tiveram esse nome e viajaram.

Os livros ficarão muito tristes se lhes puser a tampa em cima.
 Nenhum livro gosta de ser inútil. Em nenhum tempo.



 Gostam mais de ser pegados para que as pessoas naveguem nas letras e nas imagens deles. Acho eu.

E por isso, por causa disto tudo, depois de ler alguns que nem li nem sei,


 talvez os mande para Inglaterra, para uma Universidade que tem um sítio dedicado a Portugal.

 É um sítio muito arrumado. Os livros são tão bem tratados que quando houve uma guerra com bombas a caírem do céu, meteram todos os livros debaixo do chão.


 Até meteram os livros escritos pela pena e punho do primeiro apelido viajante.

  Já disseram para eu escrever um texto sobre a senhora que tinha os livros em casa. Para as pessoas saberem donde vieram os livros.


Talvez escreva.
Talvez os mande para lá.
Talvez então me lembre como era a Sophia  com ph que nunca aprendeu as lições sensatas do Travesso Julinho.


Talvez.

5 comentários:

bettips disse...

Descobertas bem tuas! Manda os livros, Lizzie, para onde sejam bem tratados... São duma beleza, além de poderem ser lidos, também "falam". O país nosso está espalhado pelo mundo, bom seria que se concentrassem em manter, pelo menos, aqui as raízes. Mas não. Até a fundação de Paula R - vê lá tu, uma casa das histórias e uma arquitectura que em qualquer país... - está ameaçada! E tu às tantas não tens conhecimentos nem dinheiro para "fazer uma fundação".
Manda os livros. Alguém tirará um pós-doutoramento sobre "a ditosa pátria, minha amada".
Aposto que o gato sem assinatura, em casa da cousine madame qui fumait assez, é de tua pequena autoria. Bjinho

Lizzie disse...

Bettips,

pois mando. Já decidi que mando para sítio onde o pó da estupidez não lhes faça as folhas em renda ilegível.

Porque o vulcão da incompetência, do absurdo está activo.
Pensei: e se um qualquer licenciado ainda mais abaixo que a farinha Amparo se lembra de atear o fogo da lareira, enquanto discute negócios que nada têm a ver com letras, com artes, com vida?

Já tive a experiência do Violoncelo de que aqui já contei a história.
E vê lá tu que tendo-o doado, ainda hoje recebi uma carta com os sítios onde vai ser tocado.

(Proximamente estará em Madrid.
Cumpre a vocação viajante da família. Porque existem livros objectos, músicas, casas... tudo que nos pode correr pelas veias dos afectos e das emoções.)

É este respeito pelo afecto pessoal e colectivo que falta.
A estupidez, a falta de formação e sobretudo esta, criam uma autofagia da memória.

Poucas pessoas no mundo têm divulgado tanto Portugal como a Paula Rego. Ele é a biografia, ele são as entrevistas. E olha...

Não foram as responsabilidades pessoais que tenho e, sobretudo depois de uma batalha que travei hoje, mandava-me também a mim e sem regresso.

Não há democracia quando se descobre, que subtilmente e sem cabeçalhos de jornais, todas as armas foram transferidas só para um lado.

Enfim...
estava para ir arejar a casa pequena hoje mas não tive tempo. Nem para conversas à lareira que estou a dever.

Bjs

ps. ...e pois, não posso criar nenhuma fundação mas em Inglaterra e nos Países Baixos existem departamentos e instituições com o nome português do primeiro viajante. E é assim: Vergonhoso!

augusto, um entre mil disse...

não é a primeira vez, Senhora, nem a segunda, nem mesmo a terceira que fazeis o passado viver no presente


e os objectos estão espalhados por aqui,


as pessoas movimentam-se, falam e sinto-as com o mesmo prazer que sentia quando em pequeno lia as estórias da colecção manecas.


uma palavra escrita e o pó desaparece e tudo se passa agora: o sol, as sombras...

sente-se os cheiros.

sabemos que não, mas tudo está vivo.



é a vossa varinha de condão.





eu

já tive sótãos onde fui navegador à descoberta

hoje,

saudade, com alguma quase suave tristeza;

pessoas,

livros.

que não consigo trazer para o presente

nem enviar


para onde?



Lizzie disse...

Senhor,

bem gostaria de criar um Museu das Coisas Esquecidas, esquecidas na memória e esquecidas no trajecto da sua existência.

Olhando as coisas às vezes quase, quase se consegue adivinhar que espécie de pessoas as usou, quem lhes esteve perto.

Por exemplo, vendo o sublinhado, a grafite ou a tinta de pena, de alguns livros que, por enquanto habitam o meu sotão, consigo, acho eu, ver muito mais do que aquilo que escreveram ou me disseram que costumavam dizer.

E se sentis que as coisas estão vivas é porque também eu as vejo assim, olhando para dentro. Nem imaginais o quanto vivem embora às vezes só em flash:

é como se andasse numa galeria às escuras e de repente se abrissem as luzes e visse um quadro, depois outro, depois um filme e assim.

E, Senhor, tenho pouco olfacto agora, baralho quase tudo mas lembro-me dos cheiros quando o tinha apurado.
Senhor, penso que também agora tenho dislexia no nariz.

Haverá muita coisa que também não sei para onde mandar. Se as escrevesse talvez tivessem algum destino. Assim não sei. Umas seguirão o seu destino, outras terão comigo morte. Suponho que nessa altura tudo me será indiferente já que não acredito nas histórias contadas pelas alminhas do outro mundo.

A pouco e pouco, Senhor, toda a gente fica no meio do sótão, rodeada de memórias teimosas, que não obedecem, que não se mexem do sitio onde estão.
É um jogo das escondidas, misturado com o jogo do stop.

O problema é delas.

Os meus sempre lembrados respeitos.

Lizzie disse...

...e estava para mudar a arrumação deste e fazer outro de repouso por uns dias, mas o tempo...