Vinha eu destes dias sem obrigações rotineiras, burocráticas, enfadonhas e absurdas a soldo, quando me lembrei que para além de estar mais velha, ao contrário do que fantasiei no anterior, deveria a espécie humana e quiçá outras, ter uma espécie de Tupperware no frigorífico da memória, pronto a ser aberto sempre que desse a fome de sentido, prazer, calma ou outros ingredientes de reconciliação com o acto de ter que se estar onde não se deseja nem a natureza de cada um pede.
Seria mais uma espécie de teletransporte para o gosto mais do que uma mera e difusa lembrança.
Volta e meia também se poderia, qual dona de casa amestrada e avessa ao desleixo,
deitar fora algumas caixas. Umas cheias de desperdício, outras infectadas pelo que não se escolheu ver.
Assim , agora, poderia eu sentir, mais que lembrar, a areia fresca nos pés, o vento a contar viagens na cara numa paisagem que, ficando em Portugal, bem podia conter nos nevoeiros, no chumbo indeciso das nuvens, as lendas escocesas.
Neste Junho bem popular e entrado embora falho de sardinha a preço módico e sem pretensões a iguaria, nas tascas honestas e de muito asseio que deixaram de existir de um imposto para o outro.
Poderia entrar em conversas vadias sem problemáticas de futebol nem réplicas ao domicílio de jogadores decorados com popa modulada a gel , brinco de pechisbeque na orelha, camisola ou camisa a realçar o grande peitoral, que o diamante milionário e a ampla musculatura ibérica com progenitura insular se reservam para o original.
Poderia deitar fora, a propósito, a caixa pouco hermética e imune a germes que contém aquela lembrança de menina em diante que me tornou alérgica ao desporto rei:
para além de guerras mansas ou cheias de amor de mãe no braço, das clausuras de corpo e espírito,
dos estrangeiros, entre outras coisas, Senhores, a drogarem-se com água suja da Coca-Cola e das modernices e poucas vergonhas inerentes, lá tão longe,
encosta o radinho de pilhas, modesto mas honrado, ao ouvido e vibra, e sofre e rejubila com a voz competente e descritiva de Artur Agostinho na Emissora Nacional enquanto o filho devora o Pastel de Belém
e a mulher faz naperón para adornar a televisão, possível desde que o marido subiu pela Lei de Peter a chefe da estação dos Correios.
E também me podia ver livre da caixa com a tampa aberta, cheia de risos, desprezos e outras fealdades onde, encolhidos de medo e vergonha estão o alfaiate conhecido por Maria Maluca.
Mais a enfermeira Olinda, espécie de mulher muito solteira, sempre de calças, cigarro na boca, cabelo curto, tanto que só lhe faltava fazer a barba com Gillette de lamina dupla e gritar pelo Benfica.
Tanta racionalidade mas sinto-lhe um olhar involuntário para uma palavra escrita para cá da linha do mar numa língua que, ali, tirando eu, ninguém conhece: saudade.
Treme-lhe o corpo, todos os seus já foram menos ele, comentamos entre nós, sabemos lá, um braço partido cura-se com gesso, uma indigestão com água das pedras mas a alma abandonada talvez só com lágrimas, mesmo quando remetidas à secura.
Que ganas tengo yo de pan e lá se segue noite bem alta o ritual antigo do amassar.
Ficam as mãos urbanas sem idade, ou melhor, sem tempo e muita história.
quebra a brancura da lua como o crepitar se junta à voz de um canto sefardita, descoberto por um monge de Poblet de olhos míopes, em paz, com silhueta discreta, debruçada na luz da janela da sala.
Jordi Savall espalhou-o pelo mundo, mantém a caixa aberta aos cantos remotos numa glória maior que qualquer golo ou campeonato. Tanto amor e morte, tanta voz a circular no sangue de quem a arrasta pelo chão do palco.
Bem tento abrir a caixa quando, agora, me levanto, pouco depois de na semana passada ser hora de me deitar, corpo lasso e adormecer sem me aperceber que estive acordada. Levava-me o vento a consciência.
E levanto-me quase sem me aperceber que estive a dormir.
Acidente sobre a ponte do Rio Trancão, trânsito lento, uma bandeira na janela do carro da frente, orgulho e vingança nacionais.
S. Cristóvão em zinco no tablier.
Finalmente a União Europeia ou lá que estratega de tal xadrez,
consegue que a Espanha tenha uma dívida maior do que aquilo que deve,
penalti,
mais austeridade ainda,
golo,
qual será o próximo a entrar no jogo, a aquecer no banco dos suplentes
e a nuvem solitária sobre o aeroporto da Portela faz-me lembrar a lenda índia, ou inglesa, já não sei em que tupperware está, do pássaro que de tão ambicioso no voo, tanto subiu que espetou o bico no céu e ali ficou cheio de altitude inútil.
Ouço então Alfonso Ferrabosco o Velho,
Nem reparo que abri um novotupperware. E se para a semana, eu …imaginar que a árvore de Giotto dança quando se ouvirem as notas?
Parece, Senhores que, como nos frigoríficos de toda a gente, as minhas caixas se reproduzem e que sem espelho, escondido num canto, o electrodoméstico não tem outro remédio senão crescer.
1 comentário:
Crónica duma boa malandra que foi a uma reunião de tupperwares lá para os lados de Bruegel, enquanto a mesa se fartava e as crianças corriam em baixo!
Boas coisas se guardam e sempre podemos ver "em que estado" estão ao abrir! Divirto-me a gostar das semelhanças (S. Sebastião, esse lindo santinho) o fosco brilhante dos filmes a preto e branco, a voo da ave que dança...
Bjinho Lizzie
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