Vai este, Meus Senhores, cheio de palavras travadas pelo movimento que me tem prendido às estradas. Pelo chão, pelo ar. Por aí.
Como uma espécie em vias de extinção: caixeira viajante de ilusões num Tempo talentoso na arte de bem mendigar esquecimentos, saudades,
cansado da venda a retalho dos medos. Em saldo, perto, pertíssimo, encostado ao fim do prazo de validade.
Perdido. Sem Deus nem Diabo (substituídos por candidatos a duplos instantãneos e transitórios em pose para o melhor retrato a figurar no álbum da eternidade e da omnisciência)
e em que o Amor e o Fascínio parecem emprestados a uma simples questão de hábito. Ou obrigação.
E depois, credo,parece que a surpresa e a Arte, casada com o Deslumbre, se portam como cicerones da morte.
Tantos em tão poucos meses. Espalhados pela música,
pelos pincéis, pelas letras, pelas cãmaras, pelos corpos
ou simplesmente pela intenção sem voz de distribuir o outro lado das coisas, ou o periférico, como são os sonhos. A visão que ajuda os sentidos a sentir, transpirando-os. Dói perder quem transpira de uma forma asseada. Limpida.
Fiquem, pois, à vossa vontade nestes dias. De vez enquando, virei arejar a casa,
mudar os quadros consoante o que me apetecer falar-vos por palavras embrulhadas em imagens.
Talvez tenha até tempo para me sentar um bocado e falar convosco.
A porta fica encostada, as janelas abertas...
o fresco e as cores do Outono, pelo menos para mim, imaginar-se-ão...se possível.
Até amanhã.
1 comentário:
Senhor:
respondo-vos neste ao anterior porque, ao fim e ao cabo, está tudo ligado.
Será que vosso filho andou no mesmo rigoroso colégio que eu embora desencontrados em idade,salas e aprendizagem?
Pois conheci a música do Bernardo Sasseti antes de o conhecer a ele, ordem que prefiro à inversa.
Mais vos digo que estava no meu repouso, deitada no sofá, acontecia o crepúsculo, ampliava o rumor da Alcalà uma ameaça de chuva.
E foi uma revelação, o comando de repetição do leitor de cds quase gasto de tanto uso para uma faixa em particular: a Noite.
Logo comecei por transferir as notas para as mãos. Acho que a música, antes de alastrar se instalou nelas.
Quando se vê assim uma música, todos os pormenores são uma contínua descoberta porque dentro deles se veêm outros pormenores e dentro destes outros.
E fomos três pessoas a brincar como se fosse a sério, como acontece quando se instala a última juventude a morrer: o entusiasmo.
O problema é que para ficar perfeito ter-se-ia de cortar a cabeça a uma, enxertá-la no corpo de outra, juntando ainda as mãos, expressivas e treinadas para o flamenco, de outra.
(A bem dizer resultaria uma pessoa muito esquisita, credo,cruzes.)
Quando o conheci fomos para um canto fora da monotonia da fútil obrigação social e entre a história da música dele alojada em mãos à chuva no meio do mar também lhe disse que ele tinha, como o Philip Glass, um extraordinário talento para o silêncio, ou seja, para pausas e suspenções que, por acaso, como as escalas, me são muito gratas.
Na segunda feira, levei a Senhora Minha Mãe numa das minhas viagens (esta mais curta).
Por acaso botei o cd no leitor carro e ela pôs a mão fora da janela, riu-se muito e disse-me para olhar porque estava a tocar piano ao vento.
Entrou-me muito pó para os olhos porque uma mão já tão velha que parece infantil, juntou a chuva ao vento debaixo de um sol tórrido e áspero.
Senhor, é tão triste acabar antes do fim, como ter fim antes de se acabar.
Talvez.
Os meus também sempre reiterados respeitos.
Sentai-vos onde vos apetecer. Com ou sem palavras.
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