Requiem para uma linha recta que detestava a tosse provocada pelas curvas.
Imagino que Dona Maria do Céu (nome devotado às místicas alturas com que o senhor meu pai em revolta adolescente e não só a alcunhou) não nasceu como as demais terrenas.
De facto, parece ter nascido com a idade que sempre viria a ter.
o que leva, inevitavelmente, a que até e por exemplo, as mulheres fumem
e mudem borrachas de torneiras quando não chegam mesmo a mudar tomadas eléctricas ou pneus furados sem falar no uso indiscriminado de calças ou outros trajes ainda mais impróprios à histórica condição.
Dona Maria do Céu quando assomou à janela íntima da mãe, além de já ter escrito mentalmente um compêndio da arte de bem ordenar, logo terá vociferado contra o cenário desarrumado, caótico, sujo e suado que lhe foi dado conhecer.
Durante a sua longa vida, aliás, Dona Maria do Céu sempre orientou as hostes pelo seu próprio e certo exemplo, o que me levou por minha vez, respeitando os princípios constantes da informação do ADN, a alcunhá-la de tal forma que o pudor me obriga a silêncio público, tendo-me bastado na altura o suplício de lavar a loiça de vinte pessoas mais os tachos e panelas necessários à confecção da janta.
Bem me lembro de Dona Maria do Céu F.C.P.M. de G., sentada em sofá de honra, fosse qual fosse a ambiência, de mãos dadas no colo, pernas traçadas de forma a que o peito do pé direito se encaixasse na curva anterior do tornozelo esquerdo, de voz delicada e adocicada, a instruir para a vida e tantas vezes para a morte, os seus súbditos familiares estatutários, quase todos com algum desarranjo comportamental que não conseguia entender na causa quanto mais na consequência.
Dona Maria do Céu, metodicamente, tirou um curso que lhe proporcionou tratar dum amplo e enfermo rebanho, com especialização em maleitas pulmonares. Tornou-se, desde cedo, perita caçadora de manchas das mais diversas proveniências e incapacitantes das livres trocas gasosas.
E grande decifradora da criptografia das tosses.
Tornou-se rainha no romântico terreiro dos sanatórios, tomou armadura contra a febrícola de fim da tarde, as transpirações nocturnas, os requebros do apetite, as aleivosias dos bacilos.
Deus e toda uma vasta assembleia de Santos e Mártires, ter-lhe-ão segredado tal vocação, enquanto ela própria pouco saudável, tratava às escondidas e ainda sem ciência nem estudo, feridos multipartidários da Guerra Civil de Espanha bem como Judeus no transito de fuga do Inferno.
Dona Maria do Céu sempre defendeu que se a política pode provocar doença, os doentes não tem culpa da política.
Dessa forma, tratou também, à porta fechada, prisioneiros políticos portugueses mesmo aqueles que declaradamente cuspiam em todas as crenças menos na sua como é próprio do entusiasmo humano.
Foi sem surpresa que, no 25 de Abril, Dona Maria do Céu se viu algemada por um doente já sem tosse enquanto que outro, discutindo com o primeiro e em memória da respiração solta, lhe aconselhava a ida,enquanto o pó poisava, para Espanha que sempre é mais perto que o Brasil.
Fui testemunha da calma com que Dona Maria do Céu, de pernas traçadas de forma a que o peito do pé direito se encaixasse na curva anterior do tornozelo esquerdo e sentada no sofá, assistiu à argumentação dos pares.
Ora foi e voltou não se adaptando ao barulhento, efusivo e anárquico receituário castelhano.
Dona Maria do Céu, sempre se manteve casta e assumidamente pura nunca se sentindo compelida a jogar nas lotarias sexuais nem do imediato pós guerra nem nos anos sessenta noutras terras.
Preferia ver brotar dos vasos uterinos da sua sagrada família directa ou por afinidade, rebentos a quem procurava instruir e orientar nem que fosse por via indirecta.
(Conseguiu, assim, que esta que aqui vos escreve, fosse baptizada em conjunto com muitos outros de diversas idades menores e em modalidade de pacote,
Já em provecta idade, foi com engasgo espantado e incrédulo que todos receberam a notícia do seu noivado com espécime viril de tosse longa, produto de uma colheita alentejana mal afamada em costumes e génio, servida em taça de prostíbulo, cinzelada a corno de toiro, estagiada em fado palaciano mais tradicional que por gosto ou sentimento.
Talvez pela primeira vez na vida, Dona Maria do Céu, caiu no absurdo pouco racional e científico de calçar um sapato de cristal roído pelo caruncho, oferecido por um príncipe de calças, mestre em latim mas incapaz de mudar a borracha de uma torneira, uma tomada ou um pneu furado mas, sobretudo, pouco sensível às paredes e ao arvoredo democrático dos sanatórios.
Para não alongar ainda mais, há algum tempo, Dona Maria do Céu sentada no sofá de honra ainda que de pé e junto a um jazigo (tal encontro já foi motivo de prosa há um ano e tal atrás nesta casa), confessou-me começar a reconhecer em si sinais de demência por excesso de idade. Mais disse ser o processo até à falta total de juízo, rápido e sem retorno.
Dona Maria do Céu começou então a arrumar-se e aos seus pertences, se não para a morte pelo menos para um silêncio mais profundo.
Na semana passada por em andanças ter passado perto, bati aos portões,
fui bem recebida, entreguei, fiz visita guiada, olhei as manchas de sangue antigo nas lajes subterrâneas, colhi laranjas do claustro, tive inveja de todas as crenças, esperanças e redenções, segui viagem enquanto
Dona Maria do Céu, presa a uma cama gradeada dá ordens aos filhos que não teve, cuida dos irmãos que já morreram, passa receitas aos doentes que lhe surgem em frente aos olhos, conversa com quem ninguém vê sobre assuntos que ninguém entende numa língua sem tradução.
Com a alma sentada, de mãos dadas no colo, pernas traçadas de forma a que o peito do pé direito se encaixe na curva anterior do tornozelo esquerdo, de voz delicada e adocicada, há-de levantar o dedo indicador e traçar no gráfico do espaço, uma linha plana onde a postura não admite sobressaltos.
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