terça-feira, 27 de dezembro de 2011




Oh Mãe,

estás de chinelos com este frio?

Cais agora...calça ao menos estas meias, são as de aquecimento que nós usamos, que coisa, és pior que as crianças!

A tia Elizabeth andava sempre com meias altas, tinha os olhos muito azuis, a pele muito branca e o cabelo parecia neve, muito brilhante, lembras-te? Não te deves lembrar. Fazia sempre o eggnog, era a tradição, tinha que ser ela a fazer, coitada, sempre muito calada...tão boa pessoa




Os índios do Novo México dizem que as estrelas são as  almas das boas pessoas e dos animais que morrem. Que coisa mais enjoativa!

Vê lá se tens tento na língua...tens bem a quem sair...



Estava a falar no eggnog, não da tia Elizabeth Pantene ProV. Queres que te parta nozes? Pára lá de comer o chocolate. Faz-te mal!



O teu pai gostava era de pistachios, muito gostava ele, punha-se a comer aquilo e não parava.

O teu irmão se fosse vivo já tinha cinquenta e sete, Meu Deus, já cinquenta e sete, tinha uma cara tão querida, muito loiro, os olhos tão pestanudos mas aquela respiração de passarinho cansado...



Mais uma estrela!



Nunca mais houve Natal, quem me dera que isto passasse.Ele e o outro, um rapagão moreno. Dá-me tristeza, dentro, vem muito de dentro



...o teu avô é que cozinhava o peru, isso é que ele gostava, ter os filhos todos à volta. Agora as notícias são só de fome e dão ceias nestes dias. No resto do ano comem o quê? Só miséria, Meu Deus




Queres que faça chá? Oh Mãe, o chá preto aqui é para quem? Tu bebes isto? Pior que café? Diz aqui chá preto com aroma de limão. Ao menos faz de casca de limão, ando a carregar com limões para quê? Ainda ontem andei a apanhá-los.



Rabujenta! Estou constipada outra vez.

Olha, com chinelos em vez de pantufas é natural. Onde é que já se viu...

As pantufas escorregam. Quanto mais uma pessoa se protege, pior. O teu avô andava em camisa em Dezembro. E em Janeiro. Tomava banho de água fria. Uma vez, tu ainda não eras nascida...tens aí esse chá que é muito gostoso...



Mãe, este é chá preto com aroma de limão! Não podes beber chá preto! Podes beber café?

Não sei. Descafeínado bebo.

O chá preto é igual ao café...

A tua Avó gostava muito de café. Sentava-se aí, onde tu estás, e bebia pelo menos duas chávenas ao lanche. Ai, era tão esquisita com o comer. Não gostava de nada. Ainda tu dizes que eu sou difícil. Já é meia-noite? Estão a tocar os sinos...tinha uma voz muito bonita, cristalina...quando a tua tia foi dar com ela, foi por esta altura...


Não Mãe, são seis da tarde!
Está tão escuro lá fora...
Porque é Inverno e com a mudança da hora, ainda por cima...
estão a tocar para a Missa do Galo...
ainda não, são seis horas!


A  tia Mariana sempre foi muito beata, depois de ficar doente então...faltava lá ela à Missa do Galo e às missas todas...passaste lá por casa?



 Não, não fui lá!

Deixa estar, só como sopa. Na minha idade parece que o estomago encolhe. Gostas desta não gostas? Costumavas gostar, quando vinhas cá, fazia-te sempre. Isso é tu e o Jorge comiam...parecia que não tinham fundo. Sempre à guerra um com o outro. Desde pequenos. Que Inferno.


Faço ideia as porcarias que andavas a comer lá fora.



Já é meia noite?
Parece que está a tocar para a Missa do Galo.
Não, são seis e um quarto. Mais ou menos.
Pois é, uma pessoa às vezes parece que está parva.

Está tão escuro.  Já andam a cantar na rua...o que é que estás a fazer com a moldura e o boneco? Onde é que isso estava?



Na arrecadação, lá em cima.


É o retrato de uma pessoa que eu conheço e vejo pouco. Uma pessoa que nunca cresceu, ficou sempre pequenina num mundo que foi sempre velho para ela. É engraçado porque casou com outra que já nasceu com a terceira ou a quarta idade. No fundo dão-se bem: uma vê o mundo gasto e a outra… Posso levar?

Leva o que quiseres, tanta tralha, já viste aquela caixa. Já agora se puderes pôr cola na tampa...estás sempre a inventar. O teu pai uma vez com aquele grande, como é que se chamava, ai, agora não me lembro...


King Kong! E parecia um cruzamento dos três Reis Magos: escuríssimo, com os olhos em… esse era um buraco negro no Universo. Nem ponta de luz!


Dá cá as nozes que ainda te aleijas! Estes gatos são mesmo ladrões. Só falta pôr pratos para eles. Faca e garfo, não?

Esta mão não tem força. Os meninos estão tão gordinhos, não estão?  
Não te importas que me vá deitar? Leio um bocadinho e pronto. Estou cansada. Esta constipação...



Que dia tão bonito!
Pois está. Devias apanhar sol. Sempre fechada em casa. Credo! Que dama tão recatada!


Pronto, deixei-te aqui as coisas preparadas. Depois trago-te de lá torrão duro de amêndoas. Género Alicante. E livra-te de eu chegar cá e ver presunto e aquele queijo horroroso, pilha de sal, no frigorífico.
Agasalha-te bem. Liga o aquecimento. E come a horas. Certas.


Ora, morre-se na mesma!
Estrela Polar!

Vê lá se os meninos não saem. Dá duas voltas à chave. Não te esqueças! E vai devagar!


---------------------------------------



...e, já agora e na medida do possível, Bom Ano velho a fingir de Novo, com saúde, afecto e dignidade seja ela individual ou colectiva.

8 comentários:

augusto, um entre mil disse...

dia após dia ia ao mar e, desesperadamente e em vão, lançava as redes





hoje as águas abriram-se e ele é pescador de pérolas.

Lizzie disse...

Senhor,

consigo imaginar um mar (ou um rio, um lago) a abrir-se como se fosse uma vasta cabeleira de águas com risco ao meio e um pescador de visão apurada a descobrir, no meio de muitas algas forradas de plâncton e outras ambiências, pérolas que, a bem dizer, pouco se distinguem das demais pedrinhas.

Dito de outro modo, são os olhos e outros sentidos e sentimentos do pescador que lhes dão o brilho e a essência.

E na casa pequena, também fui à pesca. Se pesquei pérolas ou não, Senhor, depois de morrer, logo pensarei nisso. Ou outros pensarão por mim.

Os meus respeitos a Si,ao Pescador e às águas.

bettips disse...

Uma carta entreaberta onde adivinhamos "destino" que nos vem. A todos. Colo a colo, aresta a gume, esquina a lonjura.

Hoje tive uma conversa fantasmagórica com a minha mãe, deitada numa maca, à espera duma injecção para as dores na coluna. A toda a volta, pais e mães; velhos. Mas, nessa conversa dos meus olhos violentados por anos de distâncias, eu era mais a menininha que senti/sinto a falta dela.
Assim me comoveu (de novo e hoje) que a tua mãe te ouvisse as prédicas, te falasse do passado nas mesas de festa e que tu tivesses fechado a porta tão de mansinho, como que uma asa de "já volto".
(a pá é em Serralves)
Beijinho

Lizzie disse...

Bettips:

por acaso, coincidência ou arbitrariedade indiferente ao calendário e que me lembre já passei três noites de Natal na urgência de hospitais.

Duas como acompanhante e uma eu própria, neste caso à espera de ligaduras e afins porque mesmo de ligamentos rasgados à vista de seringas acho que ainda corria a maratona com passo de Gulliver em fase de gigante.

O que mais me impressiona, e em três países diferentes com a sua respectiva população, é aquela dependência de um qualquer destino indefinido,uma quebra de vontade própria e um medo que mora muito lá fundo nos olhos.
Como se toda a vida tivesse resumo na concentração daquelas expressões.

E quanto mais grave é a doença mais se sente o peso dessa densidade.

Nas duas pessoas que acompanhei, as duas já avançadas na idade, uma sempre foi muito segura, de sins e de nãos muito firmes e sem talvezes de meias portas, naquela circunstãncia tinha uma ponta de despedida no olhar mas, simultãneamente, um certo desafio face à morte. Havia por ali um certo gozo de quem, aos noventa e muitos, faz o favor de se deixar vencer porque a natureza assim exige.

A outra tinha gritos mudos e pedia protecção nem que fosse uma palmada no rabo pela criança que sempre foi. Talvez o medo da morte não passasse de um corriqueiro medo do escuro. Ou do papão que sai do armário.

Nenhuma delas chegou ao Natal seguinte e apesar do estudo exaustivo e sistemático das expressões humanas ter começado no séc.XVIII, acho que ainda ninguém lhe chegou à verdade.
Bom, talvez o Al Pacino.

As tuas melhoras

bjs

bettips disse...

Sobre as expressões... "dos outros" já to disse no mail directo.
Tal como os chineses nos parecem todos parecidos, a face da dor é muito parecida nos vários rostos, no hospital, na rua esventrada.
A da miséria também.
Sobre as dos nossos mais chegados ... é um terrível desafio à impotência da gente. Só me surgem as palavras "saudade" e "terror".
Mas que bronca estou!
Dancemos ao som das luas de Janeiro...
Bjs

bettips disse...

Ah... depois há os artistas, os fingidores de gente comum e incomum. Esses têm todos os rostos.
Fascinante arte, a arte.

Al Pacino é um deles, sim, a meu gosto presente.
Como pintor ... Bosch e os seus céus-infernos inquietantes. Todos nascemos, todos morremos: com ele há a nítida percepção desses dois acontecimentos simples e de transcendência.
(continuo a espremer o limão e é amargo)
Bjs

Lizzie disse...

Bettips:

Vendo bem, acho que as expressões, consoante o tipo de dor ou sofrimento, não são bem iguais: há olhares que se tornam ausentes quase vazios, outros que gritam abandonos, outros, talvez os piores e mais impressionantes, que já são indiferentes e distantes.

Quanto a actores e outros fingidores, nos tempos actuais, os muito bons são tão subtis que mal se conseguem ler: mau é alguém fingir-se de bêbado quando um verdadeiro bêbado faz tudo para mostrar que não está.

Também há uma escola, que às vezes funciona, que finge o nada. São os espectadores que, através do texto ou circunstância, lhes dão a expressão.

Em pintura e em tudo, essa busca de representação, torna a interpretação um desafio fascinante.

Bjs

Arábica disse...

Tantas caixas na arrecadação...!
Tantos mundos por abrir, reabrir.
Uns ficarão. Outros voltarão ao encerramento definitivo. Depois de terem vivido o tempo útil do seu tempo. Onde vamos nós buscar as coisas? Ainda não sabemos que desarrumar as coisas implica um desassossego idêntico ao de FP...?
Tolas, teimamos em mudar o sitio das coisas. Eram lá 6 e 15...! Era meia noite em ponto e o sino chamava para a missa do galo!

Tontas, teimosas, refilonas - e os meninos empoleirados nas molduras!!! Sai daí! Ainda cais!!
Vai-te vestir! Ainda te constipas!

E nós teimosas a tirar as coisas do sitio, onde a memória, há muito tempo,, as arrumou.

:)