quinta-feira, 17 de novembro de 2011

...podes botar mais um tronco no fogo enquanto eu vou ali buscar mais copos, chávenas e algumas profecias no outro lado da ponte?

... dizia eu que é inevitável!


Sempre que chega Novembro, Outono bem entrado e colorido, encarno a figura deste pastor do meu adorado Duc de Berry :





viro-me mais para o céu que para a terra e, para além de perguntar ao astro se vai ou não chover devido ao anticiclone dos Açores, se há acidente na segunda circular com corte das vias esquerda e central trânsito demorado, fico pasmada numa certa indefinida nostalgia que me invade os pensamentos e o corpo porque também a este, coitado, a memória percorre com riso ou choro, prazer ou dor, as fibras.



Lembro-me daquele frio mais a rodear que a chicotear a pele. Daquele frio limpído, diferente de qualquer outro , quando atravessava esta ponte, neste postal ilustrado porque, senhores, ele há imagens de calendário para sacudir a monotonia, a clausura e a opacidade dos escritórios que correspondem a sítios que além de sonhados também são realmente sentidos.


E, por mais asfixiada de trabalho que estivesse, fazia desvios para passar a ponte.





Porque sim, pelas cores, pelas lendas, pelas histórias, pelo que de mim viria a conhecer mais tarde



e porque do outro lado, a poucos passos como à parca idade me pareciam na altura embora ainda não me pareçam muitos mais, havia uma livraria que vendia livros novos, usados, sublinhados, por anotar e sem estado definido, numa algazarra montanhosa de lombadas intactas ou cheias de rugas.


Em cima e nos vales de tais serranias de folhas, andavam gatos lustrosos e suponho que letrados por osmose, acolhidos pelos donos do convidativo estabelecimento: judeus que em vez de esqueléticos, encurvados, carrancudos e de nariz adunco era obesos, redondos na cabeça, tronco e membros e de temperamento vagamente teatral:

ele de gargalhada fácil e magestade no cachimbo, no permanente cálice de brandy e na tosse de barítono engasgado e

ela com voz alta e tal mau génio que se imaginava a natureza dos limites.



Qualquer um deles, à mais desorientada pergunta, sabia exactamente onde estava a resposta: naquele monte, mais ou menos a meio e, para complementar, uma visão diferente, há outro naquela mesa ali.

Dos que comprei, ainda guardo ternamente alguns. São outonais as folhas antigas, entre o sépia e o ãmbar, têm o tacto do Tempo.



mas há dois de que perdi o rasto, tal foi a rotação dos empréstimos.

Um deles era escrito por uma certa espécie de alemão, nos anos trinta,


de que não me lembro o nome, e expunha de forma vigorosa e científica como todo e qualquer ibérico devia ser educado para os caminhos da disciplina (que presumo geométrica) e da civilização,





já que o perímetro craneano reduzido, a pouca amplitude da testa, a exuberãncia cabeluda em homens e mulheres, reduziam a vontade, a autonomia do pensamento e da criatividade.



Por outro lado, o corpo atarracado, resistente, a força braçal e a capacidade de fornicar como bestas desenfreadas e sem critério, o sangue irracional, tornava-os aptos para os trabalhos menores e a baixo custo.




Acrescentava que não tinham capacidade para as finas artes como a literatura, a música e, sobretudo, a dança ou a ópera. Como todas as forças brutas, os ibéricos não tinham a apurada acuidade para o detalhe.




O flamenco, por exemplo, era visto pela entendida criatura como um mero ritual animalesco de acasalamento aleatório e promíscuo.

Muito encurtando, o disciplinador propunha uma forte hierarquia europeia em que os ibéricos ficariam na base das bases, única maneira de combater a América, filha daquela terra amaneirada, especialista em perguntas inúteis, chamada Inglaterra.





O outro de que perdi o rasto, atiçou-me a curiosidade porque foi escrito no princípio inicial dos anos oitenta por uma jovem canadiana , vou-me lá lembrar do nome, desiludida com o antes e o depois no mundo, passando pelo durante, membro militante da Geração X, orfã da esperança.




Deus e o Diabo, abraçados, tinham morrido, a direita e a esquerda vindas da Revolução Francesa também, contagiando os partidos políticos porque quem iria mandar no mundo seriam uns seres anónimos, não já patrões ou trabalhadores típicos de cartoon, mas com dinheiro suficiente e inversamente proporcional à ética que sentados em qualquer canto escuro e expoentes da natureza predadora inerente à massa humana comum, com uma simples ordem à distãncia comandariam os destinos do mundo. Muito conhecidos então por accionistas, agora especuladores, agiotas desde sempre.




Mas era assim: os livros eram baratos, compravam-se. emprestavam-se, davam-se, vendiam-se.




Aliás perguntava-se o preço e eles diziam o que lhes vinha à cabeça e os nómadas têm tendência para guardar bibliotecas dentro da cabeça, alguns naquele canto assustado onde mora o medo.


Não querem comer nada?




Uns pastéis de nata, uns boquerones, um caldo verde, uns jaquinzinhos, um gazpacho, uns battered scones?

9 comentários:

Alien8 disse...

Lizzie,

Mais uma crónica deliciosa, como as propostas finais de petisco. Alinho, como sempre (ai o meu estômago!:)

Vou entrar em contacto contigo muito em breve. Me aguarda! :)

Um beijo nosso.

augusto, um entre mil disse...

Senhora,

este belo mês que decorre já me vai fazendo sentir mais os ossos...

por isso sim, mais um tronco no fogo, mais copos, chávenas e algumas profecias e a vista da ponte do vossos postal é uma agradável miragem.

e sim, um caldo verde quentinho e uns jaquinzinhos, talvez com um arroz de tomate...

e, Senhora, desejo que nesta vossa ausência vos seja possível passear pelo vossos postal ilustrado se disso tiverdes vontade.

os meus respeitos

Lizzie disse...

Alien,

ai o meu fígado, coitadinho!

E que bem que sabe o creme de espargos.É só botar no micro ondas (deve ficar tonto de andar ali às voltas), vai esófago abaixo até reconfortar o estômago.

(por acaso fui copiar o teu estômago porque não me lembrava que tinha acento:))

Isto quando ninguém se lembra de ir de robe de chambre à fábrica de pão por el pan de Valencia, coño, ya verás,caliente y que con mantequilla lo buenissimo que cae por el estomago, más el chocolate, fíjate Aliencito mío, se siente uno en el cielo, viendo peliculas antíquas de Hitichicóque (así lo llaman los españoles) y de Ingride Berguimane, qué hermosa és la tía essa trajada de monja...

Fico mas é à espera do contacto presencial, prometendo desde já que não falo de gambas, nem do vinho da Mancha, nem...espanhol, coño...

Grande abraço para vocês e obrigada.

Lizzie disse...

Senhor,

bem andaria eu em vários lados menos neste onde agora me encontro. Melhor andaria eu reformada, a laborar no que me vai na alma, sem horas nem compromissos nem direcções de quem nunca sentirá os ossos porque tem o pensamento invertebrado.

Até melhor estaria na minha morada portuguesa, sentada na cadeira de costura, à lareira, na pequena e baixa mesa, tudo antigo e por mim restaurado. Já sabeis que adoro essas práticas e com materiais comprados em loja mais genhuína que o Aki.

Se tiver tempo, ainda hoje arejarei a casa pequena, mostrando-vos alguns toques da paisagem que de lá vislumbro.

Senhor, talvez por ser mais de frio do que calor, os meus ossos reclamam mais no Verão. Tenho até a sensação que dilato. Vivesse eu nos trópicos e explodiria para além da pele. Não seria coisa bonita de se ver, assim virada ao contrário.

Fui só ali ao lado,e Jaquinzinhos não comi mas regaleime com uns tiras de choco fritas com arroz de tomate temperado a pimentos com toque de oregãos,muito madrileno, mais frango guizado em tomate com pepininhos em vinagre e, Senhor, ninguém me tira os corações de alcachofra como legume.
Depois torrão duro de Alicante, que o mole mais me parece os caramelos Solanos de Badajoz.

Sentai-vos Senhor, tomai uma manta verdadeiramente escocesa sobre os vossos joelhos. Recostai-vos de forma a que o fogo crie reflexos nos vossos cabelos brancos (ai Senhor, há tantos séculos andam pintores atrás de tal efeito de luz).

E recebei, sobretudo, a calma dos meus respeitos.

augusto, um entre mil disse...

Senhora

na tasca onde sempre vou, hoje ao jantar lembrei-me de vós. a noite estava fria mas lá dentro estava confortável: a D. Rosa cozinhava atrás do balcão e o calor ia até as mesas

não havia o agradável ambiente oferecido pelo calor dum tronco no fogo e hoje eu era o único comensal.

mas o meu queijinho fresco, o meu vinho tinto e um soberbo arroz de pato

inesperadamente lembrei-me de vós

o café escaldado também me soube bem

subi a noite calma e fria

a casa calma e fria

liguei o aquecimento

e, como ao publicar o comentário isto saltou e o comentário desapareceu (não sei o que se passa mas já não é a primeira vez)

reescrevi, furibundo, e sem me lembrar como terminava, termino deixando os meus respeitos

Lizzie disse...

Senhor,

também a mim me acontece ver a prosa comentária evaporada, aqui no vosso e noutros.

Pois também fui a uma tasca habitual e agora praticamente deserta.
O dono, que é figura de peso e halteres como pouco se vê tal é a densidade corporal, quase não tem ninguém com quem comentar as notícias que passam na televisão do canto.

Lá apareceu, ao balcão, um para a Sagres em intervalo de obra, tão do Benfica como ele e não sei porquê o Xôr Victor disse que eu tinha cara do Sporting e, por acaso, acertou, tanto como a mulher no tempero do bacalhau assado e das batatas a murro.

E Senhor, depois fui para a lareira e sentei-me parca em palavras porque fui ler algumas páginas da espécie de diário deixado pelo Old Uncle James, recentemente falecido e a quem já dediquei post.

Não se podem ler palavras de solidão espessa do lado de fora do mundo, Senhor.

E, embora tenha sido encarregue de traduzir os escritos para castelhano, parece que em algumas partes a caligrafia me aconselha a que não a decifre: parece-me que Uncle James as escreveu como se as guardasse nas suas mãos grandes e em concha. Quem vier depois de mim que as solte. Se quiser.
Também fui encarregue das escolhas.

A coincidência, imaginai, é que quando me chamaram para jantar, se me deparou, inesperadamente, um prato muito típico em Inglaterra durante a 2ª Guerra, recomendado e apreciado pela Rainha Mãe como forma de aproveitar sobras: carne moída com legumes também cortados muito finos e com toque de limão e gengibre (para reforçar a imunidade e resistir ao frio), tudo acompanhado de arroz.

Bebi foi um copo de vinho tinto em vez de chá por causa do princípio de em Roma ser romano.Claro!

Duvido que tenha tempo, hoje, de ir arejar a casa pequena para dar luz aos postais ilustrados que, outra coincidência, são de certa forma, cenário possível das palavras de Uncle James.
Assim me pareceu quando ia olhando para fora da janela.

Ora vamos lá ver se este não se volatiza.

Os meus calorosos respeitos.

Arábica disse...

Podia lá eu resistir aos Jaquinzinhos? Mesmo que tenham sabor a bife na frigideira com molho especial. E dessas árvores do outro lado da ponte, lembro-me de crónicas de outros outonos. De outros frios. A rondar os corpos e a acordar tendões esquecidos na generosidade do verão. Vejo aqui os nossos sempre estimados comentadores e sei que o tempo pode passar, governos tombarem, ecatombes açoreanas despertarem as vulcanicas pedras, mas no elementar, nada muda. Eles e eu, eu eles,nós, conseguimos lá dizer que não aos jaquinzinhos? :)

bettips disse...

Já andei por aqui e não consegui comentar; mas petisquei
os ditos e os dos convidados à mesa, bem alegres me parecem ustedes.
Aligeirar o inverno com essa manta e um fogo terno, acompanhada de um belo livro, a mad tea party & scones.
Pode ser "Alice in Wonderland" com as ilustrações de John Tenniel.
Com a luz coada, assim como a luz dos quadros flamengos.
(mas também pode ser um copo de tinto e os tais chicharros pequenos - aqui não são jaquinzinhos... - uns pimentitos de Padrón e ála que se faz tarde)
Bjs

augusto, um entre mil disse...

eu sei...

mas,


desejo à mesma um bom natal...