apetece-me falar
da sensatez da mal amada cor que melhor ouve o silencio.
Desde ser ligado ao branco encardido, filho da imperfeição higiénica, ao preto hipócrita, ao dar tonalidade ao pouco interessante e monótono, o coitado do cinzento, por estas terras, sofre todos os agravos.
Confesso que é uma das minhas cores preferidas, tal é a sua riqueza tímida e esquecida.
Por ficar no meio e ser filha dos extremados preto e branco, é a cor dos pensamentos sensatos e deles símbolo: olha para os argumentos de um e do outro e pondera como juiz avisado e sem paixão.
(No mundo anglo-saxónico, um jornal isento, orgulha-se de ser considerado cinzento)
Aliando este juízo à cor cinzenta dos miolos, coisa que se afirma em todas as línguas e culturas, é também cor simbólica da inteligência, daquela mais recolhida na modéstia do que na exuberância. Mais sólida que meramente esperta.
Por isto, no reino de Elizabeth I de Inglaterra, e não só, os sábios, religiosos, eremitas de grande reflexão e filosofia, deviam vestir-se de cinzento.
Tal norma foi-se aplicando ao longo dos reinados e não é por acaso que em alguns colégios se traja de cinzento e qualquer primeiro ministro avisado se deve apresentar à realeza de cinzento. Vá-se lá saber porquê, Tony Blair rompeu a pressuposta exigente tradição.
Enfim, se as mulheres já nascem assentes, de vida e missão responsáveis, era sinal de perda assumida de diletância os cavalheiros se vestirem de cinzento.
E mais digo que quem for receber comenda ou outra distinção, nas terras britânicas e espanholas, que nas portuguesas não sei, se deve sentir mais honrado se receber do protocolo a indicação de levar vestimenta onde entre o cinzento.
É também símbolo de maturidade, coisa que se pressupõe, quão por vezes erradamente… quando a cabeça fica grisalha.
Pois fiquem sabendo, quem não sabe, que em territórios índios da América lá para o Norte, é a cor valiosa da amizade e do casamento ideal:
em dias de nevoeiro, névoa que acinzenta a paisagem, os três elementos da Terra - água, ar, terra propriamente dita - tomam-se de fusão não se sabendo onde começa um e acaba o outro aconchegando-se como os amigos e os amantes inteiros.
Também consegue ser a cor da espera, e da complementar esperança.
Depois, noutras paragens, há quem espere salvações mais colectivas em manhãs de nevoeiro, assim em forma, já abstracta , desfocada e desesperada, de Rei Moço…
É também cor de animais respeitados, cheios do conhecimento dos mistérios insondáveis da floresta e da noite que nenhum humano alcança: os lobos e os gatos.
Em todas as partes, não sendo a cor da morte é a do luto por alguém ou qualquer coisa ou circunstância.
Porque o coitado do cinzento tem a cor das cinzas, dos despojos irreversíveis do que já foi sem viagem certa de regresso.
Fica assim contagiado com melancolia, com nostalgia, com solidão, com recolhimento.
Mas também é a cor dos espíritos independentes que não prestam contas, para fora ou para dentro, do seu pensar e sentir.
É uma cor calada que se fecha sobre si própria embora preste grandes serviços poéticos e estéticos.
Vários poetas e estetas de outras áreas se refugiavam ou utilizaram o cinzento, sublinhando-lhe a beleza e a capacidade expressiva.
Não precisaram de estardalhaço colorido os dos séculos XIV e XV para produzir as ilusórias esculturas e baixos relevos, chamadas de Grisallas.
E há quem diga que, desde quase sempre, pela utilização do cinzento, se vê a maestria e o estado de alma dos pintores.
Consta que os da Renascença segredavam amarguras ou alegrias através dos cinzentos utilizados nas nuvens. Muitas vezes o que se vê fala muito mais do que se diz. Coisa intemporal.
E Velásquez, por exemplo, botava o cinzento para adormecer o brilho demasiado das outras. Porque o cinzento, quando não angustiante, tem esse efeito calmante na tela e na alma.
E podia lá eu não me lembrar do misticismo, da largueza e da lonjura convidativas dos meus amados Caspar David Fredrich
e Rothko, ambos com tanta coisa dita e intuída por tão pouco ornamento.
Também me lembro sempre do cinzento da tão desafiadoramente dançável fora das normas e versátil Valsa Triste de Sibelius. Notas nórdicas que ele chamou, secretamente, de cinzentas.
E já não tenho tempo de falar da beleza subtil dos filmes a preto e branco, onde as graduações de cinzento são imperatrizes ainda mais que rainhas - ai Senhores que não me calaria tão cedo-
nem da fotografia que não precisa de outras cores,
nem de como muitos coreógrafos exigiam, e exigem, que as imagens falassem em tons monocromáticos por via das luzes e sombras no interior dos movimentos.
E ainda falta a Moda, onde o cinzento bate em qualquer Kitsch. É a cor discreta da elegância, da sobriedade inimiga do espavento.
Por tudo isto e mais o que neste preciso momento não me ocorre no espaço e no tempo, talvez seja a cor de todos os possíveis, de tudo o que é sentido e contém a riqueza de ser interpretado.
Porque também tem agarrada ao seu espectro, a grandeza benéfica da simbologia da dúvida.
5 comentários:
Um post realmente cinzento, este :-)
Cinzento de acordo com o conceito exposto no dito post, naturalmente.
Muito interessante e instrutivo, Lizzie. E convincente! Mas nem mesmo assim passarei a vestir-me de fato cinzento... bom, só às vezes... :-)
Cinzento gato
cinzento sombra
cinzento brilhante
cinzento espera
cinzento de todas as cores de nuvem.
Cinzento na sombra
do véu.
Cinza
ficará a voz, o osso, o campo, o rio.
Cinzento o silêncio, deixa-nos a palavra: essa poderá ser vermelha, lilás. E em girândola. Sobre ele.
Bjinho
Alien:
Apesar de o cinzento ser das poucas cores que combinam com todas as outras e fica bem a qualquer tom de pele, acho que um fato cinzento te ficaria especialmente bem.:))
Ou um sobretudo. Ou um manto. ou uma camisola confortável.
E dado o teu genuíno cavalheirismo, no sentido autêntico e histórico do conceito, até um fraque com colete. E cartola.
Nenhum cinzento com esse verde com que o Universo te brindou:))
Ora toma!!
Obrigada!
Um abraçox2
Bettips:
tenho cá para mim que o cinzento está na essência de quase todas as coisas.
Não há, dizem, nem branco nem preto puros e o cinzento absorve e ameniza tanto as outras cores, que por vezes se confunde com elas.
Como as lendas se confundem tantas vezes com o fundo das coisas.
Às vezes vive escondido, raramente tem protagonismo. Modesto como o papel manteiga, pode embrulhar o que é grande.
A maior parte dos pintores faz a cama à tinta que há-de vir com uma camada de cinzento.
Por isso é uma cor maternal mas fugidia como os gatos.
E as sombras definem a luz das coisas, os contornos.
E quem repara, dia a dia, na forma, nos recantos das sombras?
E é isso, o cinzento, como um todo, é uma página aberta onde tudo se pode escrever.
Beijinhos
Errata-acrescento Hoje não estou boa da cabeça:
ALIEN, queria eu dizer que NENHUM CINZENTO BRIGA COM ESSE VERDE...:))
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