Pina Bausch
27- 7- 1940
30-6-2009
Ainda era cedo, tão cedo, para nos ensinares a dançar o teu último silêncio. Agora, resta-nos imaginar o teu novo improviso na arquitectura teatral que nos deixas na memória.
Soltamos o cabelo, metemos as mãos nos bolsos, arrastamos os pés, baixamos a cabeça, desenhamos circulos imaginários no palco, desatamos um saco de palavras onde, lá no fundo, brilha uma das tuas preferidas: melancolia.
No fim talvez, mas só talvez, chegamo-nos à boca de cena, sorrimos e gargalhamos palavras que voam como pedras ariscas:
Auf Wiedersen, Frau Philippine...
e fica-nos nas mãos, sempre indeciso, quase sempre confiante, o fumo do teu cigarro.
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Digníssimas Paciências,
já que olharam para mim,aqui, abaixo do suposto título, sempre vos digo que gosto de me sentar aqui! Ao fim da tarde.
Gosto deste ritual que dá alguma ordem ao meu tempo. Alguma obrigação na contagem das horas.
Pois gosto!
Meto-me no metro, saio, entro, saúdo com vénia a senõrita Maria de los Angeles, (assim consta da modernice no cartão que trás preso na nascença do farto seio esquerdo) que me parece uma rosa nascida na imensidão do oceano ou, desproporcionada como um milagre, das areias do deserto.
Peço-lhe que me sirva o primeiro copo de vinho branco.
Ela, por despudor de mulher cansada da virgindade que lhe vejo nos olhos, chamar-me-á duque e guapo o que na língua de Vossas Paciências soará a bonito.
Virar-se-á para a restante clientela e abrirá as portas à desventura, com sucessivas gargalhadas pouco dignas para a espécie feminina que Deus quis discreta, pacata e comedida nos modos.
Perdoem-me este desperdício moral de lhe contemplar a redonda e exuberante figura, mas faço-o como espectador de um remoto filme italiano em que Sofia Loren me povoava de assalto as fantasias, como uma pantera em ágil salto na selva ardente dos meus desejos.
Não sei que idade terá a supra citada señorita Maria de los Angeles, mas da semente que o tempo lhe lançou no canto exterior dos olhos, já se espraiam sulcos como um delta.
Além de olhar para a señorita, gosto de me sentar de forma a ver o edifício em frente.
Dele sairão, não tardará nada, jovens em catadupa, como se fossem vida a sair do forno do futuro.
Todos magros, elegantes, garbosos. Parecem andar em bicos de pés sobre a superfície do mundo.
As mulheres dali saídas não têm a anca roliça predisposta à maternidade como a Maria de los Angeles, nem o busto levantado em direcção à generosidade da amamentação. Não terão o garbo flamejante e virtuoso das nossas sevilhanas, manchegas, castelhanas, leonesas, valencianas:
Não, não têm!
Alguns entrarão aqui, sem sequer olharem para mim.
Alguns entrarão aqui, sem sequer olharem para mim.
A juventude ainda não ganhou o cuidado de medir com quem se cruza.
Cumpro um meu outro ritual: o de me perguntar se existo para o qual conto em voz alta de um até dez.
Que me perdoem tal atitude mas nunca se viu nem ouviu nenhum defunto, ou em trânsito pelo limbo da passagem, necessitar de contagem tão básica.
Como diria o Generalíssimo Franco, qualquer espanhol de raça, quando morto, entra directamente no clube da sabedoria de Deus. O que deve pressupor, perdoem-me Vossas Paciências, a elevação ao processo demonstrativo de teoremas.
Estou portanto vivo, já que Maria de los Angeles, confirma que não me enganei na contagem e asseguro a Vossas Paciências, que não me recordo nem do teorema de Pitágoras. De todo!
Tenho ainda sabedoria terrena!
Bom,mas às vezes sai de lá, do edifício, um grupo de mais velhos.
Atravessam, entram e ficam ao balcão.
Não vou falar da que tem tal amplitude de testa, que se lhe adivinha a extenção da séria inteligência.
Nem do homem que exilou o cabelo da cabeça nas faces.
Nem da outra que tem o dom de se multiplicar, já que, não raro, enquanto bebe o seu copo de horchata, aqui, está ao mesmo tempo na televisão gigante pendurada na parede e no cartaz a preto e branco da montra da farmácia da Drª Dolores, a anunciar a poção alquímica que lhe dará, eternamente, a cútis lisa de púbere.
Dirá mais respeito a Vossas Paciências, a que só, de vez em quando, aparece na companhia deles.
Afigura-se-me ela cara de almôndega ampliada e mal guisada, na qual se implantam, em geometria regular e frontal, duas ervilhas.
Ouço-lhes as conversas, que nós os anciãos ainda vivos, para desgosto dos governos que nos pagam a pensão a subtrair ao Orçamento Geral do Reino,
Ouço-lhes as conversas, que nós os anciãos ainda vivos, para desgosto dos governos que nos pagam a pensão a subtrair ao Orçamento Geral do Reino,
temos dotes de, quando o tímpano se nos vira fibroso, ouvir com os olhos e ver com todos os outros sentidos.
Dizem que pareço uma figura de Toulouse-Lautrec.
Que sou encarnação de Sua Excelência D. Quixote, coisa impossível que a estadia no além, que conste na reportagem dos espíritas, não encolhe ninguém e como podem ver sou de baixa estatura.
Que sou figura romanesca já que de verão e de inverno uso, por cima deste pijama às riscas, este meu sobretudo e este meu chapéu bem como as alpergatas a que a globalização, na descoberta do exotismo tropical, chama agora de havaianas.
Alguém pergunta à almôndega como se diz tío, que é assim que me chamam, em português.
Alguém pergunta à almôndega como se diz tío, que é assim que me chamam, em português.
Ela responde que neste contexto se diz gajo enquanto lambe os lábios dos resquícios de limonada em que é obviamente viciada.
Levanto-me e, na minha voz funda de baixo, repito: Gaíxo.
A almôndega vira as ervilhas para mim e sorri: ga jo, repete.
A almôndega vira as ervilhas para mim e sorri: ga jo, repete.
Senorita Maria de los Angeles, em surdina e inclinando o busto generoso em direcção à almondega ervilhada, a despropósito informa-a que continuo inofensivo, que sou sempre bem educado e cordial.
E preocupada com este seu velho servidor , diz-lhe que não me exija esforços que se me pode dar avalanche do dom da palavra.
Já dizia o Caudilho, paz à sua alma, que quando as mulheres cochicham entre si, anda o Diabo à solta.
A almôndega diz que coitado, sabe-se lá qual terá sido a vida, como estaremos na idade dele.
Como patriótico e em prol do desenvolvimento do turismo e sendo ela estrangeira, por traição dos Braganças, reprimo o desejo de lhe dizer que, quando atingir a minha provecta idade, se parecerá, se a imaginação me não engana, com um pastel de carne envolto em massa folhada.
Em vez disso, levanto-me, faço uma vénia e cumprimento-a : Gaíxo, enquanto penso que mais valia que aprendesse a fazer as bainha das calças, é aquilo figura que se apresente? ou, já agora, fosse escrever patacoadas naquilo a que a santa língua castelhana chama de ordenadora, filha humilde da computacíon.
Diz a da testa alta, empatica e superlativamente, que tenho cara de inteligentíssimo;
Diz a da testa alta, empatica e superlativamente, que tenho cara de inteligentíssimo;
a que se multiplica acha-me distinto e bonito e o do cabelo exilado solta uma interjeição que os modos jesuítas em que fui educado, me impede, por vergonha e respeito, de repetir a Vossas Augustas Paciências.
Pagam e vão andando para a porta.
Pagam e vão andando para a porta.
A almôndega diz aos meus insignes conterrãneos que lhe fiz lembrar uma das canções portuguesas que mais gosta, se a memória não me falha, uma tal de Loucos de Lisboa, capital de uma província de Espanha, cantada por uns rapazes internados na Ala dos Namorados.
Pede que lhe lembrem para trazer quando voltar á capital do reino. Ou então a Balada para um Loco de Piazolla, um dos súbditos do imenso império espanhol.
A almôndega vira-se para trás e fixa em mim as ervilhas, que sinto como petardos em suposta guerra de independência e levanta o braço em irreverente saudação:
A almôndega vira-se para trás e fixa em mim as ervilhas, que sinto como petardos em suposta guerra de independência e levanta o braço em irreverente saudação:
Gaíxo, Lisboa, olé, respondo-lhe.
Quando sorri, a almôndega entra em metamorfose para empada de vitela. Valha-lhe isso.
Vossas Braganças Paciências, vão-me desculpar, mas acendeu-se o néon dos refrigerantes La Casera, o que significa que tenho que pagar, despedir-me da rosa encantada que é Maria de los Angeles e fazer-me ao metro.
Encantado por este bocadinho na Vossa companhia! Foi um prazer!
Vossas Braganças Paciências, vão-me desculpar, mas acendeu-se o néon dos refrigerantes La Casera, o que significa que tenho que pagar, despedir-me da rosa encantada que é Maria de los Angeles e fazer-me ao metro.
Encantado por este bocadinho na Vossa companhia! Foi um prazer!
Uno, dos, tres, cuatro, cinco, seis, siete, ocho, nueve, diez!