Modalidade de solilóquio estremunhado de quem não tem outro remédio senão acordar, pós férias, em calendário de algarismo novo e em dolorosa experiência de, pela primeira vez, usar óculos de ver ao perto.
Valha-me Deus ou outra qualquer divindade, mulher, que face a tal cara, qualquer transcendência, por mais absurda que seja, serve!
Sais do espectáculo e, em vez de ires, em voz alta e exuberante a desafiar os julgamentos do mundo, comer churros com chocolate quente, dão-te os apetites de gambas panadas, estacionadas numa travessa, timidamente recolhida na mesa mais discreta, relegada para o canto mais escuro do bodegon. Dirão os mais aventureiros ou criticos, tratar-se da atracção pelo abismo.
No dia seguinte foste, com a tua capacidade autoregenerativa, para a rua, para el jaleo de la calle, na já eufórica celebração da nochevieja.
Ao entardecer, luzes exorcizavam temores ancestrais com desejos,
indiferentes às doutas, proféticas, messiãnicas e redentoras opiniões políticas de diversos quadrantes que os agentes se esforçavam por incutir na opinião pública, num ou noutro canal de televisão.
E não ficaste tonta com os encontrões da multidão aos magotes. Afinal já estás habituada ao costume espanhol de andar em grupo, todos muito juntos e quem quiser que se desvie.
E foste para casa que, naquela rua e em época de festejos, não é mais que um mero canto, protegido por paredes de papel, do exterior.
E não, não vestiste roupa interior vermelha, a lembrar vagamente os putíclub se fosse tal lingerie acompanhada de cinto de ligas (lembrança e comentárioantropológicamente alarve que te custou uma admoestação desdenhosa por parte dos indigenas ),
consoante a tradição castelhana, nem traje de gala a ver a Deus, boutique ou estilista.
Foste, antes vestir uma idosíssima camisola comprada no Alaska, em dois tons escuros de azul, já puída em zonas de maior atrito. Porque te apeteceu coordenares-te com a invernia. Não por o azul ser obrigatório na passagem de ano portuguesa.
Também não bateste tampas de panela, nem comeste os doze bagos, não passas, de uva, nem ficaste toda a noite a pé, reprimida face à ditadura da celebração.
Ficaste antes, a perorar, extasiada, sobre o filho de vinte anos de mulher que não encontravas há anos e que ia de compras com a mãe e que agora está em estágio como violoncelista numa grande orquestra de Madrid e que tem umas mãos lindas em formato e gesto, e um ar sereno e perverso como o Tadzio da Morte em Veneza e um ar de romantismo vago, literariamente vintage, vê lá tu o que ele cresceu e
-nuestra Élis además de portuguesa e coneja se vuelve pedófila!
E se cedo te deitaste também relativamente cedo te levantaste, para fazer viagem de regresso, não percebendo se, cidade e estrada fora, era dia de ano novo ou teria havido um ataque nuclear, tal era o vazio, tirando um ou outro sobrevivente, de gentes em circulação.
E para fechar, não vais pôr aqui nenhuma valsa de Strauss, nem polka efusiva. Os novos que acreditem que a mudança num número, muda os passos do mundo.
Apetece-te antes, valsa sim, mas de Schostakovitch, aquele que, consta, durante a vida poucos anos teve a que se pudesse, normalmente, chamar de felizes.
E se te está a doer a cabeça, tira as gafas, ai credo, mulher, em português diz-se óculos. Que coisa...
valse nº2 - schostakovitch
16 comentários:
Da metamorfose da gamba assassina ao azul puído do tempo, da gaivota (e eu que também hoje aportei ave?) em repouso proibido ao pouco aconselhável abismo em vésperas de festejo, levas-nos atrás dos dias, sem óculos contra a vertigem do tempo que nos teima em trazer de volta :))
Na terra das alfarrobas as cuecas e fios dentais azuis se esgotaram em vésperas da efeméride
(e ouvindo hoje as noticias futebolisticas cá do burgo, ainda pensei que a façanha de ontem deveria estar intimamente ligada ao uso e abuso de tal cor ) ao que nas lojas se começou a aconselhar o vermelhito de paixão :) que não há melhor forma de se iniciar mais um ano prometido a preto e branco, ou, a ver por ti, de dieta;)) a pão e água ;))
Fora de todas estas brincadeiras, Lizzie :)) bom é ler-te e admirar as fotos sempre originais que nos ofereces!
Pena ser só 30 segundos de música, mas para uma vida breve em felicidade, que mais se poderia pedir? :))
Besos
Correcção: levas-nos atrás NOS dias...
Pues, mujer, benvida ao clube dos que vêem o mundo com mais do que um par de olhos! Eu só à minha conta tenho três pares!
Em breve vais descobrir o charme do olhar por cima das gafas e o encanto de andar sempre à procura deles porque se esqueceu o lugar do último poiso. Espero que resistas à tentação de comprar um daqueles fios de pendurar ao pescoço para os pendurar. Já há, nos bons oculistas, umas versões fashion dos ditos mas mesmo assim fazem-te parecer aquelas senhoras de mise de cheia de laca e gola branca bordada que nos atendiam nos correios antes de os CTT terem inventado a farda vermelho-creme.
Espero também que tenhas resistido a escolher um modelo azul-cobalto ou vermelho, de armações grossas. Não gostas daqueles que se podem dobrar todos e nunca se partem?
Estou mortinha por te ver com eles!
Impagável Lizzie,
Então não suspeitaste, ou a Élis, de que as gambas estavam mais ou menos "retiradas" por qualquer razão?
Então foste assim tão lesta ter com o abismo?
E desafias as consequências curando a mordedura do cão com pelo do mesmo cão (ou semelhante, vá lá...)?
E consegues fazer da experiência dolorosa um relato de quase morrer a rir? Se eu tivesse lata para tanto, dir-te-ia que até valeu a pena a gâmbica intoxicação... mas não tenho, e não digo.
O que te digo é que pouco acrescentarei ao que a Emma Larbos já esclareceu acerca dos óculos.
Estou neste momento com os meus fiéis óculos de leitura, os únicos que uso, postos em modo de écrã de computador (há também o modo de livro e o modo de espreitar por cima, pois...). Fica com este testemunho e, por amor da Santa, não me empanturres de imagens deliciosas, que ainda me dá alguma coisinha ruim :)
Logo a mim, que ainda ontem voltei a ver o "Volver"... "it's an injustice... yes, it is".
Um grande beijo.
Lizzie,
Falando de óculos, eu perdi os meus legitimos ao fim de uma semana de os usar (desconfio sériamente do lama destemido e comilão que todas as manhãs de sábado me perseguia perigosamente na hora de mudar o feno) e desde aí, já experimentei todos os azuis cobaltos e vermelhos de que a Emma fala :)) são vendidos em modo de pronto a usar :) e são também eximios, na arte do pronto a perder :))
Não sou nada sem eles, qualquer sms fora do seu alcance transforma-se sempre em algo parecido com a realidade, por pura coincidência :)) e quanto aos encantos...com a criatividade que tens, decerto descobrirás outros tantos, que por aqui ainda não constam :)
Beijos muitos!
Amanhã vos responderei.
Hoje só vos venho dizer que, tal como prometi em terras de Espanha, só ontem à meia-noite abri os presentes que de lá trouxe e...
JÁ TENHO UM PATO BRANCO!
Por acaso acompanhado de umas cenouras verdadeiras com rama:))
Lizzie,
Apenas para te dizer :)) que nas imagens transmitidas pela tvi, de Madrid,ontem à noite, apareceu uma familia inteira de patos brancos, lindissimos, os quais com ar soberbo integravam tb o corso :))
E aqui vai uma beijoca :) hoje sim, de Dia de Reis :))
Esperem lá... alguma coisa aqui me escapa...
Mas os patos comem cenouras ? E com ramas e tudo ? Então não são os coelhos? e os patos não é mais milho e pão? Ou não?
Olha, detectei-me ali umas gralhas (benvida?!) mas não me apetece fazer a lista toda. Quem as encontrar paciência!
Lizzie,
Com bico laranja? :)
Espero que sim!
De qualquer modo, PARABÉNS!
Beijos.
Ai Arábica, o que eu dietei...:) e ia tendo uma recaída, lá contarei na resposta ao Alien.
Valha-me la Stª Eufrázia acompanhada de Stº Isidrio mais do Mago Baltazar,
que nos visitantes da casa ninguém é "folclorico" a ponto de cobrir as vergonhas de vermelho. Ainda houve suspeitas mas o presumivel culpado lá mostrou as boxers cinzentas e não vislumbrámos tiras de cinto de ligas.
Quanto a óculos, pois que até agora só usei para mandar sms e ler aos bocadinhos. Computador nem pensar:vira écran de cinema psicadélico. Na!
E não posso comprar os já feitos. As estuporadas das lentes, pelo menos uma, tem que ser feita em rigoroso e caríssimo exclusivo. Assim me explicou o rapaz que me atendeu, lindíssimo, com o ar aventureiro e selvagem do Lawrence da Árabia, madeixa loira na pele tisnada, alto e com garbo no porte. Enfim...
E RECEBI OUTRO PATO BRANCO POR MAIL. Giríssimo. Agora tenho um onde pego e outro virtual:))
Ay, que lástima que aquí me he quedado trabajando en la festividad de Reys en Madrid. J.....que é assim como Juan:escreve-se com J mas pronuncia-se como R vindo da traqueia.
Besos míos
Emma:
Posarei para ti. De quatro olhos pousados, com recato, num livro ou num bastidor em silencioso labor de bordado.
E se tal for o teu desejo, riparei o cabelo ou meterei os dedos na tomada eléctrica para, assim, lhe dar mais volume. A laca é que a minha romântica asma não permite. E se tal te aprouver, botarei no rosto uma expressão de tísica terminal. Compôe-se o quadro.
Quanto a essa do charme de olhar por cima, Emma, já nas minhas costas uns niños dizem que o meu olhar mete medo. Imagina então o que dirão quando, em Junho, for uns dias, na qualidade de chefe, note-se, para Madrid, olhando-os por cima da armação...
Imagina que a menina do oculista me pôs à frente uma panóplia de arco iris. Alguns eram verde alface, disse ela que era uma questão de coerência. Imagina que me dá outra fúria herbívora: como-os.
E, olha, quem me ofereceu o pato, que não é de plástico mas sim de loiça tosca, assustou-se de tal forma ao ver-me ruminar cenouras que ficou com medo que me desse um sindrome de abstinência. Por acaso, ontem comi uma das verdadeiras porque no meio vinham umas artificiais. Essas resisti a comer.
Alien:
essa do modo de computador ainda me hás-de explicar, se fizeres o favor.
Quanto ao resto, deve-se respeitar as vontades do organismo.Acordei a pensar nas empadas.
Mas...no regresso
desviei-me eu da rota principal porque me apeteceu uma pizza quatro estações.
Entro e aparece-me um italiano bamboleante a tentar falar espanhol:
- eco,nuestra pizza será divinale,cosita da meílióri aceite di Tóscana. Alóra, riquixíma.
E veio. E meti um pedaço na boca. E chegou qual trapo encharcado em gasolina ao estomâgo. Se eu tivesse comido mais uma garfada, seria o fósforo.
- ma sinhora no manja piú, más?
Lá apontei pra o estomago e vai ele muito sorridente
-entendió! il vino di Año nuovo, verdad?
-sí,sí
e ia eu pensando no novo milagre: a transformação do chá de cidreira em vinho e da água em champanhe.
Fiquei a saber que na Toscana, segundo ele disse, depois de sair do forno, a pizza leva um banho de azeite da região.Ácido. Horroroso.À meia noite ainda tinha tal gosto na boca e no nariz.
Mas o pior é que fiquei com um impulso irresistível de imitar o desgraçado do toscano a falar. Espero que me passe...:))
Ah, Alien, haverá alguma actriz no mundo capaz de ter aquela variedade de expressões, como a Carmen Maura no Volver?
La Penelope, só consigo ver como espanhola. Em filmes de outras línguas, desculpa lá, parece-me uma extra-terreste em fase de adaptação ao clima.
E acho a miúda péssima.
Um abraço
na verdade, é um prazer
solto
passar por aqui.
Bem hajas, Lizzie !
E Bom Ano!
(também o passei, como tem sido há muito habitual, por terras de Espanha.........)
Lizzie,
Dissertação acerca das virtualidades e potencialidades dos óculos de ver ao perto, das correctas formas de os utilizar em proveito próprio e até alheio, incluindo algum aclaramento daquelas pequeníssimas coisas que não se vêem, mas que se topam, por Acrílico Compacto Branco, Mestre em Tudo:
Primo: O modo tradicional é o de leitura, correspondente à inclinação da cabeça para baixo, mui útil para a correcta decifração de caracteres, com excepção(1) daqueles que vulgarmente se designam por "letras pequeninas" e que são, em muitos documentos, os mais importantes.
Secundo: O modo de computador consiste, dada a colocação mais elevada do monitor e a maior distância dos olhos em relação ao alvo, no afastamento, não muito pronunciado, da cabeça, e portanto dos olhos, e portanto dos óculos, em relação ao alvo-monitor, que é olhado ligeiramente de cima.
Tertio: O modo der espreitar por cima carece de comentários, sobretudo atendendo à destinatária deste tratado. Digamos apenas que, inter alia, permite a visão periférica e longínqua dos circunstantes, assaz útil na captação dos seus tiques e gestos característicos, tudo em complemento da função auditiva que lhes regista as vozes, para memória futura e inelutável diversão.
Dixit.
(1) Os óculos de ver ao perto não são milagrosos, ao contrário do que vêm defendendo supostos multi-entendidos.
Errata, como é de bom tom em qualquer tratado que se preze:
"O modo de espreitar por cima NÃO carece de comentários..."
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