segunda-feira, 14 de julho de 2008



e porque não ficaria de consciência tranquila se não contasse

a história da mulher que se vestiu de sombra




porque me lembro dela sem claridade à volta, nem que fosse verão luminoso, nem que estivesse à janela da marquise a seguir os pombos com os olhos. Hoje acho que os invejava no voo. Mas sei lá, na altura nem eu sabia qual seria a cor das minhas próprias asas quanto mais as dos outros, lá com aquela idade que eu ainda estava longe de entender que existisse.




A Tia Juliana era meia irmã do António Adriano, aquele ali de baixo. Filha da primeira mulher do pai. Ficou órfã cedo, e tomou de encargo os irmãos, especialmente o César, mais fraco. Talvez o considerasse a única ponte para a memória cúmplice da mãe face à autoridade da espanhola que a subtituiu. Não sei. Só sei que cedo conheceu o rosto da morte.





Parece que naquele tempo a infância e adolescência tinham um prazo de validade curto e na Primeira Grande Guerra, já Juliana ajudava a tratar os feridos dela regressados, como cabia, por influência e formação inglesas, às meninas filhas de oficiais de alta patente.

Dizem que se movia melhor entre os feridos de corpo e alma que nos salões onde se valsavam futuros casamentos.
Também dizem que era determinada, de acção sem lamentos, capaz até de conduzir ambulâncias por montes e vales.


Mas o lamento instalou-se quando o irmão morreu da doença dos pulmões, ao tempo eufemismo para a praga da tuberculose pulmonar.

E talvez para mitigar o desgosto e desafiar o destino, juntou-se a dois irmãos e uma irmã e através de Juromenha, logo no início, pôs-se ao serviço das vítimas da Guerra Civil Espanhola.
Enterravam comida e medicamentos e pela calada do crepúsculo ou da aurora passavam-nos aos estremenhos famintos e doentes.




Comoveu-se com as principais sacrificadas da guerra: as crianças órfãs , contrabandeando-as. Umas ficaram cá, sem que disso se lembrem, outras a partir da Ericeira, partiram para as Américas.





E com o Holocausto, servindo-se do gosto e aptidão pela estratégia, transportou para a mesma praia, judeus e outros perseguidos. Há quem diga, que elementos do Estado Novo fechavam os olhos à vista das moedas e bens dos refugiados. Não sei se será verdade. É coisa para a pesquisa dos historiadores credenciados.

Entretanto, já com uma idade considerada escandalosa para o efeito, até poderia já ser avó, apaixonou-se por um proprietário alentejano. Viúvo, com vários filhos. Dono de terras, touros e frequentador assíduo de prostitutas. Mas grande actor na vida solitária e carente.





Contra a vontade dos irmãos e das irmãs, que conheciam já os meandros astutos do mundo, casou. Vá-se lá saber porque é que o coração é tão ditador nos domínios da razão quando o amor torna a vontade cega.
E mudou-se para uma casa que possuía lá para as bandas de Campo de Ourique, mantendo a da Ericeira. Com estadas no Alentejo.

Orgulhosa ou envergonhada, não disse aos irmãos que o álcool, o jogo e as mulheres, levaram o marido a ir vendendo os bens que a comunhão lhe tinha trazido. Não se sabe se chegou a saber dos maus tratos que ele, com outros, infligiam a mulheres, a meninas, a meninos pouco dados à virilidade da mitilogia taurina, entre sobreiros, clubes e vielas.



Certo é que um dia, contava ela à volta de cinquenta e não quarenta como disse lá em baixo, António Adriano e outro, a foram encontrar em choque, sentada no chão da sala vazia, só com alguns caixotes.


Contavam que muito composta e digna, sem palavra nem choro que lhe explodisse em grito.


As casas principal e a de férias tinham sido vendidas, o monte alentejano posto em nome dos enteados e o marido embarcado em fuga para Angola.
Nunca mais falou. Ficou com as palavras secas a meio caminho do desabafo. Da humilhação.

Imagino-a como uma jarra oferecida que não cabe na decoração.
Acabou numa casa enorme onde já estavam outras mulheres e um homem. Tudo família. Acharam que ali tinha companhia e deram-lhe uma espécie de suite que fechava à chave.

Lavava as mãos vezes sem conta e tomava banho por impulso, esfregando-se até ficar à beira do sangue.

Naquela casa, de vez em quando, havia festas e lembro-me dela sentada numa poltrona, num canto escuro, muito direita, vestida de negro, cabelo absolutamente branco, altiva. Umas vezes observadora, outras de olhos postos num tabuleiro de xadrez com adversário imaginado.

Assim morreu sem aviso. Sentada. Sem som que se visse.

No quarto arrombado encontraram livros de gregos e romanos, relatos de batalhas históricas, alternativas estratégicas em desenhos , álbuns de fotografias com pessoas que ninguém conhecia,


imagens do rei D. Carlos, sapatos velhos e gastos de caminhadas, mechas de cabelo do César, aliança atada a uma guita, cadernos escritos com coisas que ninguém entendia, em letra miúda mas forte, recortes de jornais históricamente relevantes e arrumados, inúmeros discos de Beethoven e Mozart. Os despojos de uma vida cheia de interesses, segredos, vocações, sonhos. Com nome publicamente anónimo.

E uma frase repetida vezes sem conta, a vermelho, a confirmar que nunca fora muito intima com Deus :

o mal deste país é ter mais igrejas que escolas!


Assim ficaram os aposentos durante anos, intocáveis, por vontade dos irmãos.

Não fosse eu tão criança e teria escrito na porta

Este é o quarto onde morou o centro do silêncio.








Assim, sem mais, que o barulho pode incomodar o respeito.

13 comentários:

nnannarella disse...

Heróis e vítimas de que não reza a História.
A Tia Juliana, solar e forte, acabou por apanhar um distúrbio obssessivo-compulsivo profundo, para o qual ainda não havia diagnósticos e drogas eficazes no tempo da doença dos pulmões.
Essa ritualização maníaca dos banhos e dos silêncios é assaz significativa. No fundo, queria lavar-se de violências, até daquelas auto-infligidas por temerárias conveniências de época ou ingenuidades de coração.
Não queria puxar a brasa à minha sardinha, meu Arcanjo, mas a Tia Juliana mais o seu tardo marido davam personagens de um medonho thriller.
Torneiras chinesas e torneiras chinesas…:)

Miguel Batista disse...

simplesmente Huou!!! adorei o blog!! muito bem cuidado de estruturado(ao contrario do meu xD)

dark kisses

Lizzie disse...

Meu Anjo,

ao longo desta e da outra História maior corrida a séculos, quantos heróis e vítimas de nome esquecido não terá havido? Quantos figurantes da glória ou da desgraça? Cá para mim escolhem-se grandes nomes por poder ou por simbolo.

Talvez hoje se dissesse que a Tia Juliana sofria de stress pós traumático que é como quem diz "elas não matam mas moem" e acabam por desaguar nestes gritos mudos. E tantas formas há de os gritar.

Ela conhecia, na sua labuta guerreira, os extremos do bem e do mal do mundo. Não teve tempo de conhecer as batalhas da paixão e os seus ardis. Não sabia das outras guerras dentro do cenário de paz. Viu uma porta aberta para, finalmente, a estabilidade e o descanso e entrou. Com a visão desfocada.

Hoje talvez fosse à tv botar opinião sobre conflitos e pazes. Mas naquele tempo as donzelas não iam à guerra, não brincavam com soldadinhos de chumbo, nem podiam frequentar a Academia Militar e segundo me disseram, não era dama que comprasse o céu em chás de caridade. Era mais jipe todo o terreno.

Mas olha que se o "tardo marido" (maravilha) não tivesse fugido, com a devida protecção do sistema vigente, é claro,tinha havido thriller de certeza.
Ai Meu Anjo, quando aqueles que têm C.M.G. no apelido ficam com o pêlo na venta...

(pêlo tem acento ou é só pelo?)


Canalisações e canalisações...:)))

Lizzie disse...

Oh Meu Anjo
não resisto a contar-te:
quando eles começavam a zangar-se, os outros petizes e eu dizíamos uns para os outros "ó Ilda mete os putos na barraca que vai haver merda no beco !"

Como não havia o hábito da pimenta na língua, longas eram as tardes de castigo no isolamento do quarto.
Tão tristes que ficavam as bicicletas...

Lizzie disse...

Angelus
obrigada pelo elogio, mas se é cuidado e estruturado é fruto do acaso que não sou mulher para grandes pensamentos e arrumações de ideias ou conceitos.
Havias de ver a desordem que reina neste sítio onde estou.
Quando arrumo como uma menina prendada, esqueço-me onde botei as coisas ou as ideias. Assim sei onde está tudo.
Que é que se há-de fazer?

Haddock disse...

pronto!! dedinho para a asneira...
que é como quem diz: para o biltre!!!
só não entendemos como é que os irmãos não lhe deram um enxerto de p... tabefes!! pobre juliana... e sem apav para recorrer!! história triste com final infeliz...


vénia...

Lizzie disse...

Capitão:
nós não entendemos é como semelhante criatura tão afoita foi juntar-se a tal antípoda.
E, segundo nos disseram, na altura os maridos podiam manobrar os bens à vontade sem consentimento das mulheres. E em Espanha até para trabalhar e/ou viajar as damas precisavam de consentimento escrito. Daí que não houvesse sequer apav.

E fomos de encontrar os netos por ocasião de um funeral, sendo tal funesta ocasião para comício contra o uso do perservativo, contra o divórcio, a favor do "freio curto para as mulheres" e no caso de haver bofetada, às vezes, "só se perdem as que caem ao chão",e mais que os homossexuais deviam ser presos ou internados depois de uns murros nos c.....e mais umas quantas, que as mulheres quanto mais leêm mais estúpidas ficam.

E pasmai que as respectivas esposas são excelentes a atear e a manter o fogo, tipo sucursal, ou sede, das "mães de Bragança", muito orgulhosas da sua prisional virtude.

Vontade de G3 não nos faltou mas optámos pelo desprezo. Somos mais de futuro.

Continência

Emma Larbos disse...

Lizzie, vai juntando as fichas todas. No fim podes mesmo escrever uma saga allendiana. Está lá tudo na vida, não precisas de inventar quase nada.
As Florence Nightingal são personagens extraordinárias. As que arregaçam as mangas e vão ao encontro da vida. Mas essa energia tem por vezes um efeito contraditório, que talvez responda à tua pergunta sobre o que viu ela no biltre. É a vontade de descansar, de encostar a cabeça num ombro mais forte - ou que dê sinais exteriores de maior força. Podes chamar-lhe amor, se quiseres. Mas toda a força feminina está condenada à solidão e parece bom ceder à tentação do descanso. O pior são os biltres que por aí andam, à espreita dos rouxinóis...

Lizzie disse...

Ai Emma que até me comoveste!

Não penso que seja amor. Não lhe chamo isso, porque tal estado implica partilha, mesmo que sem grande espalhafato de paixão. Implica empatia mesmo no silêncio. Uma depência mútua consentida.

Quanto às fichas, o meu ex superior hierárquico, já reformado, conheceu duas das irmãs e disse-me exactamente isso: "conte-lhes a história.Se você não contar ninguém o vai fazer."
Tenho lá estofo, mulher, para tal empresa. Credo que se me arrepia a pena.

Tens razão. Algumas das mulheres que conheço, guerreiras, foram descansar em braços ausentes.

Mas já, já, e sobre a solidão, vou botar "postal", como diria o Capitão.
Está-me a apetecer.

Alien8 disse...

Lizzie,

Vá-se lá saber... quem poderá hoje explicar a opção por aquele marido e por aquela vida?

Talvez alguma das que foram adiantadas nos comentários acima, ou uma mistura delas, ou...

O título, só por si, já diz muito.

Há aqui uma espécie de contraponto à história do meio-irmão António, mas só a partir da opção pela sombra e pela reclusão (mas sem nunca abdicar das ideias, como se vê pelos escritos repetidos...). Até lá, a força do movimento e a generosidade da ajuda caminham em paralelo.

É, pelo menos, o que me parece hoje.

Mais uma história deliciosa, texto e complementos.

Bom fim de semana!

Lizzie disse...

Alien,
conhecendo-a e sobretudo sabendo o cariz do marido, toda a gente a tentou dissuadir, mostrar-lhe o evidente futuro falhanço.
Mas penso que foi mesmo a vontade de sentir a terra segura, sem mais aventuras. Para além da paixão. Mas não se pode renunciar à natureza de cada um e, mesmo em silêncio, continuou guerreira. Mesmo meia louca continuou a viver no seu mundo.Num mundo interventivo tão longe do acomodado das mulheres daquela época.
A ingenuidade talvez a convencesse que podia mudar aqueles comportamentos cruéis. Digo eu, não sei.
Uma das irmãs dizia que ela não sabia nada do comportamento normal das pessoas: só conhecia o lado extremado, como é, suponho, o comportamento em guerra.

Mas posso-lhe garantir que era a mais respeitada. Nem sequer teve alcunha. Era uma mulher calada cheia de passado, com toda dignidade que isso implica.
E os heróis também têm os seus momentos de fraqueza. Ou cegueira.

Abraço

pentelho real disse...

...

Marginal disse...

Lizzie,

deixei o ferro :)


Poderia escrever já é noite, mas com a luz da tia Juliana, nem a noite se atreve a chegar.

Sou da tua opinião, habituada que estava a travar batalhas, deve ter sentido que "aquela" era só mais uma, a derradeira de lutadora, a partir da qual, daria à sua "espada", o merecido descanso.

Deu, sem duvida, o tal descanso à espada de nobres batalhas, com toda a dignidade.

Ficou a sua vida e o seu percurso, para nos mostrar do anonimato das heroínas de carne e osso e nos falar do silêncio...


O que se sobrepõe a tudo o que possa ser dito..

...e continuo...